[TEXTO] Bruno Martins [FOTO] Direitos Reservados
Noite de sexta-feira, chuvosa, como têm sido tantas. Saídos do trabalho, àquela hora que não sabemos muito bem se vamos já para jantar ou se ainda vamos beber mais um aperitivo, encontramos David Alves, aka Sensei D, na rua cor-de-rosa do Cais do Sodré. Vem acompanhado da sua mais-que-tudo e do amigo Ricardo Mascarenhas, Sindroma, com quem tem a dupla Da Supafly Brothazz, porque a noite ainda é uma criança e dá tempo para tudo: para conversar com o Rimas e Batidas sobre Vivificat, o primeiro álbum de longa-duração que edita em dez anos de trabalho, e depois ainda ir desfrutar de um bocadinho da noite de Lisboa com a namorada e com os amigos.
Entre colaborações, mixtapes e beat tapes, nunca tinha havido tempo nem disponibilidade mental para gizar um trabalho mais conceptual. Vivificat, um disco que apela ao florir e ao renascer do indivíduo, é o primeiro álbum da carreira de mais de dez anos do produtor e beat maker que tem trabalhado e colaborado com tantos MCs nacionais. Agora, neste trabalho, reúne à sua volta uma equipa de rappers que vão desde Fuse e Karlon, passando por Beware Jack, Real Punch, TNT, Nerve até João Tamura – entre outros – que iluminam os beats pesados, potentes e cheios de positivismo que Sensei D desenhou para esta vivificação.
Editaste o teu primeiro trabalho em meados de 2007, o EP I – 1 Música, 1 Arma. Porque é que passou tanto tempo até lançares um álbum, na verdadeira acepção da palavra?
Todos os trabalhos que editei até hoje tiveram sempre um tema. Mas eram sempre trabalhos meio livres: beats que eu passava aos MCs, que depois escolhiam à escolha dele. Neste Vivificat as coisas foram muito mais trabalhadas: soube sempre, desde o início de cada tema, qual seria o MC que ia convidar. A ideia começou por ser o tal EP, mas percebi que estava a dar demasiado de mim e comecei a querer que o álbum fosse um espelho de mim, de todas as influências que tive ao longo dos anos. Todos os sons neste disco têm um propósito.
Também sabia o que querias que os MCs dissessem?
Eu passei-lhes uma espécie de briefing. Já sabia que o disco ia chamar-se Vivificat, porque representa aquilo que floresce e renasce. Expliquei-lhes o que é que significava o título do disco gostaria que eles escrevessem as rimas à volta desta ideia. E que gostaria que os temas fossem à volta dessa ideia. Os temas não falam todos do renascimento, mas foi criado um ambiente para dar espaço às ideias deles. Há músicas que falam de arrependimento, de memórias do passado, do manter a fé, da luta diária, das rotinas, das frustrações e de sonhos.
Porque é que quiseste abordar essa temática do renascimento do ser?
Creio que tem um bocado a ver com a minha vida. Já tenho 33 anos, estou na idade adulta e sinto que as perspectivas de vida mudam. Muda-se a forma de lidar com as coisas, de as entender. Vai-se o lado do jovem, mas, ao mesmo tempo, vive-se o momento de uma outra forma. Existe um certo renascer das pessoas quando entram nesta idade. E, se reparares bem, noutra vertente, eu também faço renascer os beats: procuro beats antigos e dou-lhes uma nova vida.
Foste à procura de beats mais pesados para dar o peito a essa vivificação? Se não estou em erro, há dois temas um bocadinho mais contidos: “Brightly Nights”, a faixa com o Nerve, Tamura e Noiserv; e “Eu não era assim”, do Valas. De resto são beats até impositivos, com um grande volume, peso e carga dramática.
Saberes renascer e vivificares-te também é assumir o teu lado mais frágil, assumir as tuas derrotas. Lembro-me do som do TNT, “Regras, em que ele fala daquelas noites muito engraçadas, mas que tiveram o seu peso, as suas consequências. Acho que para olharmos para a frente também temos de saber olhar para trás, ver o que fizemos mal e isso foi muito bem retratado pelos MCs e pela junção das faixas.
Queres falar-nos dos convidados deste disco?
Eu nunca me prendi a uma zona ou ao rap de uma zona. Sempre gostei muito do rap do Algarve, do rap do Alentejo, do Porto ou do rap crioulo. Tentei foi ir buscar um representante de cada uma dessas secções que queria preencher. São todos amigos que que já conheço há algum tempo. É a minha família mais chegada do hip hop.
Mas também tens convidados internacionais. Como é que lhes chegas?
O Ruste Juxx mostra-se sempre muito disponível, na Internet, para fazer colaborações. O Slaine já falava com ele desde o tempo do MySpace. Às vezes até chegava a enviar-me maquetes. Senti que agora é que era a altura ideal.
