Pontos-de-Vista

Karyna Gomes

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Um ser repleto de luz.

Sara Tavares… Sua firmeza na leveza era o que mais nos conectava com a sua arte

É como se o nome que lhe deram influenciasse a sua essência. Sara, uma princesa que se tornou rainha e “mãe”… que apesar de não ter sido progenitora de nenhuma outra vida gerou espiritualmente uma “nação” com a unção que trazia na voz e na existência, no seu modo de ser e de estar.

A Sara nos fazia pensar duas vezes antes de falar ou de fazer. Pelo menos comigo era assim. Personalidade e caracter forte, mas ao mesmo tempo frágil, sua firmeza na leveza era o que mais nos conectava com a sua arte e com a sua pessoa. Transformou vidas.

Primeiro, foi com o programa Chuva de Estrelas, quando Sara éramos todas nós numa só, meninas africanas e luso-africanas dentro e fora de Portugal, quando vimos que era possível ser estrela numa terra que achávamos ainda que não era nossa, hoje sabemos que não é bem assim…. quando nos abriu caminho e mente para sonharmos e realizarmos nossos sonhos. E não era conto de fada nenhum! Ela trouxe à luz que a terra que a viu nascer era crioula de essência, sem gritos, mas com melodia. Juntou samba e semba, mambo e rumba numa canção que balançava todos que a ouviam e seguiu a luta com ternura e bravura.

Provou que princesa também podia ter carapinha e curvas mais acentuadas, longe das narrativas “hollywoodianas”, que a cantar funaná todos podiam vibrar sendo de que geografia forem, provou o que era deixar uma nação inteira rendida e levar o nome da mesma nação ao patamar mais alto que já tinha atingido num festival da Eurovisão até então. Era preta, era incrível, era revolução.

Depois, o exemplo de que não é sobre ser famosa, mas sobre ter essência e ser fiel às raízes, fazer jus ao que se é, transmitir mensagens que transformam e curam. Ninguém teve a oportunidade que Sara teve para fazer muito mais sucesso do que fez, se quisesse simplesmente se tornar — “na flor da idade” — um grande nome do mainstream português, e podia,  mas preferiu ser ela mesma e fazer a música que sentia e vivia, honrar sua portugalidade ou cabo-verniadidade e a fé que a movia, desmistificando a religiosidade tóxica e o falso moralismo. Não sei se terá ou não se arrependido, porque podia ter ido muito mais longe como cantora de pop, mas esse é o grande legado que deixa para todos nós.

Também não sei até que ponto Sara, na cena musical internacional, dentro ou fora do mercado da world music ao qual se dedicou parte considerável de sua carreira artística, não merecia ter mais destaque e reconhecimento — fecho os olhos e vejo as dezenas de Grammys que podia e merecia ter recebido nas suas mãos, mas quem sou eu para o afirmar? A verdade é que podemos dizer que existe a música afro-portuguesa antes e depois da Sara, que existe uma forma de ser e de estar na música pop e tradicional portuguesa e até “palopiana” antes e depois de Sara Tavares. 

Não me parece que não nos tenha influenciado a todos ou a quase todas, todos ou todes os artistas da nossa geração que tenham surgido depois dela. Sinto-a na voz da Aline Frazão, da Mayra Andrade, da Elida Almeida, do Dino D’Santiago, da Kady, do Toty Sa’Med, da minha… sim há muito dela em mim… ouvi até à exaustão todos os discos e singles da mana Sara e compus muitas coisas editadas e não editadas em que claramente dava para sentir a sua vibe. Vou gravar um tema desses que ela adorou.

Foi fundamental na releitura sobre minha música… “vai ter com os putos que fazem beats sistah! E leva teus conteúdos à sua forma de fazer música…mistura com coisas da Guiné e vais ver como corre bem”, disse-me quando, por causa dela, tive de deixar um disco inteiro para trás para fazer outro, porque me trouxe uma leitura sociológica pertinente, atualizada e desprovida de preconceitos sobre a nova música urbana que faz nas nossas geografias… fez-me sentir que Kuduro é obra-prima, que Kizomba é sublime, que Gumbé também é futurista se os “putos” fizessem parte na nova roupagem.

Tenho de dizer que em 2015, na Assembleia da República Portuguesa, Sara protagonizou a produção de um dos concertos mais significantes da história em Portugal ao chamar artistas dos cinco países de expressão portuguesa para celebrar os 40 anos de suas independências numa “grande fezada”, concretizando um marco que os libertadores como Amílcar Cabral, Agostinho Neto, que fizeram suas lutas inicialmente em Lisboa, ou os Capitães de Abril que teriam lutado décadas atrás para se concretizar.

A forma de ser, a fé, a visão da humanidade, a música e a ousadia, a sinceridade e, por último, a coragem com que lutou até ao fim… tudo isso nos impacta ao vermos uma lenda viva passar por nós, marcar-nos a todos — por cinco minutos que nos tenha dispensado em vida, e partir para dar continuidade, numa outra dimensão, ao que sabe fazer como poucos: ser luz.


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