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Fotografia: Celine Marie
Publicado a: 11/10/2022

Entender a noite enquanto um espaço comunitário.

Salgado (Maus Hábitos): “Quem sobreviveu à pandemia ficou mais forte”

Fotografia: Celine Marie
Publicado a: 11/10/2022

Luís Salgado, ou simplesmente Salgado (como sempre o conhecemos), é um dos rostos mais antigos do Maus Hábitos e criou a linha de programação do espaço quando a noite do Porto era um lugar muito mais vazio do que o que hoje conhecemos. Ao acelerar por esta estrada com uma seleção eclética de concertos e pouco depois a derrapar pela cena nocturna, Salgado acabou por carregar às costas nomes que ficaram para sempre conhecidos na cidade. Apenas desejoso de juntar todas as comunidades que respeitava num só local, o seu trabalho acabou por levar a que, desde os concertos ao clubbing, a intervenção cultural se tornasse na marca de todo o quinto andar da Garagem Passos Manuel. Foram oito anos de corridas rápidas e outras mais demoradas, que colocaram sempre como premissa criar um espaço em que o abuso não podia ser servido no menu. Com uma pandemia a ser descalça lentamente, e uma série de eventos programados, o futuro é brilhante para todos os que querem continuar a dançar na pista, mas é também sobre o passado que Salgado nos fala um bocado enquanto explica como é que conseguimos chegar até aqui — a uma fase da história em que finalmente diluímos as fronteiras para erguer a polirritmia e, quem sabe, rebolar até ao chão.



O Maus Hábitos acabou por ser sempre um sítio que nunca fechou completamente durante a pandemia, mas o clubbing acabou por sofrer inevitavelmente. Quais é que foram os teus principais desafios quando se voltou a programar na noite do Porto? 

Nós decidimos que só íamos voltar a ter clubbing quando fosse possível ter pessoas a suar, a roçarem-se e a beijarem-se. Tivemos uma programação segundo as normas durante o COVID, mas, quando foi possível voltar, o que nós fizemos foi perceber as festas que já tínhamos e quais é que estavam dispostas a continuar. A primeira festa decidimos que tinha que ser a mesma que a última antes do confinamento. Na altura estava a estrear e passado dois dias acabámos por fechar, fechou tudo. Quando voltámos, a festa foi a mesma, o cartaz era igual, como se o tempo não tivesse passado. 

Houve muitas mudanças depois disso?

A maioria das festas antigas ficaram, a questão é que tive que renovar metade dos nomes. Há cerca de seis slots de clubbing nas quais ando constantemente a experimentar coisas novas, como fiz há oito anos atrás: recomeçar, mas não do zero. Andamos a fazer experiências com coisas novas, que no fundo são uma adaptação.

E com os concertos sentiste essa necessidade de experimentar coisas novas?

Não. Nós nunca paramos de fazer concertos, adaptamos só às exigências da altura. Toda a máquina estava montada, e agora voltamos a ter a lotação completa.

Como programador, quais são para ti as tuas prioridades?

Há duas premissas que continuam e que o COVID para mim não alterou. Como artista penso em como gostava de ser tratado num espaço e, como público, em como gostava de ser tratado num espaço. Há dois patamares diferentes – a arte e o entretenimento. O entretenimento é o nosso mecenas para pagar a arte e o clubbing é entretenimento massificado que, apesar de ter uma componente artística que tentamos que tenha, nós consideramos concertos e performances muito mais perto do âmbito artístico. Tentamos sempre dar o máximo de conforto possível a todas as pessoas que vêm cá, desde os artistas que tenham um espaço com bom som, um bom camarim, condições para actuar. E ao público a mesma coisa: haver segurança, não permitir abusos uns contra os outros, para que as pessoas que se sintam à vontade e distantes de algum tipo de discriminação que possam encontrar.

É interessante dizeres isso porque eu considero que há alguma pessoalidade dentro da programação dos Maus Hábitos. E, apesar de entender que fales de uma forma generalizada do público e dos DJs que actuam, eu olho para a vossa programação e parece-me muito mais complexa e pessoal do que estás a dizer.

O clubbing é uma parte muito pequena do Maus Hábitos…

Mas reflecte muito daquilo que é a vossa identidade e aquilo que as pessoas falam mais, fora destas paredes. Existe a galeria, existe o restaurante, e até chegas a ter programação fora de portas. Mas, no final das contas, não é o clube que está mais à vista?

