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Fotografia: Rafael de Oliveira
Publicado a: 26/07/2021

Desconforto, aprendizagem e celebração.

Sanbraz: crónica de um ritual em construção

Fotografia: Rafael de Oliveira
Publicado a: 26/07/2021

Sexta-feira, 23 de Julho. Jardins da Galeria Quadrum, em Lisboa. Em palco estavam G Fema, Nídia, Danifox, Rabu Mazda e Tristany. Tudo começou com um desafiante convite da produtora Filho Único. A este criativo e promissor quinteto da nova música portuguesa e além-fronteiras foi proposta uma residência artística com vista à construção de um espectáculo/acontecimento ao vivo, alicerçado em nova música original. Os cinco aceitaram o desafio, apesar de nem todos se conhecerem, nem partilharem exactamente o mesmo tipo de linguagem musical. Em comum partilhavam uma pulsão para o cultivo dos ritmos, dos sons e das palavras que traduzem e celebram a diversidade, que baralham os rótulos e as fronteiras e que buscam novas possibilidades de comunicação dos corpos e das mentes rumo a uma descolonização artística e poética dos imaginários e das visões do mundo. 

Este diálogo colectivo terá começado em meados de Maio, com o objetivo de fazer da música um objecto de laboração que ia sendo construído à medida que também se iam conhecendo. Para Nídia, a ideia era “ter a oportunidade de misturar o sauce de cada um e ver o que saía”. Todos partilham que este processo de mistura e construção não foi só artístico, foi também pessoal e humano. Para que a música germinasse foi necessário que se conectassem não só musicalmente, mas humanamente – que se conhecessem, compreendessem e se interligassem. Durante quase três meses encontraram-se, partilharam processos de trabalho, dialogaram sobre a forma como vêm a música e o mundo. Trabalharam na construção de ritmos, de sons e de palavras que, por um lado, reflectiam a identidade artística de cada um e de cada uma, mas que, por outro lado, acrescentava a essas identidades um sentido colaborativo e colectivo, em busca de um som que representasse o todo e não apenas a soma das partes. 

Os oito temas que compuseram foram o resultado desse processo colegial. A decisão de dar um nome a este colectivo veio apenas depois. A opção recaiu sobre Sanbraz, palavra que em crioulo designa o segundo dia da festa que se torna num novo convívio, organizado a partir dos “restos” da pândega do dia anterior. Em certo sentido, sanbraz condensa, em si mesma, três das principais características desta residência. Primeiro, o facto deste encontro não deixar de significar uma celebração colectiva da afirmação e do reconhecimento do trabalho prévio de cada um e cada uma destes músicos. Depois, porque representa justamente a natureza colectiva do encontro, que se fez de diálogo e partilha permanente. Finalmente, porque como veremos adiante, esta ideia de encontro e de celebração traduz-se também na forma como projectaram ao vivo as músicas que compunham no estúdio. Assim, como nos disse Danifox, toda esta produção foi uma ampla aprendizagem, assente numa labuta colectiva que se constrói a partir de cada artista que já vem “com o seu ritmo, com a música, com a sua maneira de ver, de ouvir, de aprender”. O estúdio da Interpress tornou-se, então, o seu laboratório criativo e foi lá que os fomos encontrar na véspera do tão aguardado concerto. 

Rumámos com elas e com eles ao estúdio onde nessa tarde ensaiaram parte do alinhamento do concerto do dia seguinte. Na parede, um poster dos míticos N.W.A. Na cabine de som um quadro de notas sobre as tarefas que tiveram em mãos, desde a composição dos sons ao planeamento do concerto, da indumentária à cenografia. Quando no estúdio se agarraram aos microfones, aos teclados, aos computadores e às guitarras, percebemos de imediato que as expectativas, apesar de elevadas, não sairiam furadas. Cada tema que interpretavam anunciava que aquele encontro havia produzido algo realmente belo. No estúdio, as pessoas que ali se encontravam iam sorrindo e abanando o corpo ao som de cada faixa, cujos pormenores os músicos iam limando em conjunto, sem que ninguém se impusesse ou assumisse um protagonismo especial. O público do estúdio estava mais que conquistado, faltava o desafio do dia seguinte.  

A criação dos temas assentou num diálogo onde Nídia, Rabu Mazda e Danifox assumiam um domínio mais apurado dos instrumentos, por relação com G Fema e Tristany que sobressaíam nas palavras, melodias e vocalizações. No entanto, não houve balizas estanques neste processo colaborativo, onde todos influenciaram o trabalho uns dos outros. Onde quem produz também rima, onde quem rima contribui para a produção. Segundo Rabu Mazda, o processo começou com a preparação das músicas e só depois pensaram em como reproduzi-las ao vivo. Mas Nídia, ouvindo o colega, volta um pouco atrás para nos explicar que antes da música tiveram de se conhecer e descobrir como é que cada um trabalha, qual a relação com a música e quem são enquanto pessoas. Foi também por isso que, como nos diz ainda Rabu Mazda, “toda a gente aprendeu coisas novas e tentámos sair da zona de conforto para tentar encaixar, fazer a coisa acontecer. Tentar fazer uma coisa diferente do que estávamos a fazer”. Assim foi. Em estúdio antecipam temas em que claramente reconhecemos a identidade de cada um, mas onde, ao mesmo tempo, se vislumbra uma nova linguagem em construção. Estão lá os poderosos e pujantes instrumentais de Nídia, o andamento electrizante de Danifox, o desconcerto melódico de Rabu Mazda, as vocalizações sensíveis de Tristany e a força do rap de rua representado por G Fema. Está lá tudo isso, misturado, combinado, articulado em busca de um som novo, distinto e unitário. 