É uma responsabilidade maior quando se envia um beat ao um MC estrangeiro?
Acho que sim, porque lá fora o andamento também é diferente. Se calhar, aqui em Portugal, há MCs que entram no álbum de outros apenas porque são amigos. Enquanto lá fora já se leva a cena de uma forma mais profissional. Mas se desse um beat ao Sam [The Kid] ou a outro MC da velha escola iria sentir a mesma responsabilidade, o mesmo peso.
Achas que tentaste fugir aos convites mais óbvios?
Sim, mas sem deixar de ter uma presença oldschool! Isso para mim era importantíssimo. Daí ter enviado um convite ao Fuse, com quem já falava há algum tempo. Nessa faixa, “Um Dia Novo”, gravou primeiro o Ruste Juxx. Depois disso mostrei ao Kappa Jota que quis logo participar também. Mas pensei que aquele som pedia um refrão possante, então a primeira ideia que tive foi logo chamar o Fuse.
Uma coisa é fazer as tuas produções, os teus beats e os teus sons, sabendo o significado pessoal que têm para ti. Como é que te sentes quando o MC põe as palavras dele por cima dos teus sons? Pode dizer-se que os MCs dizem aquilo que estás tu a pensar?
Completamente. Eu não vivo com muitas expectativas, mas tinha muita fé nos beats que enviei às pessoas e também no briefing que passei aos MCs. Posso-te confessar que a música que ficou mais fora foi a do Stig of The Dump [“Steel Intellect”], que é britânico. Só que ele também estava numa fase mais zangada da vida. Por outro lado, ainda bem, porque o objectivo era que o disco passasse todas as emoções: eu sou uma pessoa alegre, mas também sou emotivo. Eu também tenho as minhas revoltas e zangas.
No meio de tanto beat diggin, como é que sabes que tens o sample certo para aquilo que queres dizer?
Acho que é pela intuição.
Quando sentes pele de galinha? Há uma reacção física?
Também! Há pouco dizias-me que sentes que é um disco é pesado e eu concordo, porque também vou à procura de samples carregados de emoção e com uma carga dramática. Os samples e os beats têm de me remeter a um sítio sombrio – não necessariamente triste – e isso também ajudou a puxar os MCs para o sítio que eu queria.
Os cuts do disco foram praticamente todos feitos pelo DJ X-Acto. Pode dizer-se, por isso, que ele teve um papel importante no Vivificat?
Foi o meu braço direito. Aliás, ele foi as minhas mãos a fazer o scratch. Eu comecei na música como DJ, mas nunca fui um grande scratcher. Já nos outros EPs dava os scratchs ao Nel’Assassin ou ao X-Acto. Neste disco ele até comentou comigo que foi um trabalho diferente porque a maior parte do pessoal que lhe pede os cuts, não são específicos. “Faz só aí uns scratches.” E eu não: eu já sabia o que queria dele e então era muito específico. Demo-nos muito bem e acho que até deu-lhe pica, por estar a trabalhar com alguém com opinião e certo do que queria, mais exigente.
Passaste a tua infância em Macau. Isso reflete-se no teu nome artístico, Sensei D, e em mais o quê?
Em termos musicais, ajudou a que tenha crescido a compreender tantos estilos de música. Mas mesmo estando em Macau até aos 12 anos, viajei muito. Vinha a Portugal nas férias, mas estava perto de muitos outros países. Desde sempre que gosto da cultura chinesa: da comida, da música. Isso vem colado na minha vida, mas também na minha alcunha de hip hop. Sou o Sensei D, mas não procuro só samples chineses, mas há uma marca, claro. Por exemplo, na primeira faixa, “Vivificat”, com o Puro L, há um sample de uma caixa chinesa
De onde vem o interesse pela produção?
Comecei por fazer DJing. Ouvia muita música, mas depois comecei a interessar-me pelo hip hop. Às tantas, e quando se ouve vários géneros de hip hop, chega-se a uma altura em que se pergunta: “e se fosse eu a fazer?”
Quando é que isso te aconteceu?
Estava na faculdade, já. Lembro-me de pedir a um amigo, meio nerd dos computadores, para me arranjar o Reason e o Fruityloops. E comecei por aí. Mais tarde passei para a MPC, que era a que o Premier usava!
Ainda é a MPC que usas para produzir?
Sim, ainda hoje estou com ela: uma MPC2000. Tenho um controlador midi para umas notas complementares, mas construo tudo na MPC.
Em breve vais ter um novo desafio: vais ser formador num curso de hip hop na Restart, nos módulos de sampling. Como surgiu esta hipótese?
Foi com enorme honra e prazer que aceitei o convite do Rui Miguel Abreu, responsável dos cursos. Nunca pensei que a minha alcunha de Sensei viesse a ter esse verdadeiro significado! Eu já tive aulas na Restart e agora vou eu dar aulas! Lá está: é o Vivificat!