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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 08/11/2023

Do Interior para todo o lado.

Salomão Soares: “Procuro explorar no piano os ritmos do Brasil”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 08/11/2023

Nascido e criado em Cruz do Espírito Santo, no coração da Paraíba, e atualmente a residir em São Paulo, Brasil, Salomão Soares é apontado como um virtuoso pianista, arranjador e compositor. Nome destacado da nova geração de instrumentistas brasileiros, Salomão já se cruzou em palco com figuras marcantes da música brasileira como Hermeto Pascoal, Toninho Horta, Hamilton de Holanda, Leny Andrade, Filó Machado, Renato Braz, Mônica Salmasso, Itiberê Zwarg, Arismar do Espírito Santo e Toninho Ferragutti (com quem gravou um disco em duo), entre muitos outros.

A sua destreza instrumental foi reconhecida com o prestigiado Prémio Mimo Instrumental em 2017. Soares também foi finalista do Concurso de Piano do Montreux Jazz Festival 2017, na Suíça, e conquistou o Prêmio Novos Talentos no Savassi Festival 2018, em Belo Horizonte. Participou ainda em inúmeros festivais internacionais, e assinou apresentações recentes em Espanha e Portugal ao lado da vocalista Vanessa Moreno.

Na actual edição do Misty Fest, Salomão Soares irá apresentar o seu primeiro álbum a solo, intitulado Interior. O álbum é um testemunho da sua odisseia pessoal e musical, prestando homenagem a influências cruciais que o moldaram como artista e ser humano. “Este trabalho é como uma conversa com o meu eu interior, uma busca e também uma viagem por toda a minha história musical”, revela o músico paraibano. “Acredito que uma apresentação solo para um pianista é a forma mais pura e sincera de expressão, como se fosse uma exposição da alma para o público, sem interferências externas. É sempre um desafio e é sempre uma novidade”, referiu também.

O músico sobe ao palco da Casa da Música, no Porto, já amanhã, numa noite que também contempla apresentação da cantora brasileira Anna Setton. No dia seguinte ambos os artistas repetem os respectivos concertos em Lisboa, no Museu do Oriente. Dia 12 seguem para o Cineteatro Louletano, em Loulé, e, no dia 18, voltam ambos a dividir o palco na Guarda, no Teatro Municipal. No dia 14, Salomão Soares apresentar-se-á a solo em Coimbra, no Salão Brazil.



Eu não tenho a certeza absoluta, mas suponho que esta é a primeira apresentação em Portugal.

Em Portugal já estive numa outra situação, tocando com a Vanessa Moreno, num projecto que eu tenho de piano e voz. Também foi no Misty Fest, no ano passado.

Exactamente. É verdade.

Nós tocámos ali no Espelho d’Água. É um lugar maravilhoso. Mas é a primeira vez que eu vou me apresentar em Portugal com um concerto de piano solo. É a propósito de um disco que eu estou a lançar nas plataformas digitais [Interior]. Então estou feliz demais por poder estar em Portugal fazendo uns shows. Também vou para Espanha e Bélgica. Estou muito, muito empolgado.

Maravilha. Vamos falar do princípio: como é que uma criança do Paraíba se apaixona pelo piano?

Pois é. Eu cresci no Paraíba, que é lá no nordeste do Brasil. Numa cidade do interior chamada Cruz do Espírito Santo, uma cidade de 14 mil habitantes, muito pequena. A minha mãe e o meu pai sempre tiveram uma relação com a música de forma amadora. A minha mãe sempre tocou violão em casa. O meu pai sempre gostou de tocar instrumentos de percussão nas festas de família. E aí, em algum momento, quando eu tinha os meus 10 anos de idade, me deu a vontade de aprender algum instrumento. Eu sabia que não era violão, que não era algo que me empolgava muito, mas eu falei para a minha mãe que eu queria aprender a tocar um instrumento. É curioso, porque eu falei até: “Mãe, eu quero qualquer um menos o teclado, porque acho o teclado sem graça.” E ela chegou em casa justamente com um teclado [risos]. Eu fui brincar com o teclado, que tinha uns efeitos sonoros. Aí comecei a achar divertido e comecei a relação com o teclado. Depois fui estudar piano.

Como dizia o Arthur Verocai, no clássico “Na Boca do Sol”: “Para quem mora numa cidade do interior, o céu é lá”. É um bocadinho do paraíso?

Muito bom isso. É exactamente isso. Perfeita essa colocação.

E decidiu trocar essa cidade no interior por São Paulo, a dada altura, não foi?

