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Fotografia: Gonçalo Delgado
Publicado a: 21/04/2023

O som irrequieto de três bateristas.

Sangue Suor: “Venham aqui a este universo”

Fotografia: Gonçalo Delgado
Publicado a: 21/04/2023

O desafio partiu do Theatro Circo em Braga e materializa-se em concerto hoje mesmo. Os Sangue Suor são os bateristas Ricardo MartinsRui Rodrigues e Susie Filipe. Os dois primeiros responderam à chamada do Rimas e Batidas e ligaram-se, via Zoom, para uma reveladora conversa em que se aborda o impulso inicial que deu origem ao projecto, discute-se a bateria, a sua história e distinta função, e analisa-se o processo criativo que, além deste concerto (e mais que virão), rende igualmente disco a ser lançado pela Omnichord.

Após um frutífero ciclo de residências de criação no Serra – Espaço Cultural em Leiria, o trio congeminou a música que agora nos quer apresentar: um som irrequieto, que recusa classificativos fáceis ou superficiais, que se aventura a cruzar fronteiras e linguagens e que convoca para o seu alinhamento convidados como Surma, Selma Uamusse ou Cabrita, entre outros. O Salto, título do trabalho de estreia, é dado agora.



Na designação escolhida para o projecto, poderia dizer-se que em “Sangue” se pode ler “sacrifício” em “Suor” o equivalente será “trabalho”. Mas aqui não há lugar para “lágrimas” ou “sofrimento”, não é?

[Rui Rodrigues] Não, não! [Risos]

[Ricardo Martins] Ainda não, pelo menos por enquanto [risos]. É só Sangue Suor. Ainda não houve lágrimas, mas uma lagriminha aqui e ali faz sempre bem. Para já, ainda não há.

Muito bem. Como é que isto acontece? Não é assim tão vulgar três bateristas cruzarem-se num mesmo projecto. Imagino que haja aqui um factor qualquer exterior que ajuda a que isto aconteça. Não sei se terá a ver com a encomenda do Theatro Circo, se o desafio partiu deles. Mas como é que o projecto nasceu?

[R.M.] O Rui é que é o culpado disto tudo. Ele é que te vai dizer.

[R.R.] É giro, porque surge de uma conversa com o Paulo Brandão, do Theatro Circo. Vem daquela minha teimosia, em jeito de brincadeira, de pensar no lugar do instrumentista — neste caso, de um baterista ou uma baterista. A bateria é um instrumento bastante recente ainda e está a evoluir muito. É uma ideia que trabalho muito com alunos e colegas: é super-giro desconstruir o lugar do baterista. Falo muito sobre isto com o Ricardo: o baterista começou com o trap, o mestre do trap, dos sons e da cena live, com os teatros e as orquestras. Temos tendência a reduzir o lugar de todos os instrumentistas — neste caso, o do baterista. Falei com o Paulo sobre essa coisa dos bateristas e ele, há dois anos atrás, diz-me que gostava de assinalar o aniversário do Theatro Circo com um momento percussivo. Nesse momento aconteceu uma daquelas coisas muito imediatas e pensei em fazer qualquer coisa com bateristas — na altura era com quatro bateristas. Não imaginava este salto que estamos a dar, o de formar uma banda a partir daí — já estamos nesse processo. O início foi um convite para um momento percussivo no Theatro. Pensei exactamente no Ricardo, na Susie e também na Catarina para fazermos aquele primeiro vídeo que está online e que foi o vídeo da comemoração do aniversário. Foi assim que surgiu. Mas desde então já muita coisa aconteceu [risos].

Disseste aí uma coisa muito curiosa, que a bateria ainda é um instrumento muito recente. Na verdade, a bateria contém dentro de si os mais antigos instrumentos do mundo. A sua organização neste formato que agora conhecemos é que será uma coisa mais recente. É um instrumento que comporta essas duas dimensões — por um lado, a de uma ancestralidade, da pele esticada sobre uma caixa de ressonância, por outro lado, aquela forma de ser organizada (e que eu penso que devemos ao jazz) que é, essa sim, uma coisa mais moderna. É um instrumento com uma dupla condição, uma dupla ambivalência, muito particular, não é?

