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Publicado a: 30/10/2017

Semibreve – Dia 3: A Insustentável Beleza do Drone

Publicado a: 30/10/2017

[TEXTO] Diogo Pereira [FOTOS] Adriano Ferreira Borges

Parafrasear o título do famoso romance de Milan Kundera talvez seja a melhor forma de descrever o último dia do Semibreve, um festival quase inteiramente dedicado ao drone, que não poderia ter concluído de melhor forma com dois exímios representantes do género.

Quem entrou no Theatro Circo na tarde de domingo foi recebido por uma neblina mística, com as máquinas de fumo já a funcionar de luzes ligadas, antes de Lawrence English pisar o palco. Nada mais apropriado numa sala que recebeu a floresta digital de Gas dois dias antes e a austeridade solene de Deathprod na noite anterior.

No palco, um sistema de som a fazer lembrar uma festa de hip hop do Bronx dos 70s ou um concerto de rock: duas colunas altas e imponentes ao lado do que pareciam dois amplificadores de guitarra. No centro, pouco era possível discernir além do MacBook com o logótipo da maçã tapado pelo habitual autocolante preto e um único holofote branco atrás da mesa.

 


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Lawrence começou por se aproximar da frente do palco e se dirigir ao público, sem microfone, agradecendo à organização do festival e ao público que veio assistir, pedindo aplausos para ambos (o único artista que o fez, desta forma tão despojada e humilde), e terminando com uma palavra de apreço especial para os seus colegas Gas e Deathprod.

Mas a sua originalidade não se ficou por aqui: foi aí que convidou 15 membros do público, dando prioridade àqueles que assistiram ao seu workshop de “escuta radical” no Mosteiro de Tibães, na manhã de sábado, a juntarem-se a ele e ouvirem o concerto deitados em palco.

“This is about sound and your body” – começou por afirmar, definindo as coordenadas do concerto e reiterando os princípios estéticos da sua música – “Everybody will have a different experience”. De facto, quando disse “everybody”, sabemos que também quis dizer “every body”. Cada pessoa e cada corpo. Polissemia que não é de surpreender numa obra que se preocupa com a natureza do ato de escutar, e da forma como o corpo reage ao som, como confidenciou em entrevista à FACT.

Lawrence pediu-nos ainda que nos aproximássemos das primeiras filas para melhor desfrutar do concerto, mas que necessidade havia quando o volume da música foi tão obsceno e  a intensidade dos seus drones atingiu valores quase insuportáveis?

E foi assim, após uma breve introdução ontológica, com quinze pessoas deitadas no palco, e um público atónito, que decorreu o concerto de Lawrence English, um set que contou com excertos dos seus álbuns Wilderness of Mirrors e Cruel Optimism (ambos editados pela sua Room40) e algo que verá a luz do dia em breve, segundo as palavras do próprio, após o concerto.

Começámos por ouvir o som distante de um comboio, algo que parecia tirado de Stalker. Mas rapidamente a subtileza foi posta de parte e entrou o principal protagonista da música de Lawrence: o drone, ominoso e sinistro, envolto em enormes camadas de distorção, que foi aumentando gradualmente de intensidade até mostrar as suas garras e engolir a sala por completo, submergindo-nos a todos, como um monstro disforme, incontrolável e sobrenatural que deixaria Lustmord e Deathprod orgulhosos.

 


Adriano Ferreira Borges

Adriano Ferreira Borges


As luzes também desempenharam um importante papel na qualidade alucinatória desta música: depois do holofote branco inicial, a sala encheu-se de um vermelho-sangue e foi como se estivéssemos a ver uma cena de Valhalla Rising de Nicolas Winding Refn. Luzes essas que desapareceram a meio do concerto por momentos para se ouvir field recordings de ondas do mar a bater nas rochas, que desta vez nos levaram a um sítio de maior placidez mas igual mistério.

Mudança de registo temporária, porque foi então que um drone de baixíssima frequência voltou a encher a sala, desta vez acompanhado de luzes estroboscópicas a piscar enquanto uma névoa envolvia os corpos em palco, como cadáveres durante o rito fúnebre de uma estranha seita.

Perto do final, aquilo que pareceu o som de aviso de uma nave espacial a levantar voo antecedeu outro drone, tão grave que quase parecia uma tuba, neste dark ambient de fim do mundo. E é claro que tamanha violência tinha de acabar em sossego, com texturas bucólicas reminiscentes de Steve Roach, devolvendo-nos ao silêncio, tão importante para quem escuta estes sons.