Para Nídia, o que criaram é “uma coisa nova”: “A partir do momento em que estamos a juntar as batidas com a voz do Tristany, com as melodias do Leo [Rabu Mazda] e com a voz da G [Fema], estamos a fazer uma cena nova.” Tristany apanha a boleia de Nídia e dá um exemplo: “Houve uma vez que fiz duas malhas e depois cada um deu o seu parecer e a coisa foi mudada e ficou muito melhor. Tive uma ideia e depois a Nídia e o pessoal que estava aqui construiu a cena muito melhor do que tinha imaginado. Aprendemos bué com o desconforto porque há coisas que individualmente nunca faríamos. Foi uma bênção nesse sentido, poder aprender com eles”. 



Voltamos a encontrar-los já na Galeria Quadrum, onde chegámos pouco depois das 17 horas, ainda a tempo do teste de som e do ensaio final. A essa hora, G Fema já colocava no seu Instagram a anunciação: “Hoji tem Sanbraz”. Várias pessoas quiseram juntar-se à festa, mas sem sucesso, porque os bilhetes esgotaram nem quinze minutos depois da abertura da bilheteira. Muitas dessas pessoas acabaram por se sentar fora do recinto, na relva, que permitia assistir ao concerto no lado de fora. Nas pessoas ressoava aquilo que no concerto Nídia cantaria a alto e bom som: “O Covid está-me a fatigar!”. 

Passava pouco das 19 horas quando finalmente se iniciou o momento do encontro, do convívio e da celebração. Em cima do palco cada uma e cada um ocupa a sua posição. Na frente do palco, uma mesa com cervejas, o resto de uma garrava de Gold Strike, tremoços e salgados, um pacote de batatas fritas abertas. 

O grupo acusou alguma timidez no arranque e demorou algum tempo a conquistar um público demasiado espaçado, fragmentado e bem-comportado perante o que acontecia à sua frente, em cima do palco. A conquista do público é um processo, neste caso especialmente desafiante porque os músicos não se limitaram a tocar os temas que compuseram, optando antes por construírem uma performance onde representavam um sanbraz, um convívio-encontro onde não só davam protagonismo aos temas, como também entre si iam dialogando, interrompendo-se, conversando sobre outros assuntos, improvisando sons e diálogos, testando a imprevisibilidade do encontro. O público demora a ser conquistado porque o que está a acontecer é inesperado. É necessário que se construa um diálogo com a proposta criada, o que só vai acontecendo à medida que se vai compreendo a linguagem que nos é proposta. 

Nada que, no entanto, atrapalhe o essencial da experiência que é servida pelo magnífico repasto sonoro que não deixa ninguém indiferente. Um cruzamento das electrónicas com raízes suburbanas, mas que se afirmam para lá de qualquer fronteira, em diálogo com a fidelidade a um hip hop puro e duro que tem orgulho em ser cantado em crioulo, com um afrobeat futurista e desconcertante, com vocalizações emocionais e as melodias cantadas que não deixam que a palavra perca a importância perante o aparato sonoro. Em palco, Nídia segura o microfone mais que o habitual, interpela o público e controla o acontecimento. 

No reportório trazem oito originais, mas a meio ainda há tempo para pausar, partilhar os comes e bebes em frente do palco, enquanto o som de fundo vai transmitindo notícias em loop sobre o Covid-19. Pretexto para Nídia dar um murro no estômago do público, lembrando os artistas e os profissionais que trabalham nos bares, clubes e discotecas onde se celebra a música e a diversidade e que estão há quase dois anos sem trabalho. Lembrando o seu caso que só se aguenta pela solidariedade da família. 

Nídia é uma verdadeira mestre de cerimónias. Para além das produções incríveis, no espectáculo ao vivo tem tudo sob controle. Ajuda os colegas, interpela e desafia o público, espicaça momentos imprevisíveis. Tristany brilha muito alto e ocupa a cena com plenitude, colocando a voz e o corpo numa presença íntima, mas que procura o desconcerto e uma abertura do campo de possibilidades. G Fema, mesmo que mais discreta, assume com rigor e segurança os seus versos, oferecendo uma determinação que dá força e transmite confiança ao colectivo. Danifox e Rabu Mazda são mais discretos na interacção, mas essenciais ao garantirem que a festa é bem guiada e harmonicamente aditivada. 

Não é um som de fácil catalogação, o que não é problemático para os próprios artistas que dizem não gostar de rótulos, etiquetas e fronteiras. O essencial são esses pedaços de cultura sonora em laboração na Grande Lisboa, que nascem das vidas de quem alimenta a cidade, mas que a ela não se aprisiona porque esta é uma música que supera as fronteiras e procura liberar os corpos que habitam os subúrbios da cidade. Corpos cuja potência está para lá de qualquer poder normativo que fixa e em que se fixam as demarcações. Nas palavras de Tristany, é uma música que vem dos “corpos que alimentam a cidade e que têm de existir. Quando existem, eles criam, eles vivem, e fazem acontecer certo tipo de coisas”. 

Ninguém sabe ao certo qual será o futuro deste magnífico e promissor quinteto. Todas e todos levam aprendizagens deste encontro. Todos os temas foram gravados, antes de serem tocados ao vivo. Poderá haver novos sanbraz? Um EP? Novas colaborações? Nenhum deles sabe ao certo, mas todos deixam as portas abertas para o futuro. Como resume Tristany, o que se criou na residência foi uma atmosfera, mas para ter continuidade precisa de vida: “É preciso que os rituais sejam celebrados, para que os nossos corpos ainda entrem mais em conexão”. O futuro a elas e a eles pertence. Da nossa parte, apenas desejamos que o ritual ganhe vida, oxigénio e potência, porque o país e o mundo merecem ouvir os ritmos, os sons e as palavras desta gente que está a mudar a música e, desta forma, a transformar o mundo. 


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