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Fotografia: Adriano Ferreira Borges/Semibreve
Publicado a: 01/11/2021

A virtude está na dissonância.

Semibreve’21 – Dia 4: do trio mais ruidoso à face da terra a uma surpresa chamada AG.R97

Fotografia: Adriano Ferreira Borges/Semibreve
Publicado a: 01/11/2021

O último dia da edição de 2021 do Semibreve trouxe, uma vez mais, a natureza duracional da performance a espaços análogos ao Theatro Circo e gnration. Depois da apresentação de Sea of Fertility, pela britânica Flora Yin-Wong um dia antes na Capela Imaculada do Seminário Menor, foi a vez do Salão Medieval da Reitoria da Universidade do Minho acolher a estreia de Generations, peça para electrónica e violoncelo composta pela americana Yvette Janine Jackson

Situada entre a instalação e a prática performativa, a peça, interpretada ao vivo pela violoncelista australiana Judith Hamann, equilibrou classicismo moderno com sintéticos apontamentos eletrónicos, emitidos como pano de fundo através de um sistema de som multicanal. Entre motivos distantes de piano, batidas discretas e algumas gravações de campo, a dupla — cuja relação remonta ao início da última década — colocou a paciência dos poucos espectadores que se encontravam no salão à prova, talhando desafiantes exercícios de audição profunda, tão física quanto psicologicamente exigente.

Paralelamente, no gnration, decorria o último de dois momentos do Foco, uma nova iniciativa do festival centrada nos valores emergentes da electrónica feita em Portugal. Depois de um showcase focado na editora portuense Mera, no dia anterior, a turva promoveu um serão multidisciplinar que incluiu cinco concertos — em formato nonstop — com projecções em tempo real pelo estúdio AALTAR System. No que diz respeito ao signatário destas linhas, a experiência cingiu-se exclusivamente ao último e surpreendente espectáculo do roteiro desenhado por Alexandre Alagôa e Luís Neto. 

O enigmático projecto AG.R97, que se seguiu aos concertos de Lorr No, Vasco Lé, Funcionário e Alagôa, apresentou uma das mais admiráveis propostas desta edição, alinhando baixo, bateria e electrónicas de modo inventivo. Carregados de talento e boas ideias, o “power trio” electrónico surpreendeu pelo ímpeto com que se atirou a cada uma das matérias acústicas, com destaque para a bateria — tensa e pungente — e o uso idiossincrático da voz, mergulhada em doses q.b. de auto-tune. 

Já no Theatro Circo, o programa da 11ª edição do Semibreve finalizou-se com duas propostas distintas, mas vinculadas por um ímpeto em comum: a dissonância. O encontro em palco entre o libanês Rabih Beaini e as harpistas Angélica Salvi e Eleonor Picas — a última de cinco provocações em forma de colaboração feitas pelo festival — foi a primeira e conciliou a formação clássica das últimas com os guturais exercícios vocais do músico, que se apoiou de uma colossal parede de amplificadores e de um pequeno arsenal de guitarras-slide para conjurar novos e admiráveis mundos onde a vanguarda e o classicismo fazem fricção.

O último momento do Semibreve foi reservado aos noruegueses Supersilent, nome maior do agitado mapa do jazz norueguês que assinalou a sua estreia em território nacional no festival. O supergrupo mais pequeno do mundo, que tem na sua formação Helge Sten (Deathprod), Arve Henriksen e Ståle Storløkken — três notáveis dos campos mais livres da composição moderna — trouxe consigo duas décadas de experiência e mais de uma dezena de trabalhos de grande respeito e aclamação ao palco do Theatro Circo, conciliando derivas ambientais obscuras com os ecos quartomundistas de Jon Hassell — aqui guiados pelo trompete de Henriksen — e a mais violenta improvisação livre. E foi precisamente nestes momentos de maior tensão, autênticos ritos de adoração à desordem, que o grupo conquistou os maiores aplausos do público, visivelmente entusiasmado com este festim feito de extremos. 

Entre o ruído e o quase silêncio, os Supersilent (ou o que pareceu ser o trio mais ruidoso à face da terra) demonstraram, com todo o profissionalismo, que a virtude também pode estar na fricção, e que o risco ainda é o maior combustível para a criação artística.

“Braga tem um tesouro, e esse tesouro chama-se Luís Fernandes”, dizia-nos, um dia antes, Rafael Toral, num agradecido discurso após a sua actuação no Semibreve. E, de facto, o festival liderado pelo autor de Demora (que assume essa posição desde 2011) é de uma importância e preciosidade raras, um bálsamo para os amantes dos mais recônditos becos musicais dos nossos tempos.

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