No dia 11 de Novembro de 2025, desapareceu um dos vultos mais ousados, mais livres e mais essenciais da música portuguesa: Sei Miguel, nascido em Paris, em 1961, que viveu no Brasil na infância e que se radicou em Lisboa no início dos anos oitenta.
A notícia, como um som súbito que corta o ar, espalhou-se entre os circuitos da vanguarda e da memória colectiva — e à semelhança de muitas das suas peças musicais, deixou um silêncio que ecoa para lá das notas. Mais do que trompetista, mais do que compositor ou director de formações de geometria variável, Sei Miguel cultivou o espaço onde o som e o silêncio se tocam, se ferem, se reconcilam. Como se cada sopro, cada pausa fosse uma pergunta colocada ao universo e uma resposta que se recusa a fechar-se.
Foi em 1984 que fundou com Mafalda (Fala Mariam) e Bruno Parrilha (Next Bruno) o primeiro projecto Moeda Noise. Em 1988, eixos de ruptura: o álbum Breaker (1988) via a luz do dia através da editora Ama Romanta. Seguiram-se outros como Songs Against Love and Terrorism (1989) e The Blue Record (1990) — marcos dentro de um percurso que rejeitava a margem e a vanglória, escolhendo ao invés o lado íntimo, o recanto onde a invenção germina.
Há no seu legado a impressão de um mapa que não está completamente traçado, e talvez essa seja a sua grande dádiva: não entregou uma rota pronta, mas convidou cada ouvinte a entrar no labirinto do som, a descobrir-se, a interrogar-se, a sentir. Na Lisboa dos anos 90 e 2000, entre concertos nos Club Ritz, Hot Clube e Galeria Zé dos Bois, o seu trompete — muitas vezes na versão pocket — tornou-se veículo de comunhão e de libertação.
Que nos reste aqui mais do que a simples notícia da partida: que fique o rasto luminoso da estrela gigante que ele foi. Como no universo físico — onde nada se perde, tudo se transforma — assim também a música que deixou continua a vibrar em discos, gravações, memórias e no silêncio potente que sucede ao último acorde.
Àqueles que caminharam ao seu lado — Fala Mariam, César Burago, Rafael Toral, Manuel Mota — e a todos quantos por ele se deixaram invadir, é-lhes devolvida a gratidão: por termos ouvido aquilo que parecia não ter nome, por termos sentido aquilo que parecia não ter forma.
Sei Miguel desvendou ecos invisíveis, ele fez da improvisação um gesto de coragem, da ordem uma possibilidade, do ruído um poema. Em Portugal e além, a música não será igual sem ele — mas também não havia de ser, pois a verdadeira grandeza não está em imitar o passado, mas em abri-lo para o futuro. Obrigado, Sei Miguel. E que o sopro que agora ascende encontre outras bocas, outras trompas, outras auroras sonoras.