Considerações sobre o equipamento usado são irrelevantes perante o imenso poder desta música, que se foca acima de tudo no efeito produzido em quem a ouve.

 


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Ouvir Lawrence English é sentir que todos os nossos órgãos estão à beira de falhar, os nossos sentidos já deixam de captar mensagens do mundo exterior, a nossa realidade física está prestes a deixar de ser, e nesse preciso momento, na iminência de não existir, conseguimos apenas vislumbrar pedaços de algo de uma beleza inefável, que escapa à compreensão humana. Talvez seja isto que se sente mesmo antes de morrer.

O “quase tudo e o quase nada” foi uma expressão usada por Lawrence English em entrevista ao Mess+Noise para descrever a sua música. Mas foi, sem dúvida, o quase tudo que imperou neste set dominado por um drone de dimensões incomensuráveis que tomou conta da sala do Theatro Circo e nos levou para bem longe, como é apanágio da música ambiente e instrumental, conhecida pelos sítios a que nos leva, e o que nos faz sentir e sonhar.

Diz-se que a música de Lawrence exprime desolação e frieza, mas a paleta emocional evocada é mais ampla do que isso, conjurando também euforia, ânsia, êxtase, desejo de fuga e, é claro, um profundo assombro, num conjunto de manifestações físicas que acontecem gradualmente: primeiro cora-se, depois vem a pele de galinha, e finalmente as lágrimas ameaçam descer dos olhos. Sempre sem sabermos o que estamos exactamente a sentir e porquê.

Quanto ao último concerto, comecemos por um pressuposto com o qual é fácil concordar: tocar a seguir a Lawrence English não é pêra doce. Mas isso não impediu Valgeir Sigurðsson de nos oferecer um espectáculo bonito e idiossincrático, com a beleza do cinema, acompanhado por um violoncelista, a fazer lembrar a sua conterrânea Hildur Guðnadóttir.

O concerto do compositor islandês começou discretamente, com o excerto de uma entrevista a um vulcanólogo russo sobre a importância da rádio de onda curta como único meio de comunicação com o exterior, para um homem isolado do mundo numa estação de estudo sísmica sem acesso à Internet. Um perfeito uso da voz humana para complementar uma música fortemente ligada ao cinema, em que a sabedoria romântica e enternecedora do velho cientista contrastava com a curiosidade inquisitória do jornalista britânico mais novo.

A partir daí, os efeitos de Valgeir encheram a sala, amplificando as cordas do violoncelo para altitudes estratosféricas.

 


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A música foi de facto cinematográfica, com longas passagens de violoncelo apoiadas em drones portentosos, e por isso não podia faltar a tela atrás do palco, onde foram projectadas fotografias de grande detalhe da superfície lunar, bem como um foco vermelho de centro amarelo à HAL 9000. Uma música remota, misteriosa e onírica, como a ilha de onde vem o seu autor.

O set teve momentos mui su generis, como quando um riff de cravo à “Sticky Drama” de Oneohtrix Point Never se fez ouvir enquanto as mesmas imagens da Lua eram iluminadas a diferentes intensidades. E outro em que um drone subaquático de baixa frequência foi aumentando de volume progressivamente até rebentar, como em “Stem/Long Stem” de DJ Shadow.

Mas também teve os seus momentos de violência, como uma longa passagem repleta de dissonância perto do fim (conceito que dá título ao seu mais recente álbum, lançado este ano pela sua Bedroom Community) e, a meio, um ribombar de fortes polirritmos a estalar as colunas, acompanhados por dois strobes por cima do palco, perfeitamente sincronizados com cada pulsar da batida.

 


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Mas o fundador da Bedroom Community guardou o melhor para o final, quando introduziu uma vertiginosa batida em modo glitch com sopros épicos, um arpeggio de sintetizador, o violoncelo em staccato e delicadas notas de harpa, sem esquecer o profundo drone, sempre em fundo, a adensar o som.

A dinâmica foi a palavra-chave numa actuação que se fez de contrastes e dicotomias: entre as altas frequências do violoncelo plangente e os drones cavernosos que as encorparam, entre o staccato veloz e o lento e prolongado legato do próprio violoncelo, e entre o alto e baixo volume, num set que pareceu a banda sonora de um filme de exploração espacial como Gravity ou Interstellar ou de um documentário sobre vulcanologia.

O Semibreve terminou como sempre habituou o seu fiel público: sob o signo do vanguardismo e da beleza. Até para o ano.

 


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