Não tenho a certeza, não te querendo contrariar. Eu acho que nós trabalhamos com vários públicos – o público das artes não é necessariamente o público do restaurante, o público do clubbing não é necessariamente o público dos concertos, nem é necessariamente o público do cinema, do jazz, das rubricas semanais – são vários públicos. E mesmo dentro do clubbing, há vários públicos diferentes. Podes vir cá numa sexta ou num sábado à noite e encontrar públicos diferentes. Agora, quanto ao conteúdo, é sempre necessário que seja interessante e que gere interesse. E no clubbing o mais forte é sempre gerar interesse. Nos concertos é ao contrário, ou seja, é mais importante que seja interessante. Mas claro que há preocupações na programação.

Observando as diferenças mais evidentes na noite do Maus Hábitos, uma das que mais se destaca é o crescimento do movimento de comunidades não-europeias na organização das festas. Esta tem sido uma parte muito activa na programação e isso também se reflecte muito na ponte que foi feita entre Porto e Lisboa. Como é que isto aconteceu?

Quando eu vim para o Maus Hábitos trabalhar não havia nada e, por isso, tentei rodear-me das várias comunidades do Porto que faziam coisas interessantes, e íamos convidando-as para fazer aqui coisas. Tivemos a Groove Ball, a Monster Jinx, a Thug Unicorn e nessa altura quando começamos também existia uma festa que se chamava White Window que era só com DJs da Príncipe Discos, portanto, isto começou logo aí – veio o Marfox, o Nigga Fox, todos os membros. Entretanto não correu como esperávamos e eles acabaram por desistir desta festa, mas ficou sempre uma vontade. Isto logo no começo.

Como é que era sair à noite nessa altura?

Lembro-me perfeitamente que as pessoas não sabiam dançar aquela música. Norte não tem África, Norte é trabalho e guerra, logo os ritmos do Norte da Europa são Viking e Celta, ou seja, não têm festa. Melhor dizendo, os ritmos que se usam para festa são os mesmos que eram usados para marchar e para trabalhar. Usavam-se peles, tambores, tudo muito básico, mas no sul não. No sul é festa, vais para África e são só polirritmias. Cá, as pessoas não sabiam como dançar isto. Mas bem… Passado este período inicial a trabalhar na programação do espaço o mais próximo que tive foi a Enchufada no Maus com o Branko. Nessa altura, já os Buraka Som Sistema faziam uma coisa muito inteligente que era juntar todas essas raízes africanas polirítmicas com harmonias que tu identificas como europeias, da música electrónica: os baixos, os graves, os arpejos, toda essa composição. Ou seja, já havia um gancho que puxava as pessoas que estavam a assistir a música feita por negros e, com algumas dificuldade ao início, acabou por ser o Branko que colocou todas as pessoas a dançar música africana. 

O que é feito do Branko neste momento?

O Branko fez uma pausa, mas esteve cá durante cinco anos com pedagogia a todos os níveis. No entanto, pontualmente, a Príncipe Discos continuava a vir com DJs próprios, na passagem de ano ou no Carnaval. Foi ele que abriu essas portas e nos ajudou também a manter a própria Príncipe Discos presente, sendo que com eles sentia que era muito mais raiz e música da comunidade feita para a comunidade, enquanto que o Branko já pensa de uma forma diferente. Com o tempo, esta barreira foi-se diluindo, a barreira de não saber dançar, não conhecer, se a música era estranha, seja na perspectiva da música africana, como na música brasileira.

E, mais recentemente, depois de terem sido reabertas as discotecas, como é que tudo procedeu? 

Depois do COVID, houve pessoas que deixaram de ter paciência para continuar a fazer festas, criou-se uma série de espaços e, por acaso, os colectivos que eu queria que cá estivessem já cá estavam. Não havia propriamente colectivos novos que eu quisesse que viessem para cá, e foi aí que comecei a receber propostas de Lisboa como, por exemplo, a Partimento (que é, no fundo a segunda geração da Enchufada no Maus), a Dengo Club, a VHS, e eu decidi aceitar.

Havia a VHS que, no fundo, preenchia o mesmo registo que a Groove Ball, com a comunidade drag. Não sentes que fazia falta, já que o Maus é um espaço de intervenção cultural, haver mais festas Drag?

Tens a Shuggah Lickurs, que é super queer e grande parte do público é drag.



Mas sentes que é a comunidade dessas pessoas que está cá?

Durante a pandemia tivemos o Cabaret à Mesa, que tinha toda a comunidade drag cá, e foi um ano disto. Havia três ou quatro vezes por mês. O Maus nunca deixou de ser o que é, nunca abandonou essa comunidade. A VHS ia ocupar este espaço, mas neste momento não há uma festa de clubbing assumidamente drag, ainda… estamos a trabalhar nisso, estamos numa reconstrução. 

