[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados
Os concertos da edição 2018 do Festival Semibreve arrancam hoje na milenar cidade de Braga com nova apresentação dos recentemente reactivados Telectu. No cartaz alinham-se diversos outros nomes do universo da mais desafiante electrónica contemporânea — de William Basinski a Keith Fullerton Whitman, de Actress a RP Boo, de Caterina Barbieri a Sarah Davachi com Laetitia Morais, Grouper ou DJ Stingray — numa saudável e uma vez mais urgente mostra de sonoridades que, vindas do passado ou do futuro, desenham um outro tempo para a música.
O Semibreve surgiu em 2011 e desde então cresceu ao ponto de se tornar uma proposta incontornável no mapa dos festivais que sabem contornar a pressão dos grandes resultados e das grandes bilheteiras, procurando um outro tipo de sustentabilidade, a ideia de formação de novos públicos e da exploração de zonas mais remotas do espectro musical. É portanto, e também, um festival que faz serviço público, que se integra de forma especial com a cidade e, que dessa forma, pensa até a própria cidade.
Luís Fernandes, músico que é também o programador do Semibreve, falou esta semana com o Observador e explicou com detalhe como interage e como “interfere” o Semibreve com a cidade de Braga: “A partir do Semibreve houve muita (coisa) a acontecer, não só em produção artística, que por vezes é difícil de quantificar, porque há muita malta que faz música, vídeo, instalações, que nunca sai de um certo anonimato, mas a criação artística aumentou. Estes modelos — se há um festival na cidade, a malta vê — são sempre referências, mais motivos para tentares fazer alguma coisa tua. O sucesso do Semibreve e do gnration levaram a que Braga assumisse um perfil muito aproximado a esta relação entre arte e tecnologia, as chamadas Media Arts. E então a Câmara Municipal de Braga decidiu que a orientação mais orgânica e natural a dar à candidatura a Cidade Criativas da Unesco seria na categoria de Media Arts. O Semibreve é um dos eventos basilares da cidade, é provavelmente aquele com mais projecção internacional, tirando a Semana Santa, que é turismo religioso. Em eventos artísticos, de cariz artístico, é difícil de ultrapassar. Não quer dizer que seja o único festival que tenha programação de qualidade”.
[DIA 26]
O festival abre hoje portas com o concerto dos Telectu de Vítor Rua e António Duarte no Theatro Circo, pelas 21:30. O duo que regressou ao activo depois do arranque da recuperação do seu catálogo por parte da etiqueta Holuzam, tendo já realizado apresentações em torno de Belzebu no Teatro Maria Matos e no terraço do Lux, propõe-se reapresentar esse mesmo espectáculo avançando no entanto que integrará no alinhamento uma peça de Off Off, momento seguinte da sua discografia original que deverá igualmente merecer relançamento na Holuzam.
Também no Theatro Circo, pelas 22:50, tocará William Basisnki. O músico americano é hoje uma das mais fortes referências no universo de um certo ambientalismo sombrio, tendo erguido uma obra singular a partir da sua exploração das propriedades intrínsecas dos suportes de gravação analógica. O tempo, essa matéria quântica e filosófica de que se faz o universo, é outro dos eixos do seu trabalho. E a proposta central do espectáculo que, explica-nos o Semibreve, vem apresentar a Braga: “A história de “On Time Out of Time” também viaja do passado, mas este bem mais distante: há 1.3 mil milhões de anos, dois buracos negros colidiram numa longínqua galáxia, gerando uma imensidão energética que, finalmente em 2015, atingiu o nosso planeta. Partindo dos registos captados no centro LIGO, nos Estados Unidos, Basinski relata a grande viagem destas ondas gravitacionais e o seu impacto na Terra, propondo uma banda sonora esplendorosa para o Universo. Numa parceria artística em exclusivo para o festival, Fred Rompante fará um mapa luminescente da viagem deste colossal tremor cósmico pelas estrelas”.
Ainda para hoje, desta vez no Pequeno Auditório do Theatro Circo, pelas 23:50, haverá a apresentação de Qasim Naqvi, baterista dos Dawn of Midi que protagonizará uma viagem a bordo da sua “nave” equipada com sintetizadores modulares ao universo de Belladonna, a obra-prima psicadélica de 1973 da autoria de Eiichi Yamamoto que mereceu inscrição recente no catálogo da britânica Finders Keepers. Obviamente, Naqvi terá uma outra ideia para a banda sonora das imagens que escolheu, coma sua electrónica a propor-se traduzir o festival de formas e cores que o filme original evoca.
A noite prosseguirá com as actuações de Actress (00:45) e RP Boo (02:00) no gnration. Dez anos depois de Hazyville e no mesmo ano em que lançou, em colaboração com a London Contemporary Orchestra, o belíssimo LAGEOS, Actress não deixará, certamente, de forçar a sua visão de futuro a partir do setup à sua disposição na Blackbox do gnration. Da mesma forma, e de Londres para Chicago, RP Boo colocará em campo a sua visão que nasce do footwork e tem avançado por territórios menos cartografados, ainda a aguardar pelas designações que o futuro revelará. O produtor também tem os pés bem fincados em 2018 com a edição de I’ll Tell You What! na Planet Mu pelo que abrasiva matéria de compulsão rítmica não lhe há-de faltar.