[R.M.] Eu acho que nós exploramos não apenas a bateria, mas também o uso dos sintetizadores e de algum tipo de voz processada, que não era possível até há bem pouco tempo. Há esta ligação entre aquilo que é uma linguagem rítmica e aquilo que é o processamento digital e o algoritmo, estás a ver? Mas não deixa de ser curioso que o estavas a dizer sobre essa dimensão da bateria. Aqui acho giro que essa dimensão não se faça sentir só na bateria, mas na banda, de alguma forma.

[R.R.] Assinalaste muito bem. É verdade e é curioso. Esse é um dos aspectos interessantes de vários instrumentos. No caso da bateria, eu até a considero como um poli-instrumento — temos pratos, peles e tambores, mas tudo o resto pode surgir na bateria, como o Ricardo sugeriu. É aí que a diversão começa, pelo menos para mim e creio que para o Ricardo também: começar a descobrir que temos esse lado da bateria e também temos os synths e as vocalizações, porque são estes bateristas que estão a fazer isto. É giro, porque continuam a ser três bateristas a gravar vozes, a gravar synths ou a pensar sonoridades. Isso é muito interessante para mim.

[R.M.] Ya. Nós pensamos nos synths enquanto bateristas, o que é giro.

Há bocado o Rui mencionava que pensou logo nestas pessoas. Mas porquê estas pessoas? Até porque tu deves de conhecer muitos bateristas, não é?

[R.R.] Sim. Conheço muitos bateristas [risos]. Tenho-me entregado à percussão tradicional durante muitos anos, mas antes disso já estava na bateria e a dar aulas de bateria. Fui ganhando uma paixão… Há pouco tempo disseram-me: “Tu és apaixonado por este instrumento realmente! Porque uma coisa é tocar, é adorar ou curtir, mas tu és mesmo louco por esta coisa!” É algo que sinto cada vez mais, mesmo não sendo super-super-geek. Acho que sim, que é uma paixão. Tenho uma conexão muito forte e um respeito muito grande pelo instrumento, porque ele também me molda como pessoa. Mas isso já será uma etapa à frente [risos].

Eu pensei no Ricardo, na Susie e na Catarina e tive essa conexão com eles logo nas entrevistas. Já conhecia mais ou menos, melhor ou pior, o trabalho de cada um deles. Pensei logo — e posso dizer aqui, que não é mentira nenhuma — em desafiar o João Doce, que é um grande amigo e uma pessoa de quem também gosto muito, para fazer aqui umas brincadeiras. Só que isto é tudo malta muito ocupada [risos]. Eles têm sido incríveis e uns queridos, porque eu sei que não é fácil quando eu ligo e digo “vamos fazer uma coisa”. Depois eles dizem-me “ok” e há uma abertura para sermos uma banda, para pensarmos todos. “‘Bora lá!” O desafio é ainda maior, mas é ainda mais bonito. Pensei logo no Ricardo porque ele é uma pessoa incrivelmente interessante, nem vale a pena estar a dizer, por todos os projectos, riscos, aventuras e desafios. A Susie, a energia que ela tem em palco… Para mim, o palco é uma casa, é um momento em que há um botãozinho e qualquer coisa muda em mim — estou ali num modo super-natural. Gosto muito de ver essa energia de palco crua da Susie. No início também tivemos a Catarina, outra pessoa super-natural em palco e eu adorei a energia dela. Por sermos todos muito diferentes… Como tu disseste, eu conheço muitos bateristas que considero parecidos comigo. Temos as mesmas referências, se calhar vamos ter sonoridades parecidas. Até podemos tocar e curtir imenso, mas se calhar, para produzir ou para arriscar… Eu queria mesmo arriscar e se formos quatro pessoas muito diferentes, com referências e percursos diferentes, eu acho que o resultado poderia ser mais interessante. Vamos ver [risos].

Vamos entrar aqui numa parte mais geek da entrevista. E antes de falarmos de synths e coisas adicionais, os vossos kits para este projecto específico têm algo de diferente daquilo que vocês costumam usar? São kits personalizados para esta aventura em concreto?

