Samuel Martins Coelho é uma mente criativa irrequieta, um artista que está habituado a cruzar territórios: tanto estéticos, como geográficos. A música, explica-nos, é uma forma de comunicar, de partilhar, mas também de reflectir e até de resolver. Extinção é o título do seu mais recente projecto, uma obra que reflecte sobre o fim das coisas que nos rodeiam, sobre o que podemos fazer para contrariar isso. Em diálogo constante com a bateria de Pedro Gonçalves Oliveira, o violino de Samuel Martins Coelho transmite o seu pensamento — e experiência — carregando subtis ecos dos diferentes focos estéticos do seu universo — das músicas eruditas ao rock, da improvisação livre ao jazz.
Em conversa com o Rimas e Batidas, Samuel fala de forma cândida sobre saúde mental, sobre o envolvimento com o que nos rodeia, sobre composição e algo mais, expondo sem rodeios aquilo de que se faz a sua arte. Muitas migalhas, explica-nos, podem dar um pão. A 28 de Setembro, Samuel Martins Coelho dará as boas-vindas ao Outono numa apresentação ao vivo em Serralves onde, certamente, passará por algumas das peças de Extinção.
Queria que começasses por me explicar o conceito e a ideia por trás deste Extinção. Tendo atenção ao título do álbum e das faixas, é nítido que isto é um disco que parece, de alguma forma, ser inspirado pela emergência climática que atravessamos. Mas fala-me um bocadinho das ideias que nortearam este trabalho.
Antes sequer deste disco tomar este rumo da questão climática e da questão de como é que o ecossistema está, ele começa com uma série de reflexões que eu comecei a ter para mim próprio, no sentido de o que é que eu faço, ou o que é que eu não faço, ou o que é que eu posso fazer para poder contribuir de alguma forma, se é que estou a contribuir, como é que estou a contribuir, se só estou a falar e estou a agir pouco… E constatei uma coisa um bocado dura, que foi que, realmente, se calhar falo um bocado mais e ajo um bocado menos. Então, a partir daí eu comecei a desenvolver o disco e percebi que queria entrar em duas dimensões. Uma dimensão é factual — por exemplo, de coisas que estão efetivamente extintas. E há algo que eu acho que está em vias de extinção, que é questão da empatia, do cuidado, de estarmos mais preocupados, sei lá, em dizer “bom dia” ou dizer à pessoa da caixa que está a registrar os produtos do supermercado que está com um penteado fixe — coisas assim mais mundanas. Eu estou a pensar numa perspectiva de migalha, não numa perspectiva de algo grande. E depois, não tem de todo um tom paternalista, nem um tom de… É simplesmente uma reflexão que eu estou a fazer. E depois, se esta reflexão tiver algum impacto e fizer as outras pessoas pensar, tanto melhor, mas também se não fizer, lá está, não somos obrigados, as pessoas podem tomar as suas decisões. Além disso, isto depois dá seguimento a um disco, que é uma caixa — que é a caixa em extinção —, da qual fizemos 50 unidades — por acaso, esgotámos-las ontem. A caixa foi feita em parceria com o Nascentes e com o Gui Garrido. Essa caixa, para quem a comprou, tem sete objectos que são referentes às músicas, e eles próprios são objectos a pensar numa distopia. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que tu hoje em dia, se calhar, para mostrar algum status, algum poder ou alguma hierarquia, sei lá, compras uma coisa que, se calhar, para a pessoa comum é um luxo — como ter um carro incrível ou um relógio que custa não sei quantos euros. Esta caixa vem com pequenos elementos que são os novos luxos. Eu tenho duas faixas que se chamam “Floresta” e “Amazónia”, então dentro da partitura da “Floresta” vem um pedacinho de madeira — mas um pedaço trabalhado, esculpido, digamos assim — que é quase como o teu luxo. Ou seja, tu dentro daquela caixa tens aquele último pedaço de madeira, quase como se a floresta já tivesse sido dizimada. Ou, por exemplo, tens um licor que é um abafadinho de um senhor de Leiria que tinha vinhas — já não as tem —, então só tinha o último garrafão e deu-nos esse abafadinho — quando estas 50 garrafas forem bebidas, esse abafadinho também deixa de existir. Fizemos 50 edições e não vamos fazer mais. Dentro da questão destas reflexões todas que eu estava a fazer, também quis fazer algo diferente noutro sentido, que é doar todo o dinheiro feito a partir das vendas, então procurámos duas associações que não tivessem grandes apoios. Portanto, mesmo eu, o próprio músico, tive de comprar o meu próprio disco. É uma questão de princípio. Se é para ajudar, então eu também vou comprar o meu disco.
