pub

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 29/09/2025

Trio marcante em disco estreia-se nos palcos nacionais.

Sakina Abdou: “Não há nada mais bonito do que dar liberdade a alguém”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 29/09/2025

A saxofonista tenor Sakina Abdou apresenta-se em trio, com Marta Warelis no piano e Toma Gouband numa bateria com pedras e ramos, no dia 9 de Outubro no Teatro do Bairro Alto em Lisboa, e dia 10 no Salão Brazil para os Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra. 

Tal como jogar ao “pedra, papel ou tesoura”, a música é um acto de combinatória de acções de objectos concretos. Uma ideia que a saxofonista Sakina Abdou trouxe como abordagem libertária na composição colaborativa e expontânea vinda de um trio por si imaginado — assim soa Hammer, Roll and Leaf, álbum de estreia do conjunto editado pela Relative Pitch. Dispostos a voltar a dar de novo — ao acaso —, como quem num recreio esconde as mãos atrás das costas, capaz de ser por momentos “pedra”, “papel” ou “tesoura”. Um jogo simples nas ideias sonoras e tornado imprevisível no resultado. Como um “espaço para reinvestir as nossas experiências, memórias e inspirações”, como reflecte a artista em análise sobre o resultado da sua música.

Em entrevista ao Rimas e Batidas, antes da partida para a digressão do trio, Sakina Abdou justifica as escolhas e modos de fazer música e como nisso transparece a razão da sua arte militante. Uma fundamental voz que se amplifica em dimensão além do fulgor do sopro do saxofone tenor. Alguém que se deve escutar de perto e por isso aqui ficam as palavras na primeira pessoa.



Os dois registos mais recentes da tua discografia em nome próprio partiram ambos como propostas de carta branca da editora Relative Pitch Records. Encaras isso como um privilégio ou até mais como um estímulo?

Eu diria os dois. Não há nada mais bonito do que dar liberdade a alguém. É uma prova de confiança, respeito, incentivo e apoio. Hoje em dia, isso tornou-se para mim um acto militante. No mundo muito liberal e competitivo que é a música, a confiança tornou-se hoje um privilégio. Não é dada nem acessível a todos e a maioria dos artistas, se ainda não estiverem integrados, reconhecidos e identificados, e se a sua palavra ainda não estiver “cotada”, vêem-se injustamente privados do acesso a essa confiança. Dar carta branca a alguém é reconhecer e apoiar o seu potencial, é dar-lhe asas para voar. É dar-lhe um espaço que essa pessoa pode decidir ocupar à sua maneira para se revelar. A mim, esse espaço deu-me a força para concentrar toda a minha energia num lugar que nunca tinha imaginado antes: o solo. Admiro e agradeço a Kevin Reilly, da Relative Pitch Records, pela sua abordagem sincera, humilde e militante. Ele não procura ganhar dinheiro com o trabalho dos artistas, apenas dedica toda a sua energia e tempo a tentar descobrir vozes escondidas para lhes dar o espaço de que precisam para crescer. Foi o meu caso. A sua carta branca para fazer um solo deu uma maior visibilidade ao meu trabalho no sector do jazz e da música improvisada. Consciente desta oportunidade, aproveitei-a da melhor forma possível, dedicando-lhe toda a minha energia e inspiração. Isso revolucionou completamente o meu compromisso profissional e levou-me agora a liderar e desenvolver, pela primeira vez na minha vida, projectos como líder, depois de ter sido exclusivamente [instrumentista] acompanhante durante vinte anos.

Precisamente, tocaste com Toma Gouband no ensemble Nist-Nah do gamelão javanês de Will Guthrie e com Marta Warrelis no seio do colectivo de Amsterdão de música improvisada Goek. Foi perceptível dessas experiências o que poderiam fazer a três, numa forma isolada dessas formações alargadas?

O que experimentei com ambos nestes dois contextos foi a sua abertura de espírito, a sua capacidade de serem e permanecerem eles próprios em contextos estéticos muito amplos. A sua capacidade também de se envolverem e se comprometerem inteiramente física, espiritual e musicalmente com naturalidade e sem esforço na improvisação. Acho que estes dois artistas têm uma identidade bonita, singular, mas acolhedora, tão livre quanto suave, mantendo-se incisiva, travessa e viva. Estou muito feliz por poder tê-los ao meu lado nesta aventura humana e artística.

Entre o registo a solo e este trio há um princípio de continuidade evidente. Um jazz sincero, algo camerístico, intimista e de experimentação minimal. Foi essa a razão para escolheres no piano Warrelis e na percussão Gouband?

