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Fotografia: Adriano Ferreira Borges
Publicado a: 29/10/2022

De elevada intensidade.

Semibreve’22 – Dia 2 (Theatro Circo): drones, reverbs e teias harmónicas

Fotografia: Adriano Ferreira Borges
Publicado a: 29/10/2022

Três concertos reservados para o Theatro Circo no segundo dia da emissão 2022 do Semibreve, que decorre em Braga até amanhã, domingo: KMRU, François J. Bonnet & Stephen O’Malley, ambos na sala principal, e ainda David Maranha, que se apresentou no pequeno auditório.

Houve um prelúdio na forma da “talk” que J. Bonnet e O’ Malley tiveram no gnration com Bartolomé Sanson, uma das pessoas que dirige os destinos da Shelter Press. Nessa conversa, François J. Bonnet, que é o actual director do INA-GRM, e Stephen O’Malley, que sempre associámos à verdadeira “instituição” Sun 0))), tiveram a oportunidade de discorrer sobre as dinâmicas da colaboração, o peso histórico do GRM e a importância do seu legado (que foi mantido vivo através da Recollection GRM, selo de reedições criado em colaboração estreita com a Editions Mego). A óbvia cumplicidade que os dois músicos exibiram foi claramente transposta, umas horas depois, para cima do palco.

A noite no Theatro Circo, no entanto, arrancou com a apresentação de KMRU: de vulto recortado pela abstracta projecção gráfica que preenchia na totalidade o fundo de palco, o produtor queniano actualmente baseado em Berlim, perante um setup que, embora não fosse exactamente observável a partir da plateia no que aos seus componentes tecnológicos dizia respeito, apresentava uma disposição típica de uma qualquer performance de um DJ, actuou quase imóvel entregando à música todo o protagonismo, num espectáculo pensado para conduzir à imersão e a um estado de semi-consciência alterada. Drones abrasivos, de texturas quase industriais e metálicas que efectuaram tangentes ao silêncio e aos abismos de graves permitindo, de forma esporádica e difusa, que uma ideia de presença humana despontasse aqui e ali, muito provavelmente resultando de gravações de campo que incluíam vozes distantes e se tornavam depois parte da massa sonora que KMRU conjurou e que foi manipulando em termos de frequências. Mergulho intenso, sem dúvida.

Por oposição, o que na performance de KMRU surgiu como um bloco maciço de som, virou quase silêncio no arranque do concerto da dupla formada por François J. Bonnet e Stephen O’Malley. Em palco eram visíveis amplificadores, duas guitarras e uma panóplia não discernível de pedais e outras máquinas. Imersos na penumbra, sem qualquer auxílio visual, os dois músicos elegeram como único “artificio” extra-musical o fumo aromatizado de algo como incenso ou salva que acenderam logo no arranque da sua viagem. E de forma progressiva, ambos foram urdindo uma densa teia de texturas harmónicas em suspensão, com O’Malley a soar particularmente massivo extraindo da sua guitarra, amplificadores e pedais o que soava a destilação em desaceleração extrema de todas as intros de guitarra nos concertos dos Crazy Horse de Neil Young fase Weld ou algo que o valha. Tudo isso envolto num suporífero reverb que, juntamente com o leve perfume que o fumo espalhou pela sala, teve em momentos pelo menos o sabor de experiência ritualística e xamânica. Quando no final, O’Malley, na pose mais rock and roll da noite, ergueu bem alto a sua guitarra, deu para perceber que era aquele o simbólico artefacto no centro do ritual em que, se calhar sem termos exacta noção disso, todos e todas tínhamos acabado de participar.

E foi ainda com este torpor físico e espiritual que se desceu às entranhas do Theatro Circo para se assistir, no pequeno auditório, à performance de David Maranha, um dos decanos da experimentação musical em Portugal que se apresentou com órgão processado por um conjunto de pedais e outros efeitos que foram sendo geridos com uma mesa de mistura posicionada lateralmente. Ao início, o órgão serviu “apenas” para gerar “clusters” de notas que depois eram esculpidas através dos efeitos e da subtil manipulação das frequências através da mesa, criando uma densa massa sonora. Mas com o avanço do concerto, Maranha foi progressivamente extraindo mais e mais massas harmónicas do pequeno órgão, urdindo uma espécie de híbrido entre o minimalismo clássico americano e os drones-noise de escolas mais recentes, algo que convidou, uma vez mais e tal como já tinha acontecido com as anteriores apresentações, ao mergulho de olhos fechados e ouvidos bem abertos. “Intensidade” é palavra que se pode aplicar aos três concertos, sem a menor sombra de dúvida.

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