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Fotografia: Pedro Jafuno
Publicado a: 04/03/2022

Pós-quê?

Sã Bernardo & Aires: “Em TiaAvô, nós procurámos mapear a origem das ideias que fizeram as músicas e extravasar a ideia de autoria”

Fotografia: Pedro Jafuno
Publicado a: 04/03/2022

Nas vésperas do concerto de apresentação de TiaAvô, que acontece mais logo no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, entrevistámos Bernardo Álvares e Aires, os dois mentores deste novo projecto. Conversa com ponto de partida no excelente texto (publicado no Bandcamp) da autoria do Bruno Silva e sobre os conceitos que aborda, das diferentes colaborações que mantiveram com outros músicos e podemos escutar nesta edição do Colectivo Casa Amarela e terminando no espectáculo do TBA, não no sentido de o tentar desvendar, antes endereçando um convite a que estejam presentes nesta sexta-feira.



Rosalía, La Monte Young, Farrah Abraham, Daniel Lopatin, Catarina Branco, Miles Davis, Dina, Lorenzo Senni ou Rabu Mazda. São algumas das vossas referências? Qual a vossa necessidade em associar universos tão díspares?

[Bernardo Álvares] Bom, neste caso, mais do que referências, esses nomes, entre muitos outros, aparecem enquanto co-autores de composições. Toda a gente tem a sua bagagem e vai roubar ideias a esta ou aquele, nós procurámos mapear a origem das ideias que fizeram as músicas e extravasar a ideia de autoria. Poderíamos, a meu ver bem – e como fazem nos Óscares – dizer que sem Deus nosse senhora e as respectivas famílias nenhuma destas composições teria lugar.

Utilizam também o termo middlebrow. Que manifestações pode assumir, sobretudo no contexto nacional, e que efeito perniciosos pode gerar?

[Aires] Interessam-me todos os brows, high, low, middle, uni… Sei que o Bá sente o mesmo. Claro que há coisas abomináveis em todas estas vertentes da cultura mas para mim uma coisa não é automaticamente melhor que outra por ser mais highbrow e menos middlebrow. Respondo a esta pergunta enquanto ouço um remix trance de Safri Duo. Em relação à cena nacional, acho que estamos bem servidos de middlebrow, a todos os níveis, e não me parece que isso seja um problema, antes pelo contrário. 

O texto de apresentação, da autoria do Bruno Silva, é extremamente rico. Como tal, gostaria que aprofundassem o conceito de “autoconsciência esperta”. Haverá uma autoconsciência que não seja esperta? Se há, como se manifesta?

[Bernardo Álvares] Agora ando a fazer terapia na psicóloga Margarida. Aquando do processo de gravar o disco nunca tinha feito, por isso não interessa. Mas gosto de pensar e o Bruno também, o Pereira, e o Silva. E temos – Sã Bernardo e Aires, entenda-se – jeito a partilhar e aprofundar ideias mutuamente, talvez.

[Aires] O Bruno, no seu texto, refere-se ao nosso disco enquanto algo próximo de exercício pós-moderno mas sem essa autoconsciência espertalhona de que falas e caracteriza alguma criação contemporânea. Acho que isso acontece porque tanto o Bá como eu não tratamos de criar hierarquias [pós-modernas] entre esse mar de referências. O nosso entusiasmo por malta tipo o [Lorenzo] Senni ou a Farrah Abraham é igual, ou equivalente. 

Utiliza-se o termo “hyperpop coral”. Podem dar-nos mais algumas pistas sobre este conceito? É meramente um exercício de estilo?

[Aires] Mais que um exercício de estilo, foi uma tag que o Bruno [Silva] usou para resumir — de forma genial, já agora — a forma como partimos para esta empreitada. Ainda que usemos algumas características do hyperpop como o auto-tune e as citações meta-referenciais, aqui a tag refere-se ao processo de partir de estruturas e referências pop para criar algo híbrido e novo. Post-pop? 

No primeiro tema “Maio com Dominique” dá-se a colaboração com Dominique Matelson. Como surgiu o convite? Há uma certa “textura de profundidade”, um chamamento de uma certa ancestralidade? O que pretenderam com o trabalho vocal de Dominique?

[Bernardo Álvares] Conheci a Dominique em Los Angeles, na tour que fiz com os Alforjs à América em 2019. Tinha uma série de coisas apontadas para checkar depois da viagem e os álbuns da Dominique era uma delas. E foi granda surpresa. Música experimental, entre o canto lírico e o pop-rock. Ficámos em contacto e falámos de colaborar um dia. Quando estávamos a montar este Frankenstein de colagens de hinos políticos e a ganhar esta forma pop experimental vocal espiritual, a escolha pareceu óbvia.

Outra colaboração é com Norberto Lobo, deslocando-o para um campo musical menos comum. Como se construiu este tema? E como surge a ideia de criar este mantra “Eu não sei o que é amar”? Será mesmo assim?

[Bernardo Álvares] Não querendo ser interpretado de forma pejorativa, gostaria de comparar o ilustre entrevistador, por quem nutro muita estima, afecto e respeito, à “estratégia” de fazer perguntas com premissas erradas utilizada por Fernando Alvim. Ora, o Norberto pertence a Fumo Ninja, uma banda que navega neste mesmo campo musical, de canções com ânsias experimentais. “Eu não sei, Tia Mar” reflecte a preocupações estéticas. No caso da letra, a estética está directamente ligada a vestuário cobiçado. No caso da construção musical, cobiçamos toda uma série de ideias para essa música, de GNR, Sei Miguel, Planet 1999, etc.



