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Fotografia: João Duarte
Publicado a: 23/09/2024

Uma dádiva dos céus.

Satoko Fujii no Festival Jazz ao Centro’24: “Só queria voar e depois poder aterrar”

Fotografia: João Duarte
Publicado a: 23/09/2024

Como um meteorito, como um corpo celeste acabado de embater, abrindo auspiciosamente a 22ª edição do Festival Jazz ao Centro — Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra. Palco do Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV), noite de sábado, 21 de Setembro, foi o lugar de uma cratera de impacto — efémera, visível no final no campo emocional de cada uma das presenças que garantiram assento para o concerto inaugural.

Também a primeira entrada na atmosfera dos céus portugueses, e com marca de palco do piano de Satoko Fujii, foi a um sábado. Corria o ano de 2008 e tocavam com estrondo Satoko Fujii Min-Yoh Ensemble, formado por Natsuki Tamura em trompete, Curtis Hasselbring no trombone, e Andrea Parkins em acordeão. Consta-se que se formou outra cratera emocional considerável. Foi de tal dimensão que levou Pedro Costa (Trem Azul/ Clean Feed) a querer programar Satoko Fujii em piano solo num concerto próximo. Viria a acontecer no palco da Culturgest, em Lisboa, a 20 de Janeiro de 2012. Desse concerto transcreve-se a razão na apresentação: “[…] Fujii tem rapidamente imposto o seu nome nos circuitos internacionais da música criativa como se tornou num dos expoentes de uma nova caracterização do músico do século XXI: vem adotando as mais diversificadas linguagens musicais, da erudita contemporânea ao rock alternativo, com passagens pelo jazz e pela tradição nipónica”.

Desde há muito, para Manuel Pissarro e José Miguel Pereira (JACC), que era um desejo ver essas mãos sobre o piano numa edição do Encontros de Jazz em Coimbra. Passaram os anos que tiveram que passar, mas sem perda de vontade, que apenas cresceu até hoje — teve lugar aqui, onde há um piano de excelência que sabe esperar. Numa recente visita guiada ao TAGV — aquando do primeiro encontro de Jornalismo Cultural de Coimbra, o Cu.Co., foi-nos dado a ver o Steinway & Sons da casa, que está primorosamente reservado num canto do sub-palco. Esse lugar de encanto dos teatros, tal qual os sótãos da casa dos avós — onde se encontram as preciosidades. O piano sobe à luz da ribalta sempre que é preciso — esta era a noite esperada.

Satoko Fujii serve-se também do que o canto reserva — das teclas graves do piano, para começar, com uma nebulosa sonora. Esse lugar de mistérios de onde provém a matéria cósmica, fontes de energia que fazem dai em diante a recombinação das partículas, e o que advém é da ordem das coisas, do que tem de ser e acontecer. Importante é tão somente existir. Nesse decurso das partículas sonoras, Fujii demonstra o seu virtuosismo, não lhe bastam as mãos e os dedos para abarcar o piano, fá-lo com a extensão dos próprios braços. O lirismo que resulta é enérgico, não é brutalismo, é antes vigor feito pujança, porque o seu caudal tem essa força. Há encontros com espaço de requintes florais, com massas intrigantes da ordem microscópica, cadeias de hifas e cápsulas de esporos a libertar nuvens seminais de elementos sonoros nipónicos ancestrais, pontuados de bordejos directos das cordas. As harmonias que daí resultam fazem chão rítmico que vai percutindo para um balanço melódico que a torna num corpo completo de secção rítmica, mesmo num piano solo, relembre-se. Assim, servido o primeiro andamento do que viria a escutar-se como um tríptico sonoro de improvisação. A segunda peça começa a ser desenhada de dentro para fora, desde a intervenção directa no interior, em preparos de ocasião, entre baquetas de feltro e outras ferramentas que fazem do piano preparado por Fujii o local de escuta. Arpejos, varrimentos e bordejos — as cordas tudo isso suportam em tensão que devolvem em ondas de choque para o espaço. Jogos tímbricos entre notas na vizinhança, na corda e na tecla que vai à mesma fonte. São recursos inesgotáveis e que nunca se repetem, Satoko Fujii tem um léxico enorme que abarca mundos e fundos, servindo-se do som e das ideias ainda por escutar. Volta ao teclado para compor a sua expressão abstracta da cosmologia sonora que transporta. O último andamento improvisado começa no outro canto — onde habitam os agudos. Aí anichado, emaranha fraseados curtos, velozes e entranhantes que vão adquirindo o pousio das restantes teclas. O campo produtivo sobeja de abundantes frutos e olha com curioso interesse para o que repousa, com aparente infertilidade. Começam a expressar-se os silêncios na composição — os espaços sonoros entre o som e o tempo. Fundamental jogo no ciclo da fertilidade criativa de Fujii.

