Ao olhar para as capas de Sematary não diríamos estar perante um dos novos fenómenos do rap mais underground, não só pelo imaginário visual das mesmas – das cruzes invertidas à presença de motosserras em saturadas colagens digitais de cor esbatida –, mas por todo o anacronismo que as rodeia e que nos transporta para tempos em que o DatPiff era a meca para os adeptos do hip hop feito à margem das esferas mais populares.
À semelhança do que acontecia com Yung Lean ou Lil B nos primórdios do cloud rap, a linha que separa o sério do risível é ténue, mas a abordagem idiossincrática do rapper e produtor norte-americano ao trap tem vindo a colher uma admirável base de fãs nos canais mais alternativos do ciberespaço, do Reddit (onde possui já um sub dedicado aos lançamentos da sua editora, a Haunted Mound) até à plataforma Rate Your Music (e até já recebeu o aval positivo do crítico norte-americano Anthony Fantano, que lhe deu tempo de antena no seu popular canal de YouTube).
Rainbow Bridge 3, o mais recente trabalho de Sematary, é, à primeira vista, o seu registo mais impenetrável. O último de três volumes centrados no black metal de recorte atmosférico, o disco inaugura com uma parede implacável de som e ruído que tem tanto de concreto quanto de amador e indulgente. As qualidade lo-fi dos instrumentais, ancorados por um uso desmedido de efeitos de compressão, conferem uma atmosfera sufocante e parca em espaço, mas por trás do caos e de todos os lugares comuns que pautam este e outros lançamentos que residem na esfera do SoundCloud (há aqui sons de sirenes, despistes de automóveis e um omnipresente DJ Sorrow, o host de voz gravosa que apresenta este maravilhoso freakshow) esconde-se um verdadeiro diamante bruto.
A sua presença online é elusiva e revela pouco sobre a sua identidade. Até à data, o seu nome ainda não é conhecido, mas através de entrevistas é possível constatar que o músico vem das montanhas do Nevada e que começou a dar os primeiros toques no GarageBand aos 11 anos, influenciado pelos abstraccionismos emo de gentes como Salem ou o colectivo Drain Gang, mas também pelos raps de câmara lenta de DJ Screw, o horror lírico dos Three 6 Mafia, o drill de Chief Keef ou até mesmo os lamentos embriagados de Townes Van Zandt (ora oiçam a balada-folk-feita-pesadelo que é “Cleaver Valley”).
Tal como nos volumes anteriores, Rainbow Bridge 3 volta a requisitar os talentos de Ghost Mountain, parceiro de aventuras anteriores, mas introduz-nos também novas caras como as de Buckshot ou PSYK, que contribuem com versos e ocasionais passagens de guitarra. O recurso ao metal mais extremo através de técnicas de sampling é utilizado para efeitos máximos de catarse e acrescenta músculo a uma produção já por si abrasiva. No caso das letras, as temáticas continuam a ser as mesmos de sempre: as ideias em torno dos massacres e da necromancia (“Murder Ride”, “Necromanser”), a dicotomia entre o sagrado e o profano (“God’s Light Burns Upon My Flesh”, “I’m a Sinner”) ou os contínuos convites para o inferno (“Come With Me To Hell”), tudo entra na ementa deste excêntrico banquete.
Rainbow Bridge 3 pode não ser o melhor trabalho de Sematary – esse prémio irá para o anterior Hundred Acre Wrist (2020), mais limpo, conciso e seguro da direção que quer seguir –, mas abre caminho para uma nova forma de pensar o trap em toda a sua multiplicidade.
O convite está feito: sejam bem-vindos ao inferno de Sematary.