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Fotografia: Joana Linda
Publicado a: 17/09/2020

Esvaziar-se nas músicas para salvar uma pessoa de cada vez.

Samuel Úria: “Mesmo que não queira ser um cronista do meu tempo, há coisas às quais eu não consigo ser impermeável”

Fotografia: Joana Linda
Publicado a: 17/09/2020

Canções do Pós-Guerra soa a título de ex-combatente, mas a postura de Samuel Úria é mais a de um escuteiro: a partir da exploração, a sua discografia é uma viagem musical específica e cada vez mais distinta. Passados quatro anos de Carga de Ombro — e com o EP Marcha Atroz pelo meio — um dos cantautores portugueses mais celebrados e aclamados da actualidade está de volta com um projecto em que apresenta um seu lado mais pacato e intimista, em que a distorção é mais latente, mas a intenção, ainda assim, não menos pungente. 

Nesse ponto-de-encontro que é o Zoom, o Rimas e Batidas “sentou-se” com o artista para falar sobre o novo álbum — que fica disponível amanhã, 18 de Setembro –, estes estranhos novos tempos, e o balanço que surge com os números redondos.



Como é que tem sido a reacção ao teu single “O Muro”? 

A reacção tem sido muito favorável embora eu normalmente costume medir o pulso à reacção das canções mais quando as toco ao vivo. Há uma relação com a canção que já percebi que é especial, de algumas pessoas que tive a oportunidade e o privilégio de ler, mas ainda falta esse teste principal que é o palco para perceber como é que as canções estão a ser recebidas. Recebi várias mensagens de amigos músicos a congratularem-me por uma espécie de nova fase que eles estavam a entender que estava patente nesta canção. E isso foi muito gratificante. 

Achas que este álbum inaugura uma nova fase para ti e para a tua carreira?

A minha carreira tem sido construída em discos que, não se anulando face aos anteriores, trazem sempre alguma novidade. Este particularmente é uma grande novidade em relação ao último disco, mas precisava de ser porque o meu último LP foi lançado em 2016 e eu toquei-o durante muito tempo. Foram quatro anos a tocar o mesmo disco, e não por querer estar a chatear as pessoas, até pelo contrário. Foi um disco que se foi revalidando, havia muita a gente a descobrir o disco passados três anos, pessoas a pedirem concertos. Eu repeti terras em que dei concertos com públicos diferentes, e percebi que o disco teve uma vida muito longa. E por ter estado tanto tempo a viver aquele disco, quis que este fosse diferente, até arriscando estar a perder algumas fórmulas de sucesso que eu encontrei no disco anterior. Mas quis mesmo que [este disco] caminhasse radicalmente noutra direcção. E essa direcção para onde eu fui pode não ser a mais vendável. Eu não estou a desprezar o público que construí, mas também quero que as pessoas entendam que eu não sou só aquilo. Depois de um disco que tinha laivos mais pop e mais electrónicos, aparece este disco mais contido, mais acústico, a exploração das vozes nem sempre é para lugares mais felizes ou festivos como tinha sido anteriormente. É um risco, ainda por cima numa altura que eu não sei se as pessoas querem ouvir coisas pouco festivas, porque precisam de espairecer. Mas é um risco que tenho de assumir porque são canções onde eu me revejo. E revendo-me, vou defendê-las.

Nota-se uma abordagem mais suave e acústica neste álbum. Achas que isso se vai traduzir bem para um espectáculo ao vivo?

Esse será o grande tira-teimas. Quando eu comecei a fazer este disco — finais de 2018 comecei a pensá-lo, comecei a gravar em meados de 2019 –, não esperava que de repente ficássemos tanto tempo confinados, primeiro em casa e agora confinados a bastantes regras. Não estava preocupado em fazer um disco que fosse demasiado alegre, e até quis que fosse, no meio da minha discografia, um álbum mais contido. Daí ter às vezes sonoridades mais plácidas, apostar muito nas guitarras acústicas, ter canções em que o desespero fosse patente, um lado mais dramático. E eu não percebi que ia haver um tempo em que a necessidade fosse de música enquanto escape, porque eu não estou a fornecer escape. Tenho essa dúvida de perceber até que ponto é que as pessoas vão querer perfilhar um disco que as vai fazer lembrar tanto de um período mais acabrunhado, mais contido. Só que até agora as reacções de quem já ouviu o disco não foram nada negativas. Tenho esse optimismo de que também haja quem queira reflectir comigo sobre o que se está a passar, ou então até aliviar a sua carga por perceber que também há pessoas e artistas que estão a viver o mesmo. E embora não tenha sido um disco escrito para a pandemia, é um disco que de alguma maneira acaba por reflecti-la, e posso encontrar ouvidos que estejam disponíveis para se sentir numa espécie de congregação de dor, ou de reflexão, ou uma congregação que precisa muito de esperança e vai encontrá-la em quem está a viver o mesmo momento. 