[R.M.] Sim. E acho que pensamos todos dessa forma. O meu, até em jeito de piada, está sempre a mudar. Estou sempre a trazer coisas novas [risos]. Neste momento tem os dununs, tem o meu kit de bateria e depois tem a parte do computador e tal, para eu estar a processar e disparar coisas. Foi tudo pensado para… O meu kit é todo muito mais grave e é todo seco, mesmo agora com os instrumentos de percussão e apesar de ser percussão de baqueta, continua com esse carácter de médio-grave. Tem esse chão. Tem menos articulação. Quando quero fazer coisas mais rápidas, tem de ser de pulso e não pode ser de ressalto. Tem essa dinâmica. Também porque eu sentia que do outro lado, principalmente no kit do Rui, tem um bocado do outro mundo, do detalhe e da articulação, dessa riqueza toda de timbres mais agudos, de washes mais longos. O meu vai na direcção de ser gravalhão, um bocado para sair da frente dos kits da Susie e do Rui.

[R.R.] Uma das cenas que mais gosto no Ricardo é que ele está sempre a brincar com isto. Eu adoro essa cena de estarmos a brincar. Não no sentido em que não estamos a levar isto a sério, mas no sentido da emoção, do verdadeiro interesse. “Epá, na primeira residência levei isto, agora vou levar outra coisa.” Eu não mudei muito o meu primeiro kit. Não mudei tanto como o Ricardo. Não tenho essa panóplia tão versátil que ele nos tem trazido e que é incrível — e é com isso que eu estou a jogar e a contar. Eu usei um primeiro kit e voltei agora com outro, mais específico mas dentro da minha cena. Como o Ricardo diz, eu não estou a expandir muito para lá… Estou a tentar que, através das afinações, não tenhamos choques e redundâncias. O que me parece — e como o Ricardo também disse — é que com este processo nós acabamos por estar sempre em residência, naquele processo de banda, de estar em sala a desenvolver um som de banda. Isso é propositado, porque queremos manter aqui alguma cena raw, uma certa falta de cama, esse abismo de: “Hoje as pessoas vão ver um espectáculo e vai acontecer sempre alguma coisa que só acontece naquele dia.” Acho isso super-interessante. Reservamos sempre esses espaço. E como o Ricardo dizia, eu estou a conseguir perceber melhor o meu lugar, o Ricardo está a perceber melhor o seu lugar, e isso é super-bonito. Às vezes, nas bandas, uma pessoa não tem tempo de fazer… A pessoa percebe que está lá, mas nem sempre tem um momento para limar. Hoje em dia, já quase ninguém ensaia meses — ou até horas — a fio. Estamos a tentar fazer isso e creio que estamos cada vez mais apurados.

[R.M.] A sensação que me dá é a de que vai de uma cena grave, sem sustain, depois a Susie tem uma energia média-grave, também, mas muito de ataque, de energia, um grande som de bateria. O Rui está mais num som mesmo de articulação, mais de tarolas pequenas super-interessantes, de pequenas coisas que alteram o som e que vão mais para os metais. Como se estivesse a tocar mais numa lógica dos sons de madeira. E o Rui, claro, tem um kit de madeira, mas depois tem esta lógica toda do metal a pairar. Nesse aspecto, também é super-interessante o papel que a Susie tem trazido, mais do que bateria com muita força — é aquela bateria de base de rock super-interessante que ela toca de uma forma que é mesmo importante nas músicas e que também nos permite a nós, depois, de ter este espectro de graves, médios e agudos.

As pessoas tendem a esquecer-se que, para lá das peles e das madeiras (excluindo os metais dos címbalos), há muito ferro numa bateria.

[R.M.] Ya!

Os ferros representaram algum tipo de papel? Houve essa preocupação em explorar a bateria na sua totalidade enquanto instrumento?

[R.M.] Sem dúvida. O Rui, sem dúvida nenhuma, no kit dele. Eu tenho uma espécie de três cowbells, que são tão importantes que nem existe timbalão de chão — aquele espaço é para aquele timbre. O Rui, no dele, tem muito mais. Acho que te pode contar mais acerca disso. Mas é super-importante essa parte do metal.

