pub

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 08/03/2019

Uma comunhão na pista de dança.

Selma Uamusse no Lux Frágil: uma tempestade num copo de Mati

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 08/03/2019

Um ciclone de corpos, um amarelo candente no fundo e um protesto de Nina Simone — foi preciso Selma Uamusse bramir a explosiva “Funkier Than a Mosquito’s Tweeter” para que a grandeza da sua actuação entrasse em sintonia com a dimensão do cenário. Com um só grito, tudo fez sentido.

O espectáculo da noite de quinta-feira, em que apresentou a Lisboa o seu disco de estreia, instalou-se no Lux Frágil. Uma escolha prudente para um começo de dimensão modesta, tanto quanto uma incitação à suspeita de que, até que não ouçamos Mati num Coliseu, as engrenagens do mundo necessitam de alguma afinação. “Parece que a Selma testou os limites do palco”, comenta alguém, apurando a megalómana concentração por metro quadrado de instrumentistas — a brilhante Jéssica Pina no trompete, João Cabrita no saxofone e Eduardo Lála no trombone — e coristas, do Gospel Collective, como suplemento à banda habitual, formada por Augusto Macedo, Gonçalo Santos, Iúri Oliveira e Nataniel Melo, acrescida ainda de Jori Collignon, o arquitecto da sonoridade do álbum.

Decidindo-se num meio termo entre vanguarda e ancestralidade, de ligação umbilical a Moçambique, Mati encontrou um groove prolongado para sentirmos, de olhos fechados, trilhar os ossos e completar a alma. Ao vivo, traduz-se num esforço corpo-a-corpo, tensional; alimenta-se, em igual medida, do ribombo da timbila e dos finos grãos de terra no timbre de Uamusse. Propõe um envolvimento mais próximo e a plateia anui, ao reproduzir a cadência de “Mati” nessa moeda de troca que são as palmas — ardentemente transaccionadas ao longo da noite —, ao vociferar o cântico de “Ngono Utana Vuna Kudima” com devoção, ao (tentar) dançar a marrabenta da muito celebrada “Baila Maria”, a tirar os sapatos e a descer com ela até ao chão.

Interpelante e pacífica, sanguinária e intimista — é este o tipo de performer nata que Uamusse é, uma corrente eléctrica que não teve de evoluir, apenas consolidar-se. A Selma Uamusse que, em Agosto de 2018, se apresentou a um Bons Sons desconhecedor é idêntica à Selma Uamusse (um pouco mais segura) que reconhece a mancha de amigos e familiares na discoteca — é o valor da generosidade. E a Selma Uamusse que atiça o público nos momentos mais sanguinários do concerto é a mesma que nos conduz pelo dilúvio emocional das suas partes mais cruas — em particular, quando em “Malian” e “Monica” recordamos os fantasmas de uma história recente, almas desaparecidas que o ar à nossa volta absorve. A visivelmente emocionada Uamusse comanda-nos com destreza e simplicidade.

Daí que o desejo que expressa no início, de querer tornar o Lux numa igreja só durante uma noite, recebe-se primeiro como non-sequitur e depois entranha-se. De forma mais literal, “Mati” — repetida num encore tardio que, avisa, se tem de pagar com a saída imediata da sala — é “uma conversa com Deus”, o som da água que é nutrição e transcendência, as suas propriedades catárticas repetidas como um mantra. Mas todos os minutos da noite passada com Selma Uamusse e companhia são em proximidade, à perfeita medida desta sala, perpassados por um espírito de comunhão que obviamente não olha a crenças, nem, felizmente, à aptidão para dançar ou cantar. “Muitos estão a cantar completamente desafinados,” denuncia a cantora, “mas o que importa é que estão a sentir!”

Quando põe fim a “Funkier Than a Mosquito’s Tweeter”, Uamusse interrompe a vibração colectiva para que ouçamos realmente o significado daquele potente rugido, contra quem polui o ar com mentiras ou a naftalina típica de um “dirty old man” (anteriormente, sentencia que “ninguém é ilegal” nem tem de “escolher só uma nação”).

Durante não mais que dois segundos, há um interstício de silêncio, quase litúrgico. Uamusse tem-nos na palma da sua mão e sabe disso, quando nos suspende e liberta com a mesma magia, com um grito que lança a audiência numa polvorosa. Desta água beberemos sempre.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos