A frase que repetidamente dita a canção, para lá de muitas vezes, “This Is Not A Love Song” que John Lydon como porta voz dos pós-punk Public Image Ltd debitou, serviu o intento em grande medida. Haveria de ficar marcada, afirmando uma ideia que assentava numa recusa, na anti-ideia como ideia de princípio. Popularizando uma canção que partia do pressuposto simples e directo de não querer ser mais uma cantiga de amor. Da mesma forma, em conteúdos tão esteticamente distantes, podem ser observados aos dias da electrónica de hoje as primeiras propostas retiradas da programação do terceiro dia do festival Semibreve em Braga. À partida, num alinhamento de festival de música esperam-se concertos. Mas caberão, e por outras mais razões, propostas sonoro-musicais que estarão num contexto estético que as arreda do lugar habitual de concerto e até do sentido estrito da música propriamente dita. O Semibreve, em quinze edições, habituou-nos a muitos momentos de fazer pensar, sempre e quando na escuta há um além do ouvir.
Nada despropositado que no programa haja como começo do dia, após aulas magistrais e partilhas de saber com que respectivamente Ava Rasti e Lyra Pramuk iniciaram a jornada, um convite à conversa para “À escuta de perturbações temporais” com Nuno Fonseca. Veio tão a propósito do que a noite traria para a noção de som como matéria primordial da música, e mesmo fora dela. Passando em voo de pássaro alguns dos nomes e conceitos chaves na abordagem filosófica da música e artes afins contemporâneas. Partindo da noção de Edgar Varèse, para quem a música era o som organizado. Indo das ideias contidas em “Sonic Flux” trazidas por Christoph Cox, destacando o lugar da arte sonora. Passando invariavelmente por John Cage, a propósito de que a música é uma continuidade onde o lugar de escuta entra como acção que a interrompe. Tendo bem presente a separação do ouvir (como acto de domínio físico) e do escutar (na esfera psicológica), Fonseca vincou em análise que escutar relaciona-se para além disso. Escutar está também, e muito, relacionado com o ambiente e aspectos sociais. E nessa reflexão damos conta que todos e todas seremos actores e actrizes do som, e não apenas meros espectadores/as.
A essa percepção de intervenção, em partilha num processo individual, trouxe a compositora Ava Rasti The River à Capela Imaculada do Seminário Menor. Uma experiência pessoal, vivida nas margens do rio Piave em Itália, transpondo andamentos que comportam a dor e o sofrimento em memória do lugar. Da sua arca dos sons encadeados, feita de trechos recortados, em muito transformados de prévias obras musicais, disposta em disco em 7 andamentos, faz juntar a convite um quarteto de cordas em estreia absoluta à peça. Dois violinos a cargo de Filipa Abreu e Vânia Oliveira e dois violoncelos operados por Catarina Coelho e Tiago Mendes. Um quarteto de duas duplas instrumentais, como num reforço da intensidade das vozes dolentes pretendidas. O lugar é exponencial à propagação sonora. A estrutura em abóboda suspensa, que ora se vê a levitar sobre nós ou a proto-encapsular quem assiste, traz acréscimos significativos a cada actuação aqui presenciada. E como num subtil propósito, o detalhe do fio de água que escorria e se ouvia entre andamentos era sublime, já que era um quase silêncio o que havia a ligar a escuta solene das partes. Uma arraste dolente e sentido, convocando as memórias da dor, mas numa procura curativa. A tensão das cordas ampliava o tom de tristeza envolta pela harmonia em simultâneo. Para desfecho, desigual à sequência no registo discográfico, trouxeram “Embrace The Abyss”. E como as notas, que se transcrevem deste andamento de The River, surgem tão cheias de sentido as da própria compositora à memória recente do escutado: “Um tímpano elementar em queda livre que obedece apenas ao seu próprio ritmo e evoca cenas de tempestades terríveis”. Talvez — oxalá — tenha sido mais um conserto interior dos conflitos, como resultado do concerto propriamente em escuta.