[R.R.] Sim. Não tanto o dos tripés, embora, às vezes, me apetecesse dar uma coça nos tripés [risos]. Os tripés são os nossos piores e melhores amigos. Mas uso umas coisinhas de metal, aqueles sistemas que o Jojo Mayer desenvolveu, umas rodinhas de colocar em cima da terola, que ligam muito bem com as cenas eletrônicas do Ricardo e com as cenas que temos com voz, da Susie — é importante referir que ela também vai utilizar a voz e o piano ao vivo. Mais uma vez, no Theatro Circo, vamos ter sorte com o piano, é acústico e é percussão. Não foge à percussão. Há uma coisa que me tem interessado muito nos últimos anos. Eu “despertei” para a música electrónica, na sua vastidão, muito tarde. Ultimamente estou a tentar colar-me imenso, estou sempre a desafiar-me para tocar com coisas electrónicas ou com malta da electrónica que queira passar um bocadinho dos limites, no sentido mesmo de transpor ou de modular os compassos, de não pensar padrões repetitivos. Também estamos a tentar fazer um bocado isso — não sermos A/B/C/refrão. É estar mais no limbo [risos]. Estou muito atento, a tentar colar… Gosto muito de estar a tocar entre o Ricardo e a Susie. A Susie tem esse rockalhão, essa força, no kit dela. Tem graves muito bonitos. O recorte do Ricardo é absolutamente espectacular. Nós tentamos dialogar. Eu vou para uma cena mais no tight, mais na pele e, sim, nesses metaizinhos que eu utilizo mais os pratos.



Historicamente, os bateristas — e, se pensarmos no jazz, os bateristas enquanto líderes de projectos — contavam-se pelos dedos de uma mão, se calhar. O Art Blakey, o Max Roach, Gene Krupa e pouco mais. O Tony Williams aparece mais tarde… No rock, então, o baterista foi sempre o alvo das anedotas, não é? Há todo um rol de anedotas sobre bateristas. Mas, nos últimos anos — nas duas últimas décadas, se tanto, e principalmente no jazz —, emergiu uma espécie de uma nova classe de bateristas. Estou a lembrar-me de pessoas como o Makaya McCraven, o Kassa Overall e até um tipo um bocadinho mais velho, o Gerald Cleaver, que tem discos de electrónica pura, por exemplo. São bateristas que recusaram ser contidos pelos limites, se é que eles existem, do seu instrumento, e começaram a acrescentar tudo — electrónica, sintetizadores, a bateria como trigger para uma série de outras coisas. Eu pergunto-vos: vocês têm noção de que existe essa nova espécie mutante de baterista e se, por outro lado, isso de alguma forma vos influenciou nas buscas que este disco tem?

[R.M.] A mim influenciou-me muito… Tu falaste aí do Max Roach e há um disco do Max Roach… Há dois, mas existe este em particular, o M’Boom, que é um ensemble de sete bateristas, ou de sete pessoas a tocar ritmo, que me influenciou bastante. O meu primeiro disco a solo vem muito de eu ouvir esse disco durante muito tempo e de se tornar numa coisa muito importante para mim. Já para não falar das coisas dele a solo, também, no Drums Unlimited, nas coisas com o Milford Graves, principalmente… Ou seja, não sei se é mais agora… Acho que agora, se calhar, o foco é diferente e é mais fácil perceber que há bateristas a fazer esse trabalho. É uma coisa que existe desde o início da bateria, de alguma forma. Pelo menos para mim, há uma série de pessoas que vai sendo importante ouvir, como o Han Bennink ou a Valentina Magaletti. Eu tenho uma parte dos meus discos favoritos ali nas plataformas digitais que são só discos que têm a bateria como coração ou como motor. De facto, existe muita coisa. Acho que o que percebemos, nesta banda, foi que se uma banda pode ter três guitarras, também pode ter três baterias. É exactamente isso. Isto é uma linguagem e estamos a comunicar uns com os outros, só a acrescentar. E percebendo um bocado o que é que cada um faz, conseguimos compor temas de uma forma muito normal. Se calhar, é mais estranho para algumas pessoas que podem ainda não ter ouvido tantos projectos com esta característica, mas isto já andar aí [risos]. Tem sido, de facto, muito importante — e só assim de cabeça — escutar gente como o Eli Keszler ou o Deantoni Parks. É malta que tem uma linguagem super-super-importante e que me vai acompanhando nas manhãs, enquanto vou fazendo outras coisas ou quando estou a pensar na bateria.