O que é que te levou a escrever este álbum?

Na minha cabeça, este disco era para ser originalmente uma continuação de um EP que eu lancei em 2018 intitulado Marcha Atroz. Seria uma continuação, não como sequela, mas seria um disco que acoplaria essas canções, ou seja, teria mais essas quatro, e parto já com uma ideia definida que o EP me tinha dado. Mas como o tempo ia passando e já estava a distar bastante desde o lançamento do EP, não fazia sentido de repente existirem coisas que já eram tão antigas a serem apresentadas como novidade. Mas havia já duas ou três canções que vinham no seguimento desse EP, e davam uma ideia de conflito, e eu apercebi-me que a palavra “guerra” pode ter vários entendimentos. Guerra pode ser o conflito armado, a guerra de sexos, guerra ideológica, debate de ideias, conflitos interiores… e o conceito da guerra que eu descobri a partir dessas duas ou três canções dava para escrever um disco inteiro em que não ficava refém de um só tema, podia abordar vários temas e ainda assim não fugir ao título da guerra. E o pós-guerra ainda mais clareza e mais amplitude me dava porque pode ser um período de reconstrução, um período de rescaldo, de muita esperança, um período de pouca esperança. E assim podia construir um disco em torno destes temas, que são vários, e mesmo assim o conceito poder ser só um.

O álbum foi escrito em 2019, mas o tom profético de algumas canções parece ser inspirado por 2020. Este ano está a provar as ideias de apatia e dormência que referes em alguns dos temas?

Sim, esse lado da apatia e da dormência que às vezes podem ser um baixar de braços por cansaço, estarmos vencidos pelo cansaço. Mas o disco também fala de alguma esperança e de uma perspectiva quase de revolta por coisas que merecem revolta. Isso agudizou-se em 2020, embora eu não esperasse que existisse uma pandemia, mas algumas das coisas que foram intensificadas pela pandemia e algumas coisas que são bastante negativas já existiam em 2019. Estava tudo presente e isso levou-me a escrever sobre algumas coisas que me rodeavam. Mesmo que não queira ser um cronista do meu tempo, há coisas às quais eu não consigo ser impermeável, porque são tão gritantes que acabam por verter para dentro da minha escrita. Havendo algo que fosse transformador e obrigasse à mudança, eu sabia à partida que a mudança não ia ser para melhor, havia atitudes que iam ser extremadas. Eu não sabia que ia haver um negacionismo de uma doença ou pessoas a dizer que não usam máscara para defender os seus direitos. Mas sabia que o melhor do ser humano não está na ordem do dia. Era difícil não ser profético, e houve uma pandemia a provar alguns dos meus maiores receios e a revalidar algumas coisas que eu escrevi antes de saber que iam acontecer.  

Frases como “O povo em bruto é tão sereno” de “Fica Aquém” ou “Temos estado a afirmar muita inspiração/ Mas não flui” em “Aos Pós” mostram uma poesia mais preocupada com o mundo que a rodeia, e observadora da mesma. Achas que esta mudança na tua escrita é uma espécie de responsabilidade que vem com a idade ou achas que os tempos o exigem?

A posteriori a ler algumas das primeiras coisas que foram escritas pelo disco, confrontei-me com o texto que o Rui Portulez da Valentim de Carvalho escreveu que fala exactamente dessa questão da idade, e percebi que o Rui tinha razão. Eu não me senti mais velho mas estando a mudar para os 40 que é um número redondo, estando o mundo todo ocidental a mudar de 2019 para 2020, esses números redondos convidam ao balanço. E eu sou apegado à memória, sou apegado a datas marcantes, fui convidado a fazer esse balanço. Por outro lado, essa inevitabilidade de falar do mundo que me rodeia também é evidente e é patente. Estamos numa fase em que há coisas que se estão a passar que são tão inesperadas, pelo menos para mim que cresci à sombra de alguns valores intocáveis por ser recente ainda a revolução. Há uma defesa de alguns dos ideais de Abril que é uma defesa perniciosa. Defende-se liberdade de uma determinada maneira, muito demagógica, populista, defende-se o combate à corrupção com água no bico, para arregimentar medos. Eram coisas que eu não esperava que acontecessem no meu país, por eu achar que havia um rescaldo da revolução que ainda estava em curso e que nos fazia estar apegados a determinados valores. Eu acho que era inevitável escrever sobre isso mesmo que não quisesse. Há bocado disse que não tinha a intenção de ser cronista mas se eu me esvazio para as canções, eu não consigo esvaziar as preocupações. Sou sensível quando estou a escrever, tento estar atento ao que sinto e eu sinto muito o que se está a passar.  



