LP / CD / Digital

Samuel Úria

Canções do Pós-Guerra

Edições Valentim de Carvalho / 2020

Texto de Miguel Santos

Publicado a: 01/10/2020

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2020 é para esquecer e, portanto, propomos que, por cinco minutos que seja, esqueçamos também o conceito de tempo. Tal descuido temporal permite-nos ir até ao tempo dos trovadores, dias em que a pandemia no horizonte era negra e saltava à vista e não era silenciosa e escondida por máscaras. Imaginemos uma noite de folia e animação com declamações desses poetas e de trovas de um qualquer cancioneiro da altura. Esperem… porque é que o próximo a actuar é o Samuel Úria?

A verdade é que o cantautor português e o seu novo álbum Canções do Pós-Guerra ecoam os intérpretes de tempos antigos. As seis cordas da guitarra substituem as do alaúde nesta equação mas a sua engenhosa poesia que tem tanto de street smart como de pomposa contrabalança o tom menos barroco das canções. E neste álbum as letras de Úria brilham ainda mais, como a fogueira ao lado da qual são cantadas. 

As palavras deste tondelense tornado bardo destacam-se especialmente por causa do tom despido e acústico deste projecto. Depois do grandioso Carga de Ombro, Canções do Pós-Guerra mostra-se contido, dotado de uma simplicidade que nunca deverá ser confundida com falta de ideias, como “Cedo” tão bem demonstra. É uma poderosa e doce brisa de amor profundo, transversal a todos os apaixonados, sejam miúdos ou graúdos. É um testemunho do amor duradouro: os que sabem, sabem, e aqueles que não sabem, ao som desta promessa sonora anseiam saber.

O amor que compõe o mais recente repertório de Samuel Úria vai muito além das cantigas deste tipo de trovador, trazendo essa imagem romantizada para os tempos modernos com baladas profundas e pessoais. “O Muro” mostra-nos alguém complexo, difícil de amar mas que se esforça pela sua cara-metade, enquanto a contemplativa “Guerra e Paz” nos mostra um homem derrotado, a quem o perdão fechou as portas. São cantigas que oferecem uma visão de amor mais abrangente que o simples conquistar das donzelas, ainda que “Contenção” mostre que o acto de cortejar continua a ser uma arte, ao bradar aos céus um amor que bate forte dentro do coração. 

Mas o que seria um trovador sem as suas cantigas de escárnio e maldizer? Pouco mais que um romântico incorrigível, certamente, mas Samuel Úria mostra-se como muito mais do que isso, revelando-se igualmente um observador atento e pessimista do mundo gradualmente mais volátil que o rodeia. “Aos pós” apresenta-nos ao álbum e aos tempos actuais através de um estado da arte da dormência e apatia, firme e hirta na sua cadência mas indolente nas suas palavras, uma reflexão irónica sobre a inevitabilidade e insignificância da nossa existência. Já “As traves” foca-se nos culpados, apontando o dedo a um personagem vil e asqueroso que não vê para além dos seus interesses. 

Mas é “Fica Aquém” quem melhor resume esse olhar cronista. Se os jogos de palavras não nos convencem, a frase final certamente que o fará: “O povo em bruto é tão sereno” ecoa antes de ser engolfada por vocalizações proféticas. É uma aviso deste cantautor que emula as aventuras musicais do passado sempre com os pés bem assentes no terreno, naquele que é um belo cartão de boas-vindas de Samuel Úria a esta nova era do trovador. Agora que a teoria está exposta, voltemos até à primeira dessas eras, certo de que Canções do Pós-Guerra está exactamente onde devia estar.


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