É curioso porque, no teu discurso, o que eu pressinto é que nós andamos quase sempre muito preocupados com os grandes gestos e esquecemo-nos que é nos pequenos gestos que nós podemos começar a mudar as coisas, não é?
Sim, sim. Eu tenho pensado nisto porque eu antes lancei o Partita Para Violino Solo e o Cura, e esses discos foram escritos enquanto eu estava diagnosticado com perturbação de pânico e ansiedade, então estive medicado, e agora estou outra vez medicado porque tive uma recaída. Fui-me apercebendo dessas pequenas coisas. Às vezes, no meu dia, a cena mais fixe era conseguir sofrer menos um bocadinho. Sinto que, se calhar… Eu fico meio perdido a falar nisto, mas eu acho que é nos pequenos… É como uma obra de arte — ela só é incrível se os pormenores estiverem todos bem limadinhos, não é? Ou se tu ouves um disco e, sei lá, às vezes pode ter muitas coisas e está tudo bem, mas se calhar também podes ouvir um disco que tem pouca coisa mas que te abre um universo de caraças, porque tudo o que está lá, está na mouche. Então é um bocadinho este pensamento que está por trás: muitas migalhinhas podem fazer um pão. É um bocado este o meu pensamento neste momento.
E musicalmente? As coisas anteriores tuas que eu estive a ouvir, como o I ERROR, têm mais eletrónica, não é? E faz sentido que este seja um disco ao contrário, muito mais acústico, que vive de dois instrumentos acústicos, apesar do processamento que eu sei que aplicas ao teu instrumento. Musicalmente, sabias que querias fazer uma coisa diferente daquelas que tens vindo a explorar?
Não. É assim, eu neste momento já vou com o meu terceiro disco a lançar este ano. Eu lancei o I ERROR porque comecei a fazer peças de teatro e muita sonoplastia e fui usando alguma maquinaria, mas depois, como sou um geek, gosto de estudar. Comecei a estudar as máquinas e ao fim de um certo tempo percebi que tinha ali qualquer coisa. Mas como o processo foi muito de tentativa-erro, eu quis efetivamente que o disco fosse uma ode ao erro, daí se chamar I ERROR. E, imagina, eu venho do mundo clássico, então o erro foi uma coisa que sempre esteve muito distante da minha vida — distante do ponto-de-vista de que eu não podia errar, e se errasse era um mau músico, era um mau intérprete. E agora, este I ERROR também é uma perspectiva diferente, que é olhar para o erro numa perspcetiva que não é a de te mandar abaixo a auto-estima ou de que falhaste em algo, porque quem não tenta não falha.
Há até músicos, de jazz, por exemplo, que dizem que não há notas erradas, não é?
É isso. É preciso arranjar soluções. Para este disco, o que também foi bastante desafiante, eu acho, foi, para já, escolher uma formação que, se calhar, no free jazz é uma coisa mais, não digo natural, mas teres um violino e uma bateria, se calhar já é uma coisa mais frequente. Então o desafio foi: “Como é que eu componho um disco que não seja aborrecido nem para mim, nem para para quem o ouve?” Ou seja, tentar manter o interesse durante um disco inteiro. São só dois instrumentos, é um violino e uma bateria, não há mais nada.