[R.R.] O Ricardo resumiu muito bem. Nós falamos muito disto: há muita malta a fazer, nós vamos descobrindo e vamos renovando esse efeito de desconstrução. Porque todos ganhamos com isso. As bandas vão continuar a ser bandas e as orquestras, orquestras. Mas não há nada como cada instrumentista pensar no seu lugar. Quando eu falo dos bateristas e daquela piada, “o que é que os músicos querem dos bateristas?”, tem a ver com tudo isto. E contra mim falo, que tive muitos anos na cena de baterista sideman — “É para cumprir e para servir.” Só há poucos anos é que comecei a fazer esse exercício. É para isso que estamos aqui. Acho que toda a gente ganha com isso. E nós somos quem ganha mais.

[R.M.] Também acho que é uma cena boa estarmos a conversar musicalmente os três. Aprendemos coisas. Vou apanhando certos movimentos do Rui e da Susie e isso é super-interessante. Depois há-de se desenvolver e consigo aplicar noutra coisa qualquer. Esse tipo de linguagens é fixe. Se calhar, eu acabo por ter tido uma abordagem à bateria mais, não sei, meio louca e descontrolada. Sempre curti muito desta ideia, de pensar nesta música sozinho. Isto está a ser brutal porque, imagina, quando fiz o meu primeiro disco a solo, com loops de bateria… Agora eu estou  a ouvir as mesmas coisas, mas não são loops de nada e são linguagens bué diferentes da minha. E é sempre melhor conversar com outras pessoas em vez de conversar comigo próprio, que se torna aborrecido.

O que é que, para lá dos vossos kits, levaram para o estúdio? Modulares? Computador, obviamente. Que outros instrumentos representaram um papel mais digno de nota neste trabalho?

[R.M.] Uma coisa que te posso dizer logo é que sinto que começou com o synth do Rui. O Rui tem um DX7 que, para mim, se tornou na base das músicas, de alguma forma. Depois, o trabalho que eu fiz, de pôr em cima desses synths do Rui, acho que teve um carácter importante. Houve modulares, field recordings que eu depois transformo em instrumentos — é uma coisa que gosto muito de fazer. Houve modulares mais como processamento de coisas, não tanto como instrumentos. Usámos muitos instrumentos de soft-synths digitais de voz. Ando a adorar a ideia de usar coisas de voz meio estragada e usá-la como synth. Encontrei uma série de synths de voz, soft-synths que já tinham esse carácter, e trabalhei-os um bocadinho. Uso-os mais pela curiosidade e, às vezes, tento não desafinar demasiado nem pensar muito no que está ali, para que seja só uma coisa de vibração, exactamente porque tem essa lógica super-bonita do DX7, que aguenta aquela destruição toda de ter uma coisa mais estranha em cima. Acho que isso é fixe e acaba por funcionar. Acabou por se tornar no som da banda, o que é giro e resulta desse diálogo. Depois, em cima disto tudo, metes a voz da Susie e parece que as coisas cairam todas no mesmo sítio, no sítio onde deviam cair. Isso é fixe. Mais uma vez, acho que há aí uma lógica fixe: o Rui está no DX7, ali num grave fixe, eu com estas coisas que uso estou muito mais no agudo, e parece que invertemos os papeis ali na lógica da sonoridade. Faço feedbacks e drones de textura. Depois é mais fácil de meter outra vez o médio-agudo da voz.

Mencionaste aí uma coisa muito importante: o som da banda. Há-de ter havido um momento em que o disco está terminado e vocês perguntam: “O que é isto? É rock? É electrónica? É jazz? Experimental?” O disco vai ter uma edição física e há-de ser preciso arrumá-lo numa prateleira, numa loja. Em que prateleira é que vocês o vêem ser bem arrumado?

[R.R.] Boa sorte para essa malta [risos].

[R.M.] Estou como o Rui. Não sei como te dizer. A cena é que temos esta proposta que, se calhar, é menos convencional. Então também é mais difícil de arrumar, seja onde for. Não te sei dizer. Sei que os ingredientes do cozinhado são aqueles que te fomos dando até agora, mas não sei o que é que vem no “prato” ou em que “restaurante” é que “vendemos” isto.

Para lá do vosso núcleo, da vossa tríade, há uma série de outros nomes envolvidos neste disco. Como é que chegaram até eles e porque é que, uma vez mais, foram até àquelas pessoas?

