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Fotografia: Pedro Jafuno
Publicado a: 07/03/2022

A preocupação com o que não é — mais do que com o que é.

Sã Bernardo & Aires + Klein no TBA: casas e terrores

Fotografia: Pedro Jafuno
Publicado a: 07/03/2022

“O Teatro do Bairro Alto fica no Largo do Rato”, informa uma minúscula inscrição no bilhete. TBA, assim se abrevia, abrindo a segunda incongruência: que teatro bizarro, sempre deixado por anunciar. Brincamos. Bom double entendre, que enuncia a ética da sala: ruptura em contínua renovação, sons que se farão conhecer no momento certo. O efeito colateral é a consternação de ver “TBA” nas datas ao vivo de qualquer artista português, sem sabermos se é surpresa ou Campo de Ourique.

João Pais Filipe e Pedro Melo Alves, Humanization 4tet, Mynda Guevara, DJ Firmeza e João Grilo compõem parte da (ainda breve) história sonora do TBA, curada por Yaw Tembe. Ao sol posto de uma quinta-feira, Sã Bernardo, Aires e Klein também escrevinharam o seu nome na cronologia, como um cheat code, um portal para dois níveis de um hiper-jogo musical. Modorrento e ternurento, o primeiro nível ficou para os dois primeiros criadores — os músicos Bernardo Álvares e Bruno Pereira. Seguimos a pista da folha de sala: um texto que associa o concerto de TiaAvô à lógica de uma rede teleológico-virtual, em que as superstições expandem os buracos. A tecnofobia é fruto do medo do indizível, mas também a “bruxaria” polissémica — sejam amuletos de carne humana ou helicópteros no Grand Theft Auto V, tudo irrompe. A irrupção é arquitecta: audiovisual, parcelar, imaginária. Mas não fomos assistir a uma folha de sala — vimos um concerto. 

Não foi o concerto de TiaAvô, como anunciado – mas desmentido tanto na folha de sala, como em entrevista. “Duas pessoas vindas da estética do drone e ambient fazem um disco de ‘electro-pop’,” explicava Álvares ao ReB, “mas depois partem das ideias desse disco para fazer um espetáculo drone e ambient.” Ideias dilatadas, diluídas, depuradas, desprovidas da sonoplastia e da densidade textural e vocal desse TiaAvô. As declinações desse espécime curioso de folktrónica não sobrevivem muito para lá de uma instância da chula, ritmo tradicional invocado pelo baterista João Valinho. O contrabaixo e os sintetizadores – ingredientes-base – modulam uma fantasia pós-lúcida, que mais se aproxima de &FANTASMAS (expedição a solo de Sã Bernardo, em 2019) ou do modo pianíssimo-e-estática que Aires burilou em certas faixas de Aires (2014) e do seu LP com Liminal (2018). Mas o arco narrativo é feito de raiz, o que é mais visível através da pianista Luísa Gonçalves – que, mesmo sendo um acrescento exclusivo ao concerto, é quem domina, subrepticiamente, abalando o berço e as paredes sónicas. Atrás da banda, vive-se uma casa pontiaguda em fast forward, artefactos de VHS e tudo aquilo a que temos direito no plano hauntológico da vida. 

Chegados ao segundo nível, com a mais indescritível e camaleónica Klein, há menos de platónico e levemente sensorial. Essa comoção jaz em Lifetime, de 2019, mas a compositora não a transplantou para Harmattan — um álbum vidrado naquilo que há de grandioso na música clássica. Recria essa atmosfera, provavelmente sem metade do orçamento e baseando-se num instrumentário doméstico, no limite da dissonância e das convenções do estilo. 

Não há nenhum sinal claro, tal como aconteceu com TiaAvô, de que Harmattan seja o mote para a noite. Principalmente porque Klein finta a agonia e o espaço negativo desse disco (cujo título, ficam a saber, diz respeito ao misto de vento e poeira que sopra, no ocidente africano, durante o nosso Inverno). Os motivos, como sejam as palavras ininteligíveis de Klein, fragmentam-se e fazem uma papa grumosa de sons e terrores. O tipo de coisa em que se confunde intensidade com prepotência. Mas se o groove não é sempre instantâneo – credo, isto dito assim parece disco-funk – ou acessível ao mero mortal, Klein parece sempre acreditar nele. 

Encostada às máquinas que manipula, dança como um pai, movendo braços e ombros como se fizesse marcha atlética. Esta é, afinal, a autora de uma mixtape intitulada Now That’s What I Call R&B (sem mais comentários). Há comédia e constrangimento neste jogo, além do pêndulo entre abstracção e demolição; há uma Klein encapuzada de azul, a fazer scroll pelo telefone, enquanto as colunas continuam a disparar uma névoa atordoante. Não é a única ao telefone: ao lado da compositora, dispõe-se um círculo de cadeiras. 

Não, nada acontece, mas há duas… amigas, sugerem, a fazer poses de socialite, a tirar selfies e a pavonear uma lanterna de telefone — a cena real é quando revelam ser saxofonista e baixista, numa série de disparos letais. Afinal, isto é uma obra de Klein, onde há vestígios de humor, mas ninguém está a brincar. Fim de sessão (?) *som de um computador a desligar*

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