Mas são dois instrumentos muito ricos, seja como for, não é?
Sim, sim.
Como é que foi a gravação? Vocês gravaram em simultâneo? Como é que, no estúdio, este disco aconteceu?
Isto foi um processo com duas partes. Eu escrevo primeiro, então tenho os MIDIs dos programas, enviei-os ao baterista, o baterista ouviu, sentiu e começou a… O baterista é o Pedro Gonçalves de Oliveira, já agora. E eu dou sempre carta branca, ou seja, se é uma parceria, é uma parceria. E depois juntámo-nos para tocar, para ver como é que a coisa soava organicamente. Sentimo-nos bem, fizemos uns ajustes e fomos gravar. Eu gravei a minha parte primeiro, porque como tenho a partitura é só tocar do início ao fim. E ele ouviu, começou a criar o esqueleto dele, começou a criar as dinâmicas, a escolher as peças, a afinar as baterias para cada música, que também foi um processo muito interessante, porque a bateria está nas tonalidades que as músicas estão. Foi sendo feito de forma faseada.
Já houve apresentações ao vivo?
Houve duas. Uma foi no festival Nascentes. Houve outro mais recente, inserido no projecto da Escola do Rock, aqui de Paredes de Coura. Agora já tenho datas para Setembro, estou a fechar coisas para Outubro.
Como é que correram essas duas apresentações?
Foi maravilhoso, maravilhoso. No Nascentes foi incrível, porque uma das associações veio ver o concerto, então no fim tivemos pessoas a conversar sobre como é que é o dia-a-dia, o que é que é estar numa associação, o que é que eles fazem. E as pessoas adoraram o concerto. Ainda ontem aconteceu uma coisa muito interessante e que eu já não estava habituado, mas isto não é para parecer cocky nem nada disso: nós ontem fizemos o concerto no restaurante Taboão, que é um restaurante que abriu agora, e os miúdos estavam a assistir o concerto, não estavam com o telefone na mão. Eu quero acreditar em duas coisas: ou a música era fixe, ou era pela instrumentação ser tão distinta; porque eles estão habituados àquele quarteto de rock, e o facto de verem uma bateria e um violino foi tipo, “uau, espera aí…” Foi uma das duas coisas, eu tendo a acreditar na primeira [risos].
A tua música, e neste disco em particular, sinto que oscila por diferentes territórios, alguns dos quais desconhecidos, provavelmente — para mim, pelo menos —, mas há outros mais identificáveis, em que se sente que tu estás com um fraseado mais jazzy, ou que tens um discurso mais clássico, no sentido erudito do termo. Mas também há momentos de pulso rock neste disco.
Há, sim. Foi isso que o Pedro trouxe. Eu tenho um lado mais, não diria jazzístico, mas mais erudito, e vou um bocadinho ao jazz, também um bocadinho ao rock. Mas o Pedro também me traz muito peso, traz-me aqueles grooves que se ouve no solo, estás a ver? E isso é porque ele está sempre a mudar as peças da bateria, está sempre a pôr cenas em cima. Eu diria que também há um pouco de hip hop nisto, timbricamente, pela maneira como ele toca nos pratos, a mistura de quinquilharia. Como ele gosta muito desses universos, nós vamo-nos… Os universos em que eu não existo, existe ele. Então vamos criando ali… Acho que sim, que o disco tem uma personalidade, e acho que tem uma linguagem que eu e o Pedro conseguimos escrever ou fazer acontecer. Sinceramente, no panorama geral, sinto-me muito contente por achar — e com isto não quero parecer de todo arrogante nem nada — que fizemos um disco que não é tão comum — porque não é jazz, não é pop, é instrumental. E uma das coisas que os miúdos ontem disseram e que eu achei piada, por exemplo, foi que a música instrumental também é fixe e não é preciso ter sempre alguém a cantar. Aquilo também foi um bom filtro, estás a ver? Tem corrido muito bem. E vou-te ser muito sincero: está-me a me dar um gozo do caraças. E é também, se calhar — e isto pode nem ter nada a ver com a conversa, é só um desabafo —, como faço tantas coisas diferentes, o ego já não é uma das coisas que está a tomar conta de mim. Eu estou a tocar e isso é fixe. Se tocar muito, toquei muito. Se não tocar muito, paciência, não toquei muito, é mesmo assim. Tenho outras coisas que me ajudam a complementar, eu estou sempre a tocar e a dar concertos, mas agora acho que estou num sítio muito fixe, que é eu realmente estou a fazer discos porque me apetece.