[R.R.] O processo tem-se mantido fluido e isso é muito bonito. Ou seja, em estúdio, as cenas casavam sempre. Chegou a haver um momento em que ia dizer ao Ricardo para fazer um overdub de um timbre e ele já estava na sala a fazer exactamente esse timbre, que é inacreditável [risos]. Os convidados também surgiam assim, alguém falava num nome que já estava praticamente debaixo da língua para aquele tema. Foi assim no caso da Selma, foi assim no caso da Surma e do Cabrita, com certeza. Foi o que deu pica a este disco e a esta banda, o nós podermos chamar malta para vir mergulhar em tudo isto que estamos a dizer. “Venham aqui, a este universo.”

[R.M.] Também por causa da linguagem.

[R.R.] Também pela linguagem. Alguns temas são diferentes, apesar de tudo, o que é curioso. Esse tema com a Selma é muito instrumental. Nós fizemos o disco em residência e já compusemos algumas coisas, depois, para o espectáculo da semana que vem [hoje, 21 de Abril]. Começámos a perceber como é que as coisas funcionam. Eu sou super-ingénuo no sintetizador, que não domino de todo, mas começo a criar ambiências que sei que vão casar super-bem com aquilo que o Ricardo vai trazer. E sabemos, os três, que vamos conseguir encontrar uma comunicação. Já começamos a saber. Agora, quando estou a gravar alguma coisa, já começo a perceber e a pedir coisas ao Ricardo, à Susie, ou vice-versa. Já dá gozo ir em cima disso. Confesso que os temas mais recentes são aqueles que me dão mais entusiasmo agora, para fazer ao vivo, e creio que isso é bom sinal, de que o que estamos a fazer está em movimento.

Como é que isto vai ser resolvido em palco? Todos vocês em estúdio fizeram mais do que sentarem-se atrás do kit — como é que isso vai resultar em cima do palco? E estes convidados que chamaram para o disco vão também estar presentes, pelo menos em alguma das ocasiões?

[R.M.] Não sei se posso spoilar, mas agora, nesta ocasião em Braga, temos o Cabrita e Larie. Depois, noutros concertos, potencialmente pode surgir mais malta. Como é que nós vamos conseguir resolver isto? Há uma adição a este trio, que é o Vitor Hugo, que vai fazer assim uma lógica de multi-instrumentista — vai tocar guitarra, baixo, synth — para ligar com estas coisas todas que nós já tocamos e que vamos estar a disparar. Basicamente, é uma tentativa para chegar a um bom meio termo de coisas que foram gravadas aqui, no quartinho ao lado, e que vão soar naquele PA grandão, com coisas que são tocadas em tempo real, mais a voz e o sax, neste concerto em particular. Noutros concertos teremos outras vozes e outras coisas. É um híbrido. Tem uma sessão do Ableton Live super-artilhada com mil coisinha e truques que não podemos errar [risos]. Também achamos que é importante e parte das características desta banda vêm dessa atenção à construção e ao desenho de som.

Eu não tenho muito mais para vos perguntar, mas há uma palavra que foi usada aqui com frequência ao longo da nossa conversa, que é a palavra “banda”. Nós vimos nestes últimos anos, por causa da pandemia, muitos projectos a nascerem, vá lá, meio ad hoc, não é? “Não tenho mais nada para fazer, ‘bora lá cruzarmo-nos e fazer qualquer coisa juntos.” Acredito que vocês também tiveram esta conversa. Alías, Rui, não sei como não me convidaste também para a banda, porque a dada altura falaste comigo nas conversas que organizas no Instagram (risos)…

[R.R.] Não convidei ainda!

Exacto, exacto [risos]. Mas nós vimos muitos projectos nascerem fruto destas circunstâncias muito particulares que atravessámos. Mas também ficou a sensação, a dada altura, que vários desses projectos tinham feito sentido naquele momento, em que estávamos à procura de ligações, e que, com o mundo a voltar ao normal, a vida também volta ao normal e, se calhar, eles deixam de fazer sentido. Mas vocês usaram muito a expressão “banda”. Isto é uma coisa que vocês encaram como tendo futuro, ou o futuro é agora e depois logo se vê?