Sobre a tua escrita, “Aos Pós” discute uma indolência no seio de cada um de nós mas tem toda a sonoridade de um call to arms, de agirmos. Porquê esta ambiguidade?

Às vezes gosto de fazer esse jogo. Quando quero passar uma mensagem de esmorecimento faço uma canção mais enérgica, quando quero ser duro, ou ácido e azedo, faço uma música mais doce. Acho que neste disco essa é a única canção em que eu faço esse jogo, que é uma coisa que eu fazia muito no passado. Neste disco, por parecer um disco de alguma madurez, até evitei. Tentei ser mais literal, acoplar a sonoridade com a mensagem. Mas como essa canção é a primeira, não é uma declaração de intenções mas é uma declaração de desilusões, e é uma canção que comporta alguma ironia. E eu acho que a ironia é mais rockeira do que propriamente baladeira, e eu queria essa ironia de estarmos sempre a declarar-nos como o próximo passo de alguma coisa, e que no fundo acabamos por ser só pó, somos pós, somos partículas que andamos aqui e muitas vezes fazemos menos história e somos menos história do que aquilo que gostamos de arrogar para a nossa geração. 

Depois de ouvir o teu álbum, fico com a sensação de que estás com o olhar atento ao mundo que se crê cada vez mais pessimista e encontras um refúgio no amor. 

Existe esse pessimismo, mas eu também me ponho na força motriz das coisas negativas. Eu não me excluo disso que se passa, porque os defeitos que eu reconheço no mundo tenho que os reconhecer em mim primeiro. E essa desesperança em relação ao movimento das coisas contém também alguma esperança. Se eu identifico as coisas negativas e eu não tenho um discernimento maior que os restantes, eu acredito que esse discernimento pode também chegar ao coração de qualquer pessoa, e o antídoto para todo este veneno acaba por ser o amor. Tive que incluir canções de amor porque são canções que para mim são redentoras. E eu acredito que o amor é redentor, e que a redenção do mundo — embora eu tenha alguma dificuldade em acreditar que o mundo vá caminhar para um sítio universalmente melhor — pode existir no coração das pessoas. Pode não salvar o mundo inteiro mas há-de salvar algumas pessoas. Mesmo acreditando que “world gone bad” é o futuro, acredito que existe esperança para as pessoas. E para as pessoas que conheço vou-lhes dar amor e vou escrever sobre amor para que elas percebam que pode ser um elemento salvífico.

Na realidade do streaming e da música cada vez mais descartável e de consumo rápido e fugaz, o papel de intervenção de consciencialização social da música continua a existir? 

Acho que tem que existir. Em Portugal tivemos um período em que era tão necessário que existiu de uma forma sublime, e tornou-se o panorama musical de uma época, formou uma geração de músicos que são heróis para nós que fazemos música agora. E essa fórmula ficou como sonoridade e houve coisas feitas no encalço desses cantores de intervenção num período em que já não fazia tanto sentido porque gozávamos de uma liberdade extrema. Mas acho que por respeito àquilo que se tinha passado foi fixe essas fórmulas continuarem. Continua a haver muito respeito e há malta a fazer mesmo e a fazer muito bem uma espécie de renovação da música nacional neste momento com base em coisas que o Zeca fez, ou o Fausto, ou o Zé Mário. Se ouvirmos discos do Fachada ou o disco do Sambado, são canções que comportam essa nobreza de uma canção portuguesa que é revolucionária, e vão buscar trejeitos sonoros dessa revolução. Eu não ambicionei renovar com este disco, até é um disco que se recusa à renovação, não quis que fosse um disco que soasse a uma coisa extraordinariamente do meu tempo. A minha homenagem a essa revolução não é sonora, embora seja fã. Acho que tanto para mim como muita gente que está a escrever música que soa a revolucionária, o mérito é menos nosso, o mérito é mais da necessidade que haja uma revolução ou que se contemple uma análise, uma reflexão muito grande em relação àquilo que nos está a rodear. E eu acho que pelo menos em Portugal, e em relação aos quarenta anos que nos antecederam, é necessário falar sobre questões sociais, sobre questões raciais. São assuntos que estão na ordem do dia de uma forma que forçam a alguma acção de quem quer que seja que esteja a fazer arte, que esteja a tentar a marcar a cultura do nosso tempo. Não podemos ficar inertes perante aquilo que se está a passar. E mesmo que não haja intencionalidade, às vezes marcam tanto que vão ter que entrar nas nossas análises. Eu falo por mim mas sei que há muitos colegas meus que estão a passar exactamente pelo mesmo período de revolta. Há uma estupefacção tão grande que depois de ficarmos boquiabertos com o que se está a passar, essa estupefacção rapidamente se transforma em canções, em inspiração, em sermões.


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