Então estas desistências que surgiram após a pandemia foram uma boa oportunidade?

Sim. Estas slots que se libertaram estão a ser ocupadas por pessoas de Lisboa, como é o caso da M3dusa que é muito presente no movimento feminista, mas mesmo o Farofa com duas festas sendo que uma delas é mesmo dedicada às comunidades não-europeias cá no Porto… Por isso estamos a recontruir tudo com um lado imigrante muito mais forte. No fundo, o lado residente já cá estava.

Faz sentido separar residente e imigrante a este ponto?

Eu não faço essa separação.

A longo prazo será essencial deixar de separar o Porto e Lisboa da forma que temos separado nos últimos anos?

A programação é natural. Eu não fui buscar festas a Lisboa, apenas acabámos por ser contactados. Alguns já tinham relação com o Maus Hábitos, outras pessoas foram aconselhadas. Mas isto é natural, e neste momento já nem acho que o Porto e Lisboa seja tão afastado como era antes. Lisboa continua a ter mais dinheiro que o Porto, mas é uma capital.

E nos concertos sentes isto?

Aí noto que sempre tivemos divididos mais entre nomes internacionais e nomes nacionais, só que sempre muito ocidentalizados. De há uns anos para cá, já antes do COVID e agora mais, já começamos a ter muito Brasil, África, Oriente, mais mundo. Não vou chamar músicas do mundo, mas certamente diferentes do pop-rock. 

E esta parte mais militante que se reflecte culturalmente no clubbing, sentes que pode acontecer o mesmo nos concertos? Há espírito activista nas bandas? 

Há, mas muito menos. Provavelmente porque um músico está muito mais preocupado em querer passar as suas coisas do que propriamente nas pessoas, enquanto que o clubbing está muito focado nas pessoas. É um óptimo espaço para, se tiveres coisas para dizer, as poderes dizer. Nas bandas é muito mais centrado na pessoa em si. Existem projetos, contam-se é pelos dedos das mãos: Fado Bicha, As Docinhas, uma série de músicos trans, a Aurora Pinho, Vaiapraia. A verdade é que existem mais no clubbing.

Não é irónico que a noite seja o vosso motor económico quando acaba também por ser uma mensagem de alcance? É aqui que entra o teu poder e isto é essencial.

Isto para nós é natural, eu não penso muito nisso. De facto temos uma série de festas em que há mais do que entretenimento, há uma mensagem em diferentes formatos. Sempre foi assim, sempre nos pareceu natural que não fosse só alguém a tocar discos, sempre quisemos mais qualquer coisa. 

Aqui o teu papel acaba por ser escolher as pessoas que vão fazer a curadoria das próprias festas. No fundo, é como se estivesses a contratar o próprio pensamento das festas, e não as festas em si – correntes, nichos, comunidades. 

Repara que o Maus Hábitos comunica para toda a gente, e ao fazê-lo corre sempre o risco de não comunicar para ninguém. Quem comunica melhor para os nichos são as pessoas dos nichos. Por isso é que para nós também faz mais sentido escolher as pessoas certas para o fazer. Elas comunicam para quem aquela festa se dirige. Porque nós se tivermos que comunicar para o clube, o restaurante e a galeria, vai ser uma confusão.

É essa a métrica perfeita?

É uma das. É trabalhar em colaboração. Partimos para os projectos sempre em conjunto, e quando ganha um lado o outro também ganha. 

Ao fim de um ano como é que nos sentimos?

Quem sobreviveu ficou mais forte. Uma das coisas que ficou foram os eventos à mesa, que acabaram por ficar depois da pandemia. Sobrevivemos bastante bem, conseguimos dar a volta por cima durante todo este período. Criámos a Circuito, que foi uma das coisas boas que ficaram desta altura, é uma associação das casas de música ao vivo que já teve frutos ainda que, infelizmente, apenas no Porto e Lisboa. Não esquecer que muitas cidades não tiveram apoio, principalmente o interior, que ainda sente. Nós já não sentimos muito a rivalidade entre Porto e Lisboa, mas sentimos bastante a diferença entre estas duas cidades e o resto do país. Há casas com programação incrível no interior e noutras cidades e esse trabalho merece ser reconhecido. 

Pensando daqui para a frente, qual é a perspectiva?

É a mesma que vem sendo depois do COVID – crescer para fora, a todos os níveis.


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