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Fotografia: Rishabah Sood
Publicado a: 23/12/2020

O compositor e percussionista que tem devolvido a cultura indiana ao jazz falou sobre o seu novo disco e, entre outras coisas, desenhou um retrato daquilo que podemos tirar da sua expressão artística.

Sarathy Korwar: “Fazer música com o Upaj Collective é criar o mundo onde eu gostaria de viver”

Fotografia: Rishabah Sood
Publicado a: 23/12/2020

Sarathy Korwar é um nome discreto e as suas contribuições para a cena jazz londrina não são proporcionais à calma e humildade do seu discurso. Entre uma carreira a solo enquanto produtor e líder do Upaj Collective, existem intercepções com os percursos de músicos de excelência como Jamal Moss (Hieroglyphic Being), Shabaka Hutchings e Arun Ghosh, ou de grupos como Ill Considered e Penya. A colaboração com Hieroglyphic Being traduziu-se em concertos, um dos quais na mítica Piscina Municipal de Barcelos, aquando do Milhões de Festa de 2017.

É, no entanto, no cruzamento entre a música clássica indiana e as linguagens jazz que Korwar tem deixado a sua marca, e onde o seu contributo mais tem levado ao desenvolvimento de novas possibilidades sonoras. Nascido nos Estados Unidos da América, cresceu na Índia, onde estudaria tablas desde os 10 anos e se especializaria enquanto músico de tradição clássica, que aprendeu com as obras de John Coltrane e Ahmad Jamal a encarar outros horizontes e a levar estas práticas para o seu papel de baterista. É esta a experiência que leva para a música e o tornou num elemento singular da cena musical de Londres. Experiência, de resto, melhor encapsulada nos seus contributos com Upaj Collective, uma banda de músicos sul asiáticos que cruza geografias indianas com tradições jazzísticas.

Em conversa com o Rimas e Batidas, Sarathy Korwar não esconde a satisfação em relação a Night Dreamer Direct-to-Disc Sessions, editado com o colectivo Upaj. Gravado em Julho de 2019, este disco segue “exactamente no espírito da banda. Upaj significa ‘improvisar’ em hindi. Tivemos a oportunidade de nos meter numa sala, tocar juntos e gravar ao vivo. Claro que aceitámos”, conta-nos.

Improvisação tem um peso enorme na abordagem de Korwar à música. “Todo o meu trabalho em música é cada vez mais sobre abdicar do controlo. Há uma alegria verdadeira em deixar que as pessoas que são melhores do que tu em certas coisas enriqueçam o teu projecto. Pelo menos, é nesse mundo que eu gostaria de viver”. É um ethos que o músico indiano segue e que o próprio traduz como sendo o seguimento da tradição de “captar um momento no tempo”.

“Queria manter-me fiel à forma como este género de música era gravado antigamente. Como o Miles fez em Kind of Blue, ou o Don Cherry em Organic Music Society. Entrar na sala e tocar. Nem dei grandes indicações à banda sobre o que íamos fazer. Levámos a mentalidade certa para a sessão, a de que estávamos num espaço seguro, onde não existem erros ou enganos, ou onde ninguém vai julgar ninguém; fomos para a sala com abertura suficiente para termos uma conversa uns com os outros e ouvirmos”.

A improvisação, para si, é sobre “estar profundamente no momento”, apesar de ter um papel performativo a desempenhar no desenrolar da música. Esta nova entrada discográfica vive de vários desses momentos, de procura horizontal por um caminho que traga o melhor de todos à tona. Malhas como “Flight IC 408” são dinâmicas, pejadas de virtuosismos e de silêncios respeitosos e espaçados de instrumento, em que o saxofone nunca se sobrepõe aos dedilhados e rendilhados da guitarra, ou tabla ocupa o mesmo espaço que o kit de bateria; pelo contrário, as dinâmicas, e são muitas, insinuam-se ao longo da música por obra de um esforço concertado e de um diálogo de parte a parte. Não é acaso: “Uma situação como a que construo no Upaj Collective é a de criar uma utopia. De criar o mundo em que eu gostaria de viver através da minha música. Onde não há líderes, não há uma pessoa só a dar direções, onde há pessoas a viverem juntas e a ter conversas iguais. Se confiares neste processo, o resultado é frequentemente incrível”. Não o diríamos melhor.