Para a violoncelista, em performativa e exploratória prestação, Lucy Railton com “Not A Word From Me” havia uma assunção de um anti-espectáculo. Ideia inteiramente assumida aquando da recente estreia no De Singel International Arts Centre (Antuérpia) no início deste Outubro. Uma proposta por encomenda do próprio Semibreve com a De Singel, ICA e os festivais CTM (Berlim) e Fiber (Amsterdão). Uma construção entre três autores, juntando os sons de Railton, o desenho de luz de Charlie Hope e a arte vídeo de Rebecca Salvadori. Uma proposta de “um espaço despojado onde o significado emerge através da possibilidade, e a presença é sentida tanto no que é ocultado quanto no que é revelado”, como revelado a três. Parecia (quase) tudo caber e ter lugar dentro dessa possibilidade. Soube-se que, em Braga, Salvadori não estaria presente. Imagens na grande tela de fundo não faltaram, mas souberam escassas ao prometido e assistido da sua autoria na edição transacta do festival com Saint Abdullah, a dupla Eomac para “A Forbidden Distance”. Railton teve dupla passagem recente e por perto, no lisboeta CCB, no seio do Soundwalk Collective com Patti Smith e depois com Kali Malone e Stephen O’Malley para Does Spring Hide Its Joy. Dois momentos distintos e apartados da sua construção mais autoral que por outro lado nos declara no seu bem recente Blue Veil.
Momento pois de enorme expectativa para ver como seria este “Not A Word From Me” e que partia também ele de uma centelha prévia sua. Tema advindo de Corner Dancer, álbum de 2023, onde nessa breve faixa parece apontar para uma canção de embalar feita de estranhas possibilidades assustadoras, entre golpes de chicote e arranhadelas produzidas. É precisamente esse o ponto de partida em palco neste “Not A Word From Me”. Assumido muito antes das cordas do violoncelo a mesa de trabalho feita banca de laboratório sonoro. As luzes servem-se em focos cruzados — ilumina-se o ponto da acção e ainda sem vídeo. Esse primeiro exercício, cuja a presença mais significativa na na narrativa, vem deste passado recente que o liga à obra de Railton bem mais que ao momento narrativo presente. Aos comando dos arco sobre as cordas massifica a atmosfera com cascatas de harmonias em microtonalidades num entreter paciente de um algo a revelar — um convite lento à espera. Uma organicidade nas cordas que intervala com o inorgânico maquinal aos comandos de objectos sonoros que chegam ao elementar manipular de uma ficha de cabo. Activação e persecução sónica como revelada na palavra escrita no pensamento em voz alta — “I was thinking about the light spinning on its axis, locked in its own cycle, everything can move in relation to that”. Assumida uma ideia de rumo, como visualmente apontam os reflexos em fluxos de plasmas. E torna-se mais clara a tentativa de planos sensoriais distintos. Um microfone hiper-amplificado em rodopios — o som como luz, em torno desse eixo central. O voltar às cordas desta feita de um violino que soa a monstruosidades, numa procura de estados de sinestesia com o risco que o resultado varia de pessoa em pessoa, de uma percepção em tudo aberta. Voltando, e terminando no que melhor lhe cabe em mãos, o violoncelo é um lugar de harmonia até ao final em desvanecer. Exercícios aparentemente desligados que teimaram em transpor o palco como algo mais que isso mesmo, capazes de configurar ideias de maior entusiasmo por quem efectivamente logrou estados de estimulação neurológica.


Para terminar a dupla proposta na noite do Theatro Circo, apresentavam-se emptyset. Uma peça sonora denominada “Dissever” que a dupla colaborativa de Bristol, composta por James Ginzburg e Paul Purgas, apresentou na Turbine Hall da Tate Modern em Londres. Na altura a propósito da exposição “Electric Dreams”. Dissever resultou como álbum em sete faixas, com fundamentos sonoros massivos e irredutívelmente maquinais. Uma sonoridade transposta ao palco do Circo no Semibreve servida numa dupla possiblidade lumínica. Se na frente operava intermitente uma luz quente em sinal de aviso visual encadeando à vista desarmada e de frente, no fundo de palco, sobre uma torre de estrados, um feixe de luz espatulada capaz de conter jogos de nuvens a pairou sobre a plateia. Se na apresentação anterior a luminotecnia parecia ter ficado aquém do esperado, agora aqui neste “Dissever” cabe destacar o trabalho bem conseguido por Marcel Weber/MFO. Transfigura-se a luz espacial como fissura, como diaclase temporal de transporte efectivo para o lado da máquina a operar nesse assumidos anos da técnica ao serviço na década de 1960. Sons ciclópicos, plenos de arestas e relevos analógicos. Uma demonstração de opacidade que remetia para imaginar figurações de um corpos sonoros como atractores, convidando a um centro. Tudo num sistema dinâmico partindo de diferentes pontos a cada nova peça despontada, mas que remetiam a um particípio passado. Um ir e voltar, numa cápsula do tempo que nos traz de volta este inquieto presente.
Foram, entre outras, três possibilidades de configurar de que como a ideia de “concerto” ficou de todo em todo arredada destes palcos no alinhamento programado. Som, música, luzes e experiências assenta-lhe melhor nesta arte de estímulos que nos deixam às voltas, e ainda bem quando assim é.