Eu estava a olhar para os títulos do álbum e eles são muito auto-explicativos — “Amazónia”, “Clima”, “Empatia”, “Tempo”, “Floresta”, “Água”. Mas quando eu vi “Pieris Wallastoni”, eu pensei: “Isto deve ser, provavelmente, um ecologista qualquer italiano. Isso passou-me pela cabeça, mas não há nada como ir ao Google e procurar “Pieris Wallastoni”. E foi então que fiquei a saber que é uma borboleta. Achei alguma graça, porque é um título que destoa de todos os outros, mas depois vai-se a ver e não destoa coisa nenhuma.
É isso. Eu fiz alguma pesquisa e essa borboleta… Não sei se é autóctone da Madeira, mas existia na ilha Madeira. É uma espécie que ficou extinta por causa da utilização de pesticidas na agricultura. Esta ideia em torno da Pieris Wallastoni fez-me lembrar aquela teoria, de quando uma borboleta…
A teoria do caos?
A teoria do caos, sim. É um bocadinho isso. É uma coisa tão simples, mas que pode desencadear uma cena de caraças. Na caixa do disco, por exemplo, tem uns pins que têm umas abelhas que uns apicultores me deram. Ou seja, elas estão em decomposição dentro dos pins. Isto porquê? Porque também, epá, lá está, pareceu-me um bocado estranho vivermos num mundo… Eu não sei se sentes o mesmo, mas nós estamos tão altamente high-tech, não é? E há campos e campos que são polonizados por pessoas, porque já não há abelhas, estás a ver? E vês uma espécie de pincel que faz amor com a planta em vez da abelha. Não sei, faz-me confusão. Será que a nossa tecnologia não nos desvia… Não sei, eu ainda estou a descobrir isto. Mas se houve coisa que este disco me trouxe, foi perceber que tenho bué de opiniões e que às vezes não valem um cu, não é? Se calhar é cliché, mas talvez devesse viver uma vida mais simples, se calhar preciso de muito menos, sei lá, não sei. Se calhar devia apreciar o que tenho, se calhar vou ver um concerto e devia estar caladinho, curtir, estar com o meu copo ou não estar com o meu copo e estar a respeitar o pessoal, sei lá… Só isso acho que os músicos já iam agradecer. “Hey, o pessoal está atento a ouvir a cena, foda-se.” Eu como músico quero estar sensível a isso, não quero ser o bronco que está ali a dizer que tocam melhor do que eu ou que tocam pior do que eu. Se estão ali, já têm mérito.
Para terminar: já tens noção — até porque, como tu bem referenciavas há bocado, o teu output este ano tem sido intenso, já com três álbuns editados — do que é que vem aí a seguir?
Tenho um disco feito que vou lançar para o ano. No final deste ano, se calhar lanço um disco com o Jorge Queijo e com o Gonçalo Almeida, que é um disco de improvisação. E tenho já na gaveta o que será o próximo I ERROR, que será tipo 2.1 ou alguma coisa assim. Já tenho músicas suficientes para fazer um disco. Não sei bem o que é que vai ser ao certo, mas está no forno.