[Captar um momento no tempo]

O seu papel em Upaj Collective prende-se, assim, com o de “curador sonoro”, como se descreveu a certa altura da conversa. “Foco-me muito mais em definir o tema do álbum, o conceito da performance; desenvolvo melodias e digo, um pouco, aos músicos o que podem fazer. Acontece tantas vezes  fazer o processo todo e sentar-me na bateria para me aperceber de que não pensei no que eu vou tocar. Passei tanto tempo a tentar perceber como a música vai funcionar, que a bateria fica para último. Deveria ser o contrário, mas na maioria do tempo eu estou a pensar em tudo resto e depois faço a minha cena.”

Esta é uma ideia atípica quando associada a um percussionista, mas cada vez mais contrariada — veja-se o caso do baterista de free jazz Makaya McCraven, ou do percussionista-artesão portuense João Pais Filipe —, a de que o elemento rítmico pode ter uma palavra a dizer nas demais expressões sonoras. Uma ideia que também pesou no percurso de Korwar, durante o qual “a ideia de que era apenas o baterista” o impediu de fazer a própria música. Pesou pela tradição da sua formação, que encapsulou o fundamento de que “o papel numa banda é apenas um”. “Mas sempre quis fazer algo mais”, admite.

Hoje, o seu “algo mais”, no percurso que cunhou em nome próprio, traduz-se em duas práticas distintas, uma a solo, outra com o Upaj Collective. Day to Day foi a sua estreia, selada pela icónica Ninja Tune, e More Arriving, editado durante 2019, sucede-lhe no papel de compositor e produtor, ainda que em tonalidades diferentes — o primeiro mais ligado à prática das tablas, o segundo enquanto produtor que pavimenta o caminho para MCs indianos debitarem o seu rap hindi, cruzando tonalidades jazz e, porque não, bollywoodescas com os seus estudos da tradição sonora do seu ascendente cultural.

“O More Arriving é, sem dúvida, um disco muito produzido. Levou-me mais de dois anos a concluir, entre viagens à Índia para gravar e o concertar do trabalho com várias pessoas diferentes”, um ritmo que se opõe de forma indelével ao desenvolvido com o Upaj Collective. “O álbum de 2018, My East is Your West, é um concerto gravado, e tem milhares de erros. É semelhante ao que fizemos neste álbum”. Ambos os ritmos coabitam bem na mente de Korwar, mas não esconde a satisfação que sente com o método colaborativo do seu colectivo de improvisação: “Aqui, gravas o álbum e está feito. Ouvi-o pela primeira vez desde que gravei há umas semanas e tive algumas surpresas, mas achei que estava mesmo fixe”, confessou, acrescentando que “[adora] poder fazer música das duas maneiras”, ora gravar um álbum em menos de um dia, ora dedicar-se a um processo de quase três anos.



[A cultura não é estática]

A expressão jazz não é alheia à tradição indiana. Pelo contrário, muitos são os nomes que cruzam ambos os territórios como se de um só se tratasse. Os contributos de Sarathy Korwar não são, por isso, uma novidade. São o acrescento de alguns argumentos a uma longa conversa, que tanto passa por Alice Coltrane como por Don Cherry ou Pharoah Sanders. Contudo, há uma vantagem que Korwar tem sobre estes nomes: o músico indiano, além de um contacto directo com as expressões musicais tradicionais do sub-continente asiático, por lá ter crescido, é um estudioso da sua música desde tenra idade.

O jazz mais espiritual praticado por estes artistas não existe sem mácula: “Adoro a música que fazem, mas também a acho problemática no que à representação de instrumentos indianos diz respeito. Durante muito tempo, não sabia como me sentir em relação a este tópico, principalmente porque estes são músicos incríveis, mas acontece ouvir na sua música uma tabla mal tocada, ou um sitar desafinado, e eu reparo nisso; é uma tradição da minha cultura, que eu estudei profundamente, e é algo desconcertante reparar nisso. E quanto mais entendo sobre e aprofundo este assunto, mais sinto que há, sem que seja propositado, uma atitude desrespeitosa para com outra cultura.”

