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Fotografia: Adriano Ferreira Borges/Semibreve
Publicado a: 26/10/2019

Da proposta de um histórico veterano como Morton Subotnick à de uma jovem turca como Ipek Gorgun vai a distância de um continuum electrónico que tem sabido inventar novos mundos para cada geração.

Semibreve’19 – Dia 1: da construção de um novo mundo musical à tradução sonora do colapso da civilização

Fotografia: Adriano Ferreira Borges/Semibreve
Publicado a: 26/10/2019

A edição 2019 do Semibreve traduz na sua orientação programática uma resiliência admirável. De facto, o evento que conta com direcção artística de Luís Fernandes aponta às mais elevadas esferas da electrónica experimental contemporânea sem fazer qualquer tipo de cedência, digamos, “populista” que pudesse plantar no meio do cartaz algum nome de “digestão” mais fácil, como tantos que, movendo-se ainda nos domínios da electrónica, estão hoje associados às bem cotadas esferas usualmente identificadas como “modern classical”. Nada disso, e o programa para o dia inaugural do festival é dessa capacidade de manter a fasquia elevada perfeito exemplo.

O cartaz apresentado este ano é, por razões de ordem diversa, especialmente importante para o signatário destas linhas e justifica uma nota de esclarecimento na primeira pessoa: não apenas porque fui convidado a moderar um par de conversas com dois artistas que há anos admiro — o britânico Robin Rimbaud, aka Scanner, e a norte-americana Suzanne Ciani — mas também porque dele constam algumas das minhas mais antigas e arrebatadas paixões musicais — casos de Morton Subotnick, o veterano do San Francisco Tape Music Center que descobri ainda nos anos 90, ou da já citada Ciani, compositora de que me tornei irredutível seguidor e coleccionador desde que em 2011 ela entrou na esfera da editora Finders Keepers Records — e alguns dos artistas cuja obra mais influenciou o meu próprio pensamento crítico, como sucedeu com Kode9, o patrão da Hyperdub (Sonic Warfare, o livro que assinou como Steve Goodman para a MIT Press em 2009, é uma obra essencial para se compreender como reagem os corpos perante assaltos sónicos de intensidade extrema, como tantas vezes acontece em contexto de concertos ou de clubes e, verdade seja dita, no próprio Semibreve).

Foi precisamente com a conversa com Scanner e com o realizador Miguel C. Tavares, tida no Laboratório de Inovação de Braga, que começou a edição deste ano do Semibreve. Robin Rimbaud tem trilhado um percurso muito particular nos últimos 25 anos, nas mais avançadas margens da música electrónica de dança, usando esse especial contexto como espaço para o ensaio de relevantes ideias sobre os limites da privacidade, o papel das tecnologias de vigilância, as possibilidades do sampling e os efeitos da memória. Conversador nato, de um refinado sentido de humor, Robin apaixonou uma atenta plateia com as suas histórias, revelando como desde a infância se tem dedicado a gravar o mundo, o seu mundo, e como se tornou um ávido e dedicado arquivador da sua própria memória sonora. Reflexões sobre a evolução dos suportes de gravação — as cassetes são o seu formato de eleição, admitiu — e sobre o futuro do seu impressionante acervo privado — estabeleceu uma fundação que há-de funcionar como centro de pesquisa numa antiga fábrica têxtil no centro de Inglaterra que adquiriu e converteu ao longo dos últimos anos — mantiveram a plateia enredada no seu discurso até ao último minuto.

A primeira das apresentações no Theatro Circo coube a Morton Subotnick, um dos mais relevantes pioneiros da música electrónica, o primeiro compositor a criar um álbum construído em torno de um sintetizador de voltagem eléctrica, o mítico Buchla 100 que se escuta no registo de 1967 Silver Apples of the Moon, o primeiro com uma peça electrónica pensada directamente para o formato do LP de 12 polegadas e 33 rotações e que se revelou, na sua edição original pela Nonesuch, um inesperado sucesso nas tabelas de vendas de música erudita. Antes do concerto, o veterano compositor de 86 anos sentou-se comigo para uma breve conversa em que explicou como nos anos 60, perante todas as transformações que então estavam a decorrer no mundo, percebeu que o clarinete e o contexto da música clássica já não o satisfaziam e que só o estabelecimento de uma nova linguagem e de um novo pensamento musical lhe interessava. Esse espírito exploratório, percebeu-se durante a sua apresentação, não esmoreceu nem um pouco, mesmo volvido mais de meio século após as suas primeiras edições discográficas.