Os primeiros tempos que começou a beber desta água, foram junto de outro mestre — Paul Bley, com quem gravou Something about water em 1996, pela sua editora de sempre Libra Records. Mas a trajectória de Fujii ao piano e também ao acordeão — recorde-se, inventado como uma ideia de piano portátil — soma hoje 100 registos discográficos. Satoko Fujii é um nome no Olimpo onde estão poucos, restritos compositores. Desde o final do milénio tem-se apresentado em palco e estúdio das mais diversas formas, em combinatórias de duos, de pianos, ou com o trompetista Natsuki Tamura, entre muitos outros músicos e instrumentos. Formou em 1997 a Satoko Fujii Orchestra, que desenvolve desde então em variantes (East e West, Nagoya, Tokio, NY, Kobe, Berlin), nesse mesmo ano apresentou Satoko Fujii Trio com Mark Dresser no baixo e Jim Black na bateria. Já neste milénio formou Satoko Fujii Quartet, com Natsuki Tamura em trompete, Takeharu Hayakawa no baixo e Tatsuya Yoshida na bateria, ainda o Satoko Fujii Ma-Do, com Natsuki Tamura em trompete, Norikatsu Koreyasu no baixo e Akira Horikoshi em bateria. Mais recente é a formação KAZE, que junta a Tamura outro trompetista, Christian Pruvost e o baterista Peter Orins. 

Fujii — comunica tímida, cansada pela viagem atribulada de voos, que tardavam em descolar e trazê-la até aos Encontros — aventura-se em palco muito mais pelos domínios da composição improvisada, mas há um tema alinhado que retoma uma ideia em forma de homenagem, que compôs para um amigo que há muito perdeu (n)a vida. “Inori”, primeira música de Solo (2018). O primeiro registo desse ano em que viu editados 12 discos pelo seu sexagésimo aniversário — uma celebração feita ao longo dos meses. Inori — explica-o por palavras, traduz-se por oração em japonês, e a música traduz essa carga simbólica. Estamos na véspera do dia dessa memória da perda — como comentou Fujii. Decorre da nostalgia e ouve-se evocativa, centrada no mote da memória que serena a perda. Partes há feitas de enérgicos cumes — as vivências—, mas há uma condução ritualizada que leva a cadência tema adiante até um sábio apaziguar do dolente sentir.

O concerto é feito de surpresas ao terminar. A primeira — é nossa, às mãos de Satoko Fujii, que no tema extra serve um improviso feito de máxima amplitude, versátil de recursos estilísticos a trazer o total relevo cristalino do Steinway. A segunda surpresa — é de Satoko, é a nossa resposta para com a singular presença em palco. Fujii mostra-se surpreendida e agradecida diante de uma plateia em pé — serve uma composição improvisada e sobretudo inesperada por si. Um concerto pleno de intencionalidade que fica na memória mais fresca e marcante destes maioritários anos de um criativo jazz que anda a ser inscrito desde 2003 na cidade marcada (ainda) da mesma cantiga.


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