Sempre foi muito difícil para mim fazer castings e montar projectos! Há muitas maneiras de escolher pessoas e uma equipa. Neste caso, foi mais a magia de uma pergunta que me agradou de repente, uma pergunta fugaz: “E como é que isso ficaria?” Sinceramente, não fazia ideia, mas senti um campo de possibilidades e fiquei curiosa para descobrir. Tinha apenas a intuição de que poderíamos partilhar, os três, uma forma de estar muito permissiva, inclusiva e lúdica, sem ego nem dogmatismo, com muita confiança e respeito. Nunca tínhamos tocado juntos os três e, antes de começarmos a gravar, a única coisa de que falámos foi sobre isso, o facto de nos aceitarmos sem restrições, sem pressão nem julgamentos, o facto de nos permitirmos o tempo que fosse necessário, sem a obrigação de ter sucesso. Não fiquei desapontada e acho que o coração da nossa música está ainda latente. 

Tudo foi gravado nesse vosso primeiro encontro de criação e ainda em sessões de música improvisada com estudantes num dado curso. Podes comentar um pouco esse processo de criação? O resultado é de composição instantânea.

Tal como na minha identidade musical, na minha vida profissional experimentei e conciliei muitas funções e papéis. Durante muito tempo fui professora numa escola de música. Nos últimos anos tenho sido cada vez mais convidada para realizar estágios e workshops pontuais de improvisação para diferentes públicos (conservatórios clássicos, música tradicional, amadores, não iniciados…). Paralelamente, há a vida de concertista, mais nómada, num tempo de criação mais linear, mais acidentado, diferente. Navegar por todos esses corredores e entre todos esses padrões de tempo bastante compartimentados (semana, trimestres) sempre me deu vontade de abrir portas para comunicar e respirar tudo isso. Assim, quando tive a proposta de gravar um álbum em trio em minha casa, fui convidada no mesmo ano pela ESMD [pólo superior de música do Conservatório de Lille]. Imaginámos em equipa, desde o início e com os diferentes parceiros, ligar as duas ações e fazê-las concorrer num tempo comum. Na sala de concertos La Malterie — actualmente ameaçada de despejo e que convido a apoiar com uma assinatura nas redes sociais, se assim o desejarem —, realizámos um palco partilhado entre o concerto dos estudantes de improvisação que eu orientava nesse ano no Conservatório e o meu trio na segunda parte. Acompanhei os alunos no seu módulo de improvisação com algumas sessões ao longo do ano e, durante o concerto, isso permitiu-nos oferecer-lhes uma masterclass com o trio. Para mim, nada é mais verdadeiro e concreto do que partilhar a realidade profissional ao vivo e ao alcance de perguntas concretas. Não há presente pedagógico mais bonito — penso eu —, do que poder propor aos estudantes que subam ao palco de uma sala de concertos, para deixarem de se considerar alunos e se permitam sentirem-se artistas. No que diz respeito à gestação do álbum, estivemos em sessão na minha casa durante alguns dias e isso abriu-nos janelas para partilhar o nosso processo. Começámos a gravar à porta fechada e terminámos com dois concertos. O resultado do disco é uma recomposição porosa a partir de excertos musicais provenientes destas diferentes situações.

Como dizes, tanto Goodbye Ground (a solo) como este Hammer, Roll and Leaf (em trio) foram gravados na tua casa. Haverá motivos para tal, certamente… Podes partilhar isso?

No fundo, tenho um grande desejo de independência e autonomia. Também não tenho muita confiança no modelo económico que rege e estrutura o nosso meio artístico. Se quisermos produzir um disco no circuito convencional, temos de ser ricos ou ter o apoio de toda uma rede de parceiros que hoje em dia estão sujeitos a muitas pressões: o colapso das vendas de discos e do apoio do Estado, a problemática da comercialização de música não comercial, etc. Sempre tive medo de que toda essa pressão recaísse sobre os nossos próprios desafios artísticos, por isso, mesmo aceitando enfrentá-la, guardo cuidadosamente um lugar para me reconectar com a minha própria capacidade de fazer com as mãos. Encontro nisso um caminho de emancipação artística, ao aprender a investir e a comprometer-me a levar a cabo um projecto pessoal com cuidado do princípio ao fim. Também como uma semente de utopia na construção de um modelo de autonomia DIY à minha humilde escala, numa economia mais suave e que, espero, possa cruzar, federar e mutualizar a minha iniciativa com a dos artistas em geral. Gravar em casa, sozinha ou em equipa, ajuda-me, em primeiro lugar, a contrariar uma exigência de “sucesso”. Gosto da urgência do estúdio, mas também gosto de confrontar a intensidade da música com o quotidiano e a ausência de rendimento, o que não produz os mesmos resultados. Tenho a sorte de ter conseguido insonorizar uma divisão da minha casa dedicada à música. Investi muito tempo e dinheiro nisso, mas já gravei alguns discos e espero que haja muitos outros. Continuo a gostar de gravar em estúdio, é uma escolha que continuo a gostar de fazer de acordo com os projectos e as suas necessidades artísticas. Mas, paralelamente, é importante para mim construir localmente a minha micro-autonomia, para estar nos meus projectos artísticos sem sentir que estou à mercê de outros. 