O concerto contou com imagens de profunda beleza abstracta a cargo de Lillevan, que, certamente consciente do contexto histórico que viu Morton Subotnick dar os primeiros passos enquanto decorria o “Verão do Amor” e da contracultura na Califórnia dos sixties, nos ofereceu a dada altura texturas que pareciam resultar de uma leitura digital dos espectáculos com slides de óleo colorido na São Francisco psicadélica. E a essa moldura visual, Morton Subotnick respondeu com uma viagem imersiva, em que usou as potencialidades quadrifónicas do sistema de som para fazer circular pelo espaço aural diferentes bleeps e bloops de profunda beleza, erguidos à custa da manipulação de um sistema modular, que à distância parecia um Buchla Music Easel, ligado a um laptop. A sua própria voz, altamente processada, foi outra das fontes sonoras que usou para povoar o espaço acústico do Theatro Circo com abstractos pulsares texturais que arrancaram justos aplausos ao fim de pouco mais de uma hora de actuação (e a exclamação “é um dragão!” a um espectador mais efusivo).

Alessandro Cortini foi o senhor que se seguiu. Ao Semibreve, o músico e compositor italiano trouxe Volume Massimo, a sua mais recente criação que mereceu edição da Mute no passado mês de Setembro. Com o Buchla por principal ferramenta textural, a música de Volume Massimo parece um estudo mais cerebral sobre a noção de rave, algo que se depreende não apenas das oblíquas aproximações ao techno mais abrasivo, com passagens com evidentes, embora por vezes descompassadas, bases rítmicas, mas também pelo acompanhamento visual. A apresentação é acompanhada de uma série de clips que exploram uma estática, extática e estética (perdoem o excesso adjectival) relação de corpos com arquitectura, numa belíssima sequência de quadros que culmina num assombroso momento em que vários braços se revelam por trás de uma coluna de madeira branca. Belíssima e intensa passagem que deixou a audiência justamente rendida.

A jornada terminou nas entranhas do Theatro Circo com a actuação de Ipek Gorgun no Pequeno Auditório, nos antípodas do espectáculo protagonizado por Alessandro Cortini. Na penumbra — só uma silhueta se vislumbrava recortada por dois discretos focos laterais —, a artista turca usou um laptop e um pequeno controlador MIDI para despejar sobre a audiência uma extrema barragem sonora, uma tradução de pesadelo que soou ao próprio colapso da civilização, poderoso, esmagador e perturbante. A actuação de apenas 45 minutos pareceu distender o próprio tempo e era visível o desconforto espelhado na linguagem corporal das pessoas que inicialmente esgotaram a sala mas que foram sucumbindo perante a avalanche sónica e abrindo brechas na plateia abandonando o espectáculo mais cedo.

Perante tão fundo mergulho, a verdade é que o corpo cedeu e a necessária gestão de energias para as duas jornadas que ainda faltam ditou que já não se conferissem as apresentações de Nik Void e Avalon Emerson no gnration.

Hoje, o dia arrancará com a já referida conversa com Suzanne Ciani, que terá lugar no Museu Nogueira da Silva pelas 15 horas, a que se sucederão espectáculos de Deaf Center (Capela Imaculada do Seminário Menor, 18h00), Oren Ambarchi & Robert Aiki Aubrey Lowe (Theatro Circo, 21h30), Drew McDowall & Florence To (Theatro Circo, 22h50), Clothilde (Theatro Circo – Pequeno Auditório, 23h59) e ainda Rian Trenor (gnration, 00h00 e Kode9 (gnration, 01h15).

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