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Fotografia: Adriano Ferreira Borges / Semibreve
Publicado a: 24/10/2025

A música como impulso para uma reflexão sobre o mundo que nos rodeia.

Semibreve’25 — dia 1: entre o espaço e o tempo

Fotografia: Adriano Ferreira Borges / Semibreve
Publicado a: 24/10/2025

A 15ª edição do Semibreve teve ontem início na Basílica dos Congregados com a música de Heinali & Andriana-Yaroslava Saienko e o que poderia ter sido “apenas” um concerto transformou-se num gesto de comunhão entre passado e presente, entre tradição vocal e síntese modular, entre a história de um país em guerra e a reverberação intemporal de um templo barroco no centro de Braga. Regressa assim ao nosso complexo e convoluto presente um dos mais desafiantes cartazes musicais do calendário nacional, que se prolongará até ao próximo domingo com performances em diferentes espaços da cidade.

O ponto de partida desta edição do Semibreve foi o álbum Гільдеґарда (Hildegard), editado pela Unsound já em 2025, trabalho em que o compositor ucraniano Heinali (nome artístico de Oleg Shpudeiko) mergulha em manuscritos da mística medieval Hildegard von Bingen e que conta com arranjos vocais da cantora e musicóloga Andriana-Yaroslava Saienko. Se o disco já convocava a sensação de tempo distendido, com drones a sustentarem melodias ancestrais, o concerto trouxe esse mesmo universo para um espaço que parecia destinado a acolhê-lo.

Andriana-Yaroslava, de pés descalços para melhor se ligar ao momento e ao lugar, fez ressoar na nave da basílica um canto enraizado nas tradições da Ucrânia, mas também tocado pela solenidade da música sacra medieval. A sua voz soava como se tivesse sempre habitado aquele lugar, entre o folclore e a liturgia, entre a memória e a invenção. O seu timbre cristalino, quase ascético, encontrava no eco do espaço uma extensão natural — prolongava-se no ar, transformando cada silêncio em parte da frase. E harmonizava de forma perfeita com as molduras de grão electrónico com que o seu companheiro a serviu.

Heinali, ao seu lado, manipulou o sintetizador modular como se manuseasse um órgão de fole invisível, esculpindo no ar figuras de enorme beleza textural e demonstrando um grau de controle determinado do instrumento algo invulgar, tendo em conta a inexistência de qualquer interface convencional, como um teclado, por exemplo. Drones de baixa frequência e camadas harmónicas expansivas criaram uma base tímbrica profunda, que tanto sustentava a voz como reclamava, em momentos solistas, um protagonismo próprio e absolutamente hipnótico. Nessas passagens, a eletrónica assumiu uma intensidade quase tectónica, em que cada harmonia parecia abrir o espaço em múltiplas direções, como se a arquitetura fosse dobrada pelo som.

E, como que para lembrar que não há música sem tempo nem lugar, o sino da torre também se fez ouvir, marcando a hora e integrando-se de forma perfeita na performance. O acaso transformou-se em parte do concerto: a vibração metálica entrelaçou-se com os drones, acrescentando uma camada de realidade ao que até aí parecia ritual num tempo suspenso. Um instante de fusão absoluta e perfeita — entre música e cidade, entre a performance e o mundo que a rodeava.

A biografia de Heinali ajuda a compreender o peso desse gesto. Compositor autodidata, activo desde 2003, construiu um percurso que se estende da música eletrónica ao minimalismo, com incursões pela música ambiental e pela música generativa. Mas desde a invasão russa da Ucrânia que a sua obra ganhou um novo eco: transmitiu em direto do seu estúdio em Kiev durante os bombardeamentos, trabalhou sobre manuscritos medievais como quem procura raízes mais profundas em tempos de destruição. A parceria com Andriana-Yaroslava — cantora que tem investigado repertórios antigos e práticas vocais tradicionais — acentua essa ponte entre eras e geografias.

Na Basílica dos Congregados, tudo isto se condensou numa experiência simultaneamente espacial e capaz de nos carregar através do tempo. O canto evocou uma funda história de séculos de resistência cultural, o modular projectou futuros possíveis, o sino lembrou o tempo real e o lugar concreto da cidade, e a acústica ampla da basílica transformou cada som em acontecimento de ressonância plena.

O festival abriu, assim, com uma afirmação solene e firme: de que a música pode ser espaço de encontro, de que a escuta pode ser uma forma de memória e, sobretudo, de que mesmo em tempos de obliteração do tempo da contemplação e do peso da verdade é ainda possível usar a música como impulso para uma reflexão sobre o mundo que nos rodeia. O sino que assinalou as 10 horas da noite deixou isso muito claro, mesmo se em vésperas de mais uma sazonal mudança de hora que nos relembra que, afinal de contas, até o tempo precisa de se acertar com os ciclos naturais.


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