[Dia 27]
O programa de amanhã, sábado, arranca pelas 17:00 no Salão Medieval UM com uma apresentação de Caterina Barbieri. esta compositora italiana editou três trabalhos na Permanent records entre 2017 e 2018, incluindo a colaboração Split com Eleh e o mais recente Born Again in The Voltage. Esta exploradora do espaço com predilecção pelas criações de Don Buchla (à semelhança, por exemplo, de Suzanne Ciani), tem imposto uma visão muito distinta da música electrónica. Explica o Semibreve: “As composições que saem dos seus sintetizadores modulares são esculturas dinâmicas, repletas de colisões sonoras controladas por fenómenos acústicos e uma atenção rara ao detalhe. Nos momentos mais serenos, o nosso inconsciente sugere-nos viagens; na trepidação dos padrões electrónicos vislumbramos uma escrita musical inesperada”.
O primeiro concerto de sábado no Theatro Circo será assinado pela dupla Sarah Davachi + Laetitia Morais pelas 21:30. Davachi tem-se revelado uma produtora prolífica — só em 2018 a sua discografia dilatou-se, até agora, com mais três títulos, incluindo lançamentos na Recital ou Ba da Bing!. O espectáculo que apresentará no centenário Theatro Circo é especial por resultar de uma encomenda e se traduzir numa inédita colaboração com a artista visual Laetitia Morais: “Em disco ou em concerto vamos percebendo que Sarah Davachi vive uma fase de profunda explosão criativa que merece ser acompanhada, registada e elogiada. Ao vivo, com os seus sintetizadores, vai ocupando a atmosfera com drones majestosos que parece congelarem o tempo, trabalhando afincadamente com a arquitectura e o sistema de som dos espaços onde actua. Numa encomenda do Semibreve, Davachi junta-se neste concerto às ideias visuais de Laetitia Morais para criarem um perfeito filme completo”.
Grouper será a senhora que se seguirá no cartaz do Semibreve (que, aliás, deve ser congratulado pela generosa presença feminina na programação), com concerto marcado também para a sala principal do Theatro Circo pelas 22:50. Outra prolífica criadora, Liz Harris teve no entanto uma pausa acentuada na edição entre o colossal Ruins — que data já de 2014 — e o mais recente Grid of Points, que lançou já este ano através da Kranky. Este concerto, feito, como sugere o Semibreve, de uma “colecção de canções à beira do fim”, será, certamente, dos mais aguardados da edição deste ano do Festival.
A passagem ao Pequeno Auditório do Theatro Circo acontecerá pelas 23:50 para escutarmos o português Alfredo Costa Monteiro. Português natural do Porto, com formação em artes plásticas e multimédia que há mais de 25 anos vive e trabalha em Barcelona, Costa Monteiro tem obra vasta, como nos explica o Semibreve: “Com uma vasta produção discográfica a partir do final dos anos 90, a solo e em projectos colectivos, Costa Monteiro mantém inúmeras colaborações activas com músicos, coreógrafos e artistas de videoarte. “Shockwave” surge como proposta ao convite do Semibreve: um concerto electracústico para dispositivos lo-fi manipulados sem processamento sonoro, convidando-nos para um mergulho nos recônditos meandros do som”.
A passagem à Blackbox do gnration será feita ao som da dinamarquesa SØS Gunver Ryberg que iniciará a sua actuação pelas 00:45. Ryberg tem assinado trabalhos para diversos contextos como teatro, dança, jogos de vídeo e instalações sonoras, e ao vivo o termo “avalancha sonora” é bastas vezes usado para procurar traduzir a intensidade do som com que nos submerge.
Seguir-se-à DJ Stingray pelas 02:00, também no gnration. Como tantos outros músicos que buscam climas mais favoráveis às suas explorações techno, DJ Stingray também encontrou casa em Berlim, tendo para isso deixado a sua Detroit natal. Semibreve: “filho legítimo de Detroit, Stingray recebeu o diploma DJ pela mão de Moodymann, ainda nos anos 80, antes de ingressar nas fileiras electro de Drexcyia como DJ nos seus concertos onde, decerto, aprendeu tudo o que tinha ainda por aprender. E porque é essencial continuar o legado dessa maravilhosa utopia drexcyiana, Stingray tem sido um perfeito herói dessa resistência subterrânea”.
[Dia 28]
O programa musical do Semibreve concluir-se-à com duas apresentações no Theatro Circo no domingo: Keith Fullerton Whitman em colaboração com Pierce Warnecke (pelas 17h00) que resulta de uma encomenda do Semibreve — “onde irão resgatar ideias e ideiais da op-art e o minimalismo, explorando a síntese sonora e vídeo numa coreográfica sincronia sensorial” – e ainda Robin Fox (18h10) que trará argumentos para o palco com que tem sustentado a disseminação da sua discografia de electrónica experimental por selos conceituados como a Editions Mego, Kranky ou Room 40: “uma interpretação física e volumétrica do som, como que a desenhar a sua própria geometria”.
O Semibreve tem igualmente uma fortíssima programação noutras áreas que se estende por conversas, instalações e workshops que podem e devem ser conferidos no site oficial do evento.