A música electrónica e a arte sonora nesse domínio são amplos campos de acção, onde o uso de ferramentas tecnológicas próprias, que modificam ou criam o som, conferem esse atributo numa linguagem à parte. O Semibreve vem mostrando mais e mais exemplos distintos desse vasto território de actuação, procurando ser palco para novos sentidos e convidando a diálogos entre partes desse imenso todo. O epílogo desta edição do festival, que repartiu 17 actuações em 4 dias, tem nas derradeiras 3 uma certa dose de antologia. Reunindo propostas que exploram a acústica espacializada, quer seja a que se transfigura por via digital quer a de sinal digital como fonte criadora do espaço acústico; quer também pelo confronto tecnológico e geracional de máquinas de som e seus artistas.
No requinte e austero Salão Medieval da Reitoria da Universidade do Minho, uma mesa-pedestal central contém dois instrumentos fora do esperado neste dias de electrónica. Um acordeão de teclado e um metalofone são as ferramentas de base para o que a multi-instrumentista Yara Asmar se propõem a servir com Stuttering Music. Contudo, um generoso dispositivo de pedais está na mesa com intenção clara de servir para o que se seguirá. Desprende o fole em notas que prontamente preenchem na acústica um ambiente flutuante com “in fields of translucent pearls i am the richest man in the graveyard and i will never have to bury anyone i love ever again”. Sim, é título de uma das peças contidas de Stuttering Music, mas conta por si um desígnio. E a carga de uma vida poética sobressai em seguida quando traduz na electrónica o sinal. O sentido digital redobra-se uma vez que os pedais trabalham a fonte sonora pela destreza dos dedos. Fantasmagorias ecoam e percorrem o espaço. A música escuta-se em respirares, profundamente. Fica posta em urdidura um entrelaçado de som acústico e digital, análogo ao que se imagina por via dessa fruição. Quando das peças de metal da caixa ressonante faz expandir vibrantes ondulações como em “may”, é como se perfumasse o ambiente e nisso revelando os graus da sua arte por completo. “all that has been seen will have been seen for nothing” é perdurado sem mácula, porque aqui some-se o tempo sem pesar. Uma prestação continuada, oscilante, onde se intervalam fole, metais e pedais numa maré que transporta para um lugar que não aquele concreto espaço de onde tudo parte. E repesca-se mais um título tão eficaz como descritor da música, quando resolve a isso chamar “there are easier ways to disappear (but i’m only good at this one)”. Asmar é um dos nomes que melhor se revela e se traz de volta connosco destes dias com um sorriso indisfarçável.


Cruza-se o que a cidade contém num solarengo domingo outonal — fluxo de gentes dispostas a captar o que a tarde traz. Quem sai em direcção ao Theatro Circo, fá-lo porque ainda há mais a colher deste Semibreve, derradeira dose dupla na secular casa-mãe das artes cénicas bracarenses.
Um encontro entre partes titânicas, mas desiguais, pelo tempo e no modo. Depois da estreia do encontro musical de Actress e Suzanne Ciani no londrino Barbican em Maio, o Semibreve serve de epilogo final deste bom confronto de dois tutelares de linguagens electrónicas, à partida tão distantes. Uma mesa ampla capaz de conter o vistoso Buchla 200e, sintetizador modular inseparável de Ciani, e os comados tácteis bem mais discretos de Actress. Um literal frente-a-frente, mas em que raramente se viram de olhos nos olhos. A estabelecer o diálogo, um dispositivo em quadrifonia colunar, como se víssemos os quatro cantos de um ringue. O amassar aqui é por via sonora, também a sala do Circo está em modo ambissónico. Há um oculto e laborioso encaixe prévio de engenharia sonora, para que no ritmo modular de síntese caibam intervalos vazios. É aí que Darren J. Cunningham (aka Actress) inscreve o seu subtil e crescente ritmo não convencional. Ciani é prontamente a fonte de fluxos totalitários do espaço disponível — imenso neste lugar de maravilhamentos. “Concrète Waves” é o nome explícito e que se lê de olhos fechados, são evidentes as interactivas ondas que se instalam, vindas de vários lados — imprevistas, e que contêm surpreendentes entidades sonoras que assaltam o espaço em desgrenhados voos. Suzanne Ciani tem essa capacidade emanadora e nota-se-lhe uma fácies de satisfação aqui e acolá quando isso acontece. Actress segue compenetrado e a certo momento a sua batida já é a matriz do ondular. Perante cada onda concreta, cabem muitas abordagens, mas o mergulhar ou o deixar levar são as mais frequentes. Torna-se concreto quem é quem neste embate sonoro, quem traz o quê — nem sempre é assim evidente. A imaginada hibridação foi menos concreta e comensurável, mas enquanto durou o diálogo houve ondulação, suave e com diversos momentos até de acalmia. No plano racional denotaram-se falhas técnicas que condicionaram a prestação de Actress mais para o final, porém quando o emocional se restabeleceu seguiram viagem rumo ao futuro. Aí situados, foi um mais… E como se termina isto?



Desfecho com foco de palco para Grand River, alter ego de Aimée Portioli. Ela que em entrevista ao Rimas e Batidas deixava transparecer um anseio para a sua prestação: “Que experimentem um momento de separação do que as rodeia, como se fossem transportadas para outro lugar por um tempo”. Estávamos de acordo na vontade. Em bom auxílio, há uma forte alusão sonora em sala — o vento. Tuning The Wind é o trabalho mais recente editado dos quatro álbuns como Grand River. Recolhas de campo, que a compositora trabalhou e modificou para primeiramente serem apresentadas como instalação sonora em 2020. A capa do disco denota o processo de construção. Camada sobre camada, numa estratificação — vulcano-sedimentar, em fotografia algures na ilha de Lanzarote —, e entre sintetizadores e modelações, entre a expressão analógica do vento e o emular digital do mesmo. O vento que se torna mensurável no campo acústico por via dos obstáculos, é das barreiras e fronteiras que se lhe atravessam no caminho que se faz escutar em existência. Torna-se concreto pelo oscilar dos que testemunham a sua passagem — aqui somos nós, nesse papel em sala. Mas a pretendida escuta para Grand River com esta peça, que em palco cresce exacerbada em dramatismo e textura, é que se tornem indistintas as linhas fronteiras do analógico e do digital — que o vento seja sentido, seja qual a fonte. A extensão é precisa e leva-nos por diante durante 36 minutos e mais uns instantes pelo ar, num olhar estarrecido pela sublime e eficaz luz de palco. Ar quente que foi do laranja ao mais vermelho escutar. Um final de tarde rumo ao anoitecer tão aprimoradamente implantado no programa do festival.
Voltaremos tão breve quanto o tempo nos leve de volta ao saber escutar e pensar no Semibreve que há de vir. Agora cabem os momentos de uma memória tão fresca e recompensadora de ter tido lugar em tudo isso.