[R.M.] Eu acho que isto se transformou numa banda. Quando tu começas a tocar com as pessoas, começas a divertir-te e a encontrar coisas, começa a fazer mais sentido tu quereres mais. Tu começas a querer esticar a vida disto. Começou com a celebração de um aniversário e passou para um disco. Temos este disco e já estamos a fazer músicas para outro disco. Acho que já não há dúvidas nas cabeças de nenhuma destas três pessoas, que é uma banda. Agora, a continuidade desta banda eu espero que seja por muito tempo e que se consiga fazer muita coisa diferente. Mas isso, lá está, vamos caminhando. O caminho vai começar a ser trilhado e depois logo vemos onde nos leva. Na minha cabeça, sem dúvida nenhuma que isto é uma banda e acho que falo pelo pessoal todo quando o digo. Também porque me está a dar imenso gozo. Se não estivesse a ter gozo, se calhar era mais um projecto efémero.

[R.R.] Creio que sim. E é uma coisa natural. Eu estive muito tempo em bandas e já passei por isso. É curioso porque, às vezes, digo aos amigos que já não estou numa de bandas, mas é diferente. É como o Ricardo acabou de dizer e é giro, porque tem piada. Nós agora é que vamos perceber… Falo por mim: eu estou agora a perceber qual o meu lugar nesta banda e a banda vai perceber qual é o seu lugar nesta panóplia de música incrível que temos em Portugal — há imensos projectos por aí de grande abertura. Temos de perceber, com muita humildade, qual é a recepção e o retorno que temos de comunicação, porque estamos à procura desse lugar. Mas estamos a divertirmo-nos imenso. Já disse algumas vezes esta semana, em entrevistas, que para mim isto já está incrível. A partir daqui é tudo bom, é só cozinhar, deixar ali a marinar [risos].

Para terminar: tu agora mencionavas como nós atravessamos este momento de excelência na música portuguesa e, para isso, contribuem editoras com uma visão muito assertiva e criativa daquilo que deve de ser a música. A Omnichord, que carimba a edição do vosso disco, é certamente uma delas. Como é que eles aparecem aqui na equação? E o disco vai ter edição física, não vai?

[R.M.] Vai sair um 12”, que pelo que sei chegou hoje a casa do Rui [risos]. Vai ter essa edição. Como é que a Omnichord surgiu? Se calhar não te sei precisar e o Rui vai explicar melhor isso. Sei que o Serra é um sítio muito especial para mim, onde eu tenho o prazer de passar muito tempo em residência com vários projectos e bandas. Dá-me muito gozo estar lá com aquelas pessoas por perto e sinto-me em casa. Então fiquei muito feliz por saber que o vinil ia sair por aí. Mas o Rui explica-te melhor.

[R.R.] Foi um misto de duas coisas. Eu também tinha conhecido o Hugo e o trabalho da Omnichord, fui começando a juntar os pontos. Gosto de estar sempre ligado com a malta, a perceber o que é que a malta está a fazer. Eu gosto de ir aos concertos. Se o Ricardo vem ao Porto, eu vou ver. Ando por aqui, vou a Braga, gosto de ir aos concertos, de estar com a malta e de tentar perceber os lados de cada uma das pessoas que estão aqui, na música. Sinto muito isso. Não sinto que haja diferenças. Estamos todos na mesma cena, na música. É importante, para mim, perceber e respeitar isso. Eu conheci o Hugo e, quando o Theatro Circo começou a propor a ideia de editar um disco, havia já a ideia de… Isto foi tudo à maluca e tudo muito rápido. Primeiro a cena do Theatro, depois a ideia do disco e tal, eu liguei ao Hugo para lhe dizer o que estávamos a fazer e o Ricardo apresentou-me à Serra, espaço que eu não conhecia. O Ricardo disse logo que poderia ser um sítio fixe para fazermos as residências e juntaram-se logo todas as coisas. Mas foi num telefonema que fiz com o Hugo que lhe disse “estamos a fazer isto”, que é tudo o que temos estado a falar aqui, até agora. Foi isso que falámos. E o Hugo disse “vamos fazer isto! ‘Bora lá!” Eu adoro muito isso no Hugo. Essa coisa do experimentar e do arriscar, sem entrar demasiado na loucura. Acho incrível poder-se fazer isto na música. Ainda ontem estava a falar com malta sobre isso, sobre discos conceptuais e sobre fazer e pensar discos. Acho muito fixe que a malta neste momento comece a experimentar na música sem medo e sem pensar demasiado no mercado, que como disseste está incrível e rico, o que é óptimo. Mas também deve haver espaço para estes riscos e estas loucuras, porque acho que nos vamos divertir bastante.


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