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Fotografia: Domenico Stinellis
Publicado a: 05/04/2023

Na crista da inovação musical.

Ryuichi Sakamoto (1952-2023): um mestre japonês que sonhou o mundo

Fotografia: Domenico Stinellis
Publicado a: 05/04/2023

Há uma belíssima foto de 1981 que mostra Ryuichi Sakamoto a trabalhar numa Roland TR-808 enquanto é observado de perto pela sua filha, Miu. Ao fundo, vislumbra-se um globo, pormenor curioso tendo em conta o impacto profundo que a obra do compositor haveria de alcançar em vários continentes ao longo das décadas seguintes. Sakamoto usa auscultadores, talvez para imediatamente testar a máquina que poderia ter acabado de aterrar nas suas mãos (vê-se uma caixa de papelão ao fundo, provável embalagem da mítica caixa de ritmos) ou, eventualmente, para não perturbar a harmonia doméstica que a presença da sua filha tão bem atesta.

A foto que mostra o futuramente famoso compositor concentrado no estudo das possibilidades oferecidas pela caixa de ritmos que a Roland apresentou ao mundo alguns meses antes, em 1980, mas cuja produção interromperia um par de anos mais tarde após ter produzido somente 12 mil exemplares, é profundamente simbólica e ilustra bem a ligação que Sakamoto desde sempre teve às mais avançadas ferramentas electrónicas que foi usando para