Sim. Em 2011. Faz 12 anos que eu moro aqui, em São Paulo. Em 2011 resolvi vir para cá para trabalhar. Lá no nordeste, na Paraíba, acaba sendo muito pequeno o espaço para se trabalhar com música instrumental, que é a música que eu faço. O grande polo de música instrumental do Brasil é em São Paulo. Já foi também o Rio de Janeiro, mas não mais. Eu sempre tive essa curiosidade de conhecer e ver como é que era. Então vim para São Paulo e me apaixonei pela cidade. Eu gosto muito de viver aqui. Também vim estudar. Estudei um pouco no conservatório de Itapuí. Mas a minha ideia era mesmo a de trabalhar, de tocar na noite. Então toda a minha história artística começou aqui na cidade.

Vamos falar um pouco sobre esse rótulo, esse conceito, de música instrumental brasileira. Eu entendo muito essa designação, como um classificativo mais apropriado do que simplesmente “jazz”. Porque a música instrumental brasileira é um chapéu sob o qual cabe muita coisa, não é? Pode falar-me um pouco sobre isso?

Essa é uma pergunta interessante. A música instrumental brasileira, a meu ver… O Brasil é muito grande, então tem muitas possibilidades e muitas ramificações dentro da música instrumental. Por exemplo, quando você pega o frevo, que é um ritmo originário lá do nordeste do Brasil, já era uma música instrumental. O próprio forró, uma festa e um movimento que começa ali nos anos 50/60, tinha uma parte cantada e outra era música instrumental. Então, naturalmente, a música brasileira teve essa ramificação instrumental natural na construção dos anos. E o Brasil é muito grande. Aí vem o chorinho, o samba… Todos esses ritmos têm o cantado e a música instrumental. O que acontece é que houve um movimento muito forte, ali com o Hermeto Pascoal, principalmente a partir dos anos 70. Ele e o Egberto Gismonti — vou citar esses dois — de certa forma ajudaram a consolidar mais a música instrumental num panorama mais jazzístico, por assim dizer. Então o Hermeto estava nos grandes palcos onde estava Keith Jarrett, Chick Corea… Ao lado deles estava o Hermeto Pascoal levando essa música, essencialmente brasileira, mas com essa concepção do jazz, da improvisação, dos arranjos um pouco mais trabalhados. Então acho que a música instrumental, a meu ver, é basicamente isso. Ela tem essa concepção do jazz, de explorar improvisação, ritmos, métricas, enfim. A gente pode entrar num assunto assim, bem mais complexo. Para mim, a música instrumental brasileira é isso, uma música que sempre existiu, mas que se veio a modificar e a ficar mais sólida ali a partir dos anos 70 com o Hermeto, o Egberto, o Heraldo do Monte e tantos outros.

Mencionou esses nomes, o Hermeto e o Egberto. Mas no seu instrumento, quais são as referências que elege?

Esses dois me influenciaram com certeza. O Hermeto Pascoal, quando eu era criança, o meu pai sempre falava dele de uma forma muito lúdica. Era o “bruxo” dos sons. Ele faz sons com qualquer coisa. Isso me deixava muito curioso. “Uau! Ele faz som com um copo! Com uma panela!” Eu sempre tive essa coisa com o Hermeto e sempre gostei muito de ouvir e estudar o repertório dele. O Egberto Gismonti é, talvez, a minha maior referência no piano mesmo. Ele é um cara que quando eu vi a primeira vez disse: “Uau! Quero tocar piano assim um dia.” Eu almejava tocar daquela forma. Mas eu tenho muitas outras referências do jazz americano, como o Chick Corea, o Keith Jarrett… O Gonzalo Rubalcaba, que é cubano. Acho que esses são os principais nomes.

O que é que me pode dizer sobre o disco novo? São só composições suas?

Esse disco tem 9 músicas. São 7 composições minhas e duas releituras. Nas duas releituras gravei uma música do Hermeto Pascoal e outra do Tom Jobim. As outras são todas composições minhas. E nessas composições, procurei explorar bastante uma coisa que talvez seja pouco explorada aqui no Brasil. Eu trouxe elementos da música popular brasileira pra um arranjo de piano mais contemporâneo, vamos dizer assim. Então peguei ritmos que não são tão comuns no piano, principalmente, como o bumba meu boi, lá do Maranhão, o caboclinho, também do nordeste. São ritmos um pouco distintos para o instrumento. Mas eu fiz questão de trazer essa coisa da música regional do Brasil para o piano e misturar com essa coisa do jazz, que eu gosto bastante de improvisar, de fazer essa mistura. Então o disco tem essa cara.

Na Europa, os pianistas quase que se esqueceram que o piano é um instrumento de percussão afinal de contas.