“Europa20//RDA”, outro dos temas, destaca-se por um carácter mais experimental e onde as cordas tocadas pelo Bernardo Álvares assumem uma espécie de liturgia fúnebre. São os pêsames a uma Europa que nunca se concretizou, nem há perspectivas que se venha a concretizar? RDA o país que não existe ou o espaço onde há esperança para o comunitarismo?

[Bernardo Álvares] Pessoalmente vejo o título como homenagem directa aos Popol Vuh, da RDA, a quem roubámos a música. Assim como roubámos a “Europa20//Castela” ao Joaquín Rodrigo.

[Aires] É uma malha que resulta como elegia fúnebre a ideias que faliram. Há esperança para o comunitarismo, parece-me, nem que seja via Discord. Já para a Europa…

Em “CoraçãoSónico” há novamente um universo mais electro-pop, se quisermos. Porquê a necessidade de abarcar esta diversidade musical? De explorar campos que por vezes são antagónicos? Não há o risco de tudo se tornar demasiado disperso? Demasiado volátil?

[Bernardo Álvares] Tudo o que vale a pena tem riscos. Até a maioria do que não vale a pena tem, diria. Tem sido fixe ver como a malta do experimentalismo pode percepcionar este objecto como electro-pop e malta do pop como uma freakalhice experimental. As nossas inquietações pessoais levam-nos num caminho em que não vemos essa antagonia que falas. É tudo coisas de que gostamos e que fazem aquilo que somos. Calhou sermos nós a fazermos o disco e a procurarmos espelharmo-nos.

[Aires] Essa diversidade não é assim tão alienígena para nós porque não caímos na armadilha de hierarquizar a coisa, lá está. Ou seja, não é assim tão antagónico, como o Bá refere. A volatilidade de que falas acaba por ser mais um feliz sintoma da contemporaneidade que tentamos abordar neste disco e este closer serve como um resumo do disco: uma ideia pop bastante directa que vai desaguar num ambient/drone regado a auto-tune.

Como se deu o convite do TBA para realizarem a apresentação ao vivo?

[Bernardo Álvares] Fui convidado para fazer uma proposta de espetáculo para o TBA. Estava a ruminar nisso enquanto o disco ia ganhando forma. Já andava em conversas com o António Caramelo para pensarmos algo em conjunto mas mostrei-lhe o TiaAvô e simultaneamente propus ao Bruno levarmos mais longe o trabalho que estávamos a desenvolver e catapultar ideias abertas no disco para outros lados. Duas pessoas vindas da estética do drone e ambient fazem um disco de “electro-pop” mas depois partem das ideias desse disco para fazer um espetáculo drone e ambient.

A transposição do disco para o concerto requer todo um processo de adaptação, que não tem necessariamente e somente a ver com a questão de escala. Como decorreu este processo? 

[Bernardo Álvares] Não haverá transposição, foi todo um processo de criação de raiz. Mas, vá, a raiz é o disco. É confuso e gostamos que assim seja. Desde cedo que percebemos que queríamos uma forte componente acústica e diria que foi com a inclusão da Luísa Gonçalves que o espectáculo começou a ganhar forma ou, vá, caule. Andava obcecado com o Unno, lançado pela Luísa em 2020 mas só ouvido por mim no início de 2021, é das coisas mais bonitas que já ouvi. Apesar de aparentemente distantes, senti que a música da Luísa dizia coisas parecidas com as ideias que estávamos a desenvolver. E foi óbvio que o piano era o instrumento que colava o drone ao hyperpop.

[Aires] O disco é apenas um ponto de partida distante, o concerto acaba por assentar numa ideia abstracta a partir do imaginário do disco, em que alguns elementos estão presentes — o confronto entre drones acústicos e digitais, o auto-tune enquanto instrumento — mas adaptados às sensibilidades de cada um dos convidados. Desde cedo que soubemos que queríamos alargar o alinhamento para este concerto e fomos pensando a partir daí.

Decidiram alargar o leque de convidados para esta apresentação. Muito curioso com a participação de António Caramelo e Luís Severo. O que cada uma pode acrescentar ao trabalho já existente?

[Bernardo Álvares] Curioso que nomeies as duas pessoas que não estarão em palco. O António acrescenta projeções vídeo e o Luís acrescenta a mistura do som e ambos acrescentam as suas sensibilidades. O puzzle foi sendo montado e discutido em várias conversas paralelas, sobretudo entre mim e o Bruno mas também com a curadoria e co-produção do TBA e todas as pessoas que participam no espectáculo. Para além das já referidas Luísa Gonçalves, António Caramelo e Luís Severo, contamos com Inês Campos, João Valinho e Teresa Serra Nunes. Tudo pessoas com experiências bastante diversas e que se complementam bem.

Desculpem o óbvio da pergunta, mas porque razão TiaAvô? Dois seres autónomos que se complementam? Uma espécie de pansexualidade ancestral? 

[Bernardo Álvares] Sim.


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