A aura exótica emana de várias formas, nem sempre com um veneno latente a danificar quem a faz, ou as suas inspirações; mas os seus elementos de toxicidades podem ser discutidos e, na era da Internet, “não há desculpas para não fazer um esforço de entender melhor uma outra cultura. As coisas já não podem ser feitas como dantes”, afirma. De facto, o caminho trilhado por Korwar, enquanto alguém com um pé em cada uma das tradições, coloca-o numa posição única para ter uma voz sobre este aspecto da música jazz. Mais importante ainda, permite-lhe acrescentar valor ao que estes músicos criaram, ideia em que o próprio insiste numa tentativa humilde e séria de não ser mal entendido: “Eu não quero desrespeitar a memória da Alice Coltrane, ou de artistas desse género, que eu adoro! Pelo contrário, digo isto porque não vejo mais pessoas a dizê-lo e porque acho que podemos evitar cometer os mesmos erros.”

Este diálogo, que não é novo, mas no qual Sarathy Korwar tem imposto, positivamente, a sua voz, é uma lacuna — cabe ao músico indiano, tanto no percurso a solo, quando no trabalho criado em conjunto com Upaj Collective, acrescentar novas perspectivas à forma como “a música não-ocidental é representada através do jazz”. A própria génese do seu colectivo de improv permite-lhe endereçar outro problema, associada a uma ideia, errada, de que a cultura que acontece fora da Europa, do Reino Unido, ou dos Estados Unidos, é estática.

É, de resto, um problema com que todos, enquanto espécie, temos de lidar. “Nós, indianos, não aprendemos nada da nossa história colonial. Sabemos que os britânicos viviam aqui, que fizeram os caminhos de ferro e mataram algumas pessoas… o ensino está muito whitewashed. Eu mesmo sabia que havia uma história, mas não a entendia, como não entendia coisas como ‘raça’. Eu sou ‘castanho’ e venho de um país ‘castanho’, esse não era um conceito com que lidasse regularmente. Foi ao mudar-me para Londres que comecei a ser lembrado disso diariamente”.

Tudo isto pesa na altura de Sarathy Korwar criar: “Estamos em 2020, a música já não é, nem pode ser vista como, aquela coisa intemporal que se mantém igual há 200 anos. A música indiana, assim como a própria cultura do país, evolui”. Dúvidas houvesse, More Arriving rompe cena adentro com uma mostra de talentosos MCs indianos, que envergam tanto o hindi quanto o inglês como uma prova de que nada na natureza humana, quanto mais na sua expressão, é estático; cruzam-se sílabas com padrões rítmicos, adornados por rasgos de saxofone, ora distorcido, ora suavemente envolvido nos em dedilhados de guitarras de tons brilhantes. 

Além do seu trabalho, prova indelével de que os seus princípios, propósitos e criações trilham novas possibilidades para a sonoridade indo-jazz, acrescem duas lições, paralelas às criações e intimamente ligadas ao método: “uma, a de que podes ter músicos de clássica indiana em palco contigo, da mesma maneira que tens músicos de jazz. Quando os tens contigo, não foste apenas numa visita em que aprendes algo e começas usar isso, passas a ter músicos incríveis contigo, de ambas as escolas. A segunda é a necessidade de aprender e compreender a outra cultura, que não é impossível. É assim que outras linguagens se tornam parte da tua maneira de tocar. Eu sinto que a minha abordagem aos instrumentos é influenciada por ambas as escolas.”

Apesar das diferenças entre ambas as expressões, o espaço de Sarathy Korwar em que estas se encontram permite explorar a faceta livre do jazz, que não se encontra tão “preso a certas geografias e tempos”. “Há uma grande diferença entre a música tradicional indiana e o jazz, que está em algumas formas rígidas que a definem. Se quebras certas regras já não estás a fazer música clássica indiana. Por exemplo, ninguém diria que eu faço música clássica indiana; diriam que eu bebo dessa fonte para criar a minha música, que eu acho perfeitamente justo. No entanto, eu posso fazer a música que faço e como faço e esta continuar a ser considerada jazz. Essa fluidez e abrangência é muito interessante.”

Night Dreamer’s Direct-to-disc Sessions foi lançado em Novembro de 2020 com o selo da Night Dreamer e More Arriving, um dos discos mais apreciados pela crítica em 2019, foi reeditado este ano.


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