Exacto. Essa é uma das coisas mais legais do piano. Eu sempre tive uma relação, assim, muito mais, vamos dizer, fácil com a coisa do ritmo. A harmonia, eu sempre tive de correr atrás. Mas o ritmo, ele sempre foi uma coisa natural, talvez pelo facto de eu ser do nordeste e lá se cultiva muito essa coisa rítmica. É muito natural. Toda a gente tem um bom ritmo naturalmente. Então, quando eu vim para o piano, naturalmente trouxe essa influência para o instrumento. Em determinado momento eu fui vendo que isso é um diferencial que eu tinha. Aí eu foquei mesmo nisso e hoje é uma das coisas que eu mais procuro trabalhar e explorar no piano, os ritmos do Brasil.

Ajuda que esse instrumento seja quase em si uma orquestra, não é?

Exacto. É possível fazer tudo nele.

Em relação ao show, como é que se resolve esse, diria, dilema, de estar sozinho em palco com um instrumento que quase o obriga a estar de costas voltadas para o público, não é? Como é que a performance se torna interessante para o público estando sozinho em palco com um piano?

Óptima pergunta também. Olhe, a meu ver, eu acho que, em qualquer show, o que faz um diferencial é você conseguir explorar as nuances do show. O show não pode ficar monótono. Porque é um timbre só. O piano é um instrumento só e eu não consigo mudar os timbres. Mas eu, de certa forma, consigo mudar as nuances e sensações com o repertório do show. Então, quando estava elaborando os shows, até coloquei algumas coisas que nem estão no CD, porque eu acho que para um show ao vivo vai fazer sentido mexer com essas emoções e nuances. Ora toco uma balada, ora uma mais enérgica, outra mais swingada… Então, a minha ideia é explorar ao máximo essas nuances do show com diversos momentos e sensações. Acho que isso é um recurso que qualquer instrumentista solo pode explorar, porque acho que é o que cabe, porque não tem muito como mudar o timbre pra ter uma novidade. Eu vou, digamos, apostar nessas sensações.

Em relação a técnicas que usa para tocar, nomeadamente em palco, também usa um piano preparado, por exemplo?

Não costumo usar piano preparado, não. Eu costumo explorar as sonoridades do piano sem estar com piano preparado. Eu tento explorar ao máximo o que eu posso, com ele assim, sem nada.

A única coisa preparada é você mesmo, então.

Sim [risos].

Há um problema com que praticamente todos os pianistas se debatem. O saxofonista viaja com o seu instrumento, o guitarrista e o flautista também. Mas o pianista tem de chegar ao sítio e tem sempre de encontrar um instrumento diferente, não é?

Sim.

Como é que lida com isso? E que tipo de piano é que costuma pedir para as suas apresentações?

Pois é. Essa é uma questão que eu acho que dificilmente será resolvida. Nem sei como se resolver, também. O que acontece é que, na Europa, as experiências que eu tive com pianos foram sempre muito boas. Primeiro porque se tem uma tradição de música clássica muito forte ainda, então os pianos são sempre muito bem cuidados. Os lugares que eu visitei tive sempre a oportunidade de tocar em pianos maravilhosos. Mas, mesmo assim, cada piano é um piano. Você toca num piano e tem uma certa regulagem. Toca noutro, está muito bom, mas a regulagem é diferente. Te confesso que eu consigo até me adaptar rápido ao piano, mas eu preciso de um tempo, pelo menos uma hora, de ficar tocando na passagem de som. Fico tocando, tocando, e chega um momento em que eu já estou conectado com ele. Mas eu preciso dessa hora, que é importantíssima. Você perguntou pelos pianos que eu peço: geralmente, aqui no Brasil, um piano que resolve sempre é um C7 da Yamaha. É um modelo que tem bastantes e eles são bons, então não ouso muito pedir pianos diferentes, porque não sei como vão estar as regulagens. Eu sei que, aqui no Basil, o C7 é um piano que sempre resolve.

Três quartos de cauda ou cauda completa?

Três quartos de cauda. Mas como é um piano que todo o mundo já meio que pede, eu sei que vai ser um piano que vai estar ok. Na Europa isso varia bastante. Às vezes recebo um documento com as possibilidades, com uns 2 ou 3 pianos. Isso no Brasil é uma coisa muito rara. Poucos lugares têm essa possibilidade. De repente, eu olho e escolho, porque sei que os pianos são bem cuidados, por justamente terem essa tradição, mesmo até na música popular. Então, na Europa eu sou um pouco mais aberto. Aqui no Brasil, sempre peço um C7, porque sei que não tem erro.

Numa dessas viagens, pela Europa ou noutra parte do mundo, já aconteceu estar a preparar-se para tocar e alguém, um técnico de som da sala, vir dizer-lhe: “Sabe quem já tocou nesse piano?” E depois mencionar assim um nome que o tenha deixado impressionado?

Sim, algumas vezes. Eu estive no festival de Montreux e eu toquei numa sala onde estava o Herbie Hancock no mesmo dia. Então esse foi um momento… “Uau!” Eu nunca imaginaria, nem nos sonhos, estar na mesma sala e na mesma noite do Herbie Hancock num festival.


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