Como em título, do disco e dos temas, sugerem-se peças, objectos concretos que melhor descrevem os sons mas também apontam para um processo poético como metáforas. Atreves-te a concordar que numa personificação disso Warrelis é “hammer”, Abdou “roll” e Gouband “leaf”?

Sim, em parte! Um pouco como as bonecas russas: gostava da ideia de que uma palavra pudesse representar um objeto muito concreto, uma alusão a um instrumento, um gesto e muitas imagens. Procurei palavras que pudessem ter várias conotações, uma referência ao instrumento, claro: o martelo para o piano, a folha para a bateria estendida de Toma, que usa muitos galhos, e o rolo para o tubo do meu saxofone, que se enrola como um caracol. Mas também palavras que representam verbos, gestos e expressões associadas a essas palavras. Passei bastante tempo a alternar entre o francês e o inglês nos dicionários para encontrar polissemias de palavras que me agradavam nas duas línguas. Isso dava-me a impressão, numa dicotomia bilingue, de plantar uma espécie de poesia surrealista em miniatura dentro de cada faixa do álbum e eu gostava da ideia de que os ouvintes pudessem navegar com a sua própria imaginação em tudo isso. Em francês, por exemplo, “avoir de la feuille” é uma expressão que significa ter um bom ouvido. E a folha também é o papel em que se escreve. Um disco também é, de certa forma, uma forma de escrita sonora de jazz e música improvisada. No nosso trio, tal como a folha [de papel], os nossos ouvidos podem guardar a memória de todas as nossas experiências musicais e referências estéticas, as nossas diferentes heranças respetivas através do jazz, da música clássica, contemporânea e experimental. E, tal como no jogo “pedra, papel ou tesoura”, usamos a música como um espaço para reinvestir as nossas experiências, memórias e inspirações, por mais diversas que sejam, para tocá-las juntos. Tal como um papel no qual se escreve, uma música improvisada que se produz no momento, tal como essas referências, é algo que se pode acariciar, amarrotar ou rasgar a qualquer momento. A folha pode cobrir a pedra, a pedra pode cobrir a tesoura, etc. São todos esses gestos aos quais tentei fazer alusão, sem querer reduzi-los, mas sim transformá-los numa emulsão.

Um disco notável pela força das ideias, assim como na atribuição de nomes dos temas que passa por transformar a acção. A exemplo temos “Roll the Hammer” ou “Leaf the Roll”. O processo de denominar os temas foi colectivo ou individual?

Desenhei a matriz geral em termos de escolha de peças, ordens e títulos, deixando margem para partilha e consulta em cada etapa com a Marta e o Toma. Para o título, escolhi Hammer, Roll and Leaf. Como elementos primários precursores de todas as formas de escrita do jogo “pedra, papel ou tesoura”. Gostei da ideia de um jogo renovado com poucos elementos e da ideia de que o acaso das suas diferentes combinações simples pode gerar uma infinidade de situações ricas e novas. Quando encontramos títulos depois da música, é muito bonito ver como uma palavra, uma imagem, um significado, uma ambiguidade podem iluminar a audição. Diverti-me a usar uma série de declinações e variações que me pareciam ressoar bem com a singularidade de cada faixa do disco. “Roll the Hammer” ou “Leaf the Roll” são gestos que não têm realmente um sentido comum, o que deixa espaço para que o som assuma totalmente o seu lugar e proponha a sua própria definição.

Em palco vamos certamente comprovar múltiplas combinatórias possíveis e expontâneas desses recursos. Como estás a ver isso dentro do imprevisível resultado à partida para esta digressão intensa em Outubro e que vos trará em duas datas a Lisboa e a Coimbra?

Na música aberta à mudança, é uma oportunidade e um prazer incrível poder tocar uma série de concertos ao longo de duas semanas. Todas as noites mergulhamos novamente na liberdade, nas escolhas de cada momento, captando e renovando o presente, mas numa dinâmica que nos permite libertar-nos e aprofundar cada vez mais. O ritmo contribui para devolver ao concerto um carácter comum, e o lado excecional encontra-se mais no facto de procurar a qualidade do momento. Não se trata de procurar fazer cada vez melhor, mas sim de alargar o campo do que nos permitimos para aceitar viver plenamente travessias tão singulares quanto efémeras. Estou ansiosa pelos dois concertos em Portugal, pois é a primeira vez que apresentarei um dos meus projectos principais. Estou muito entusiasmada e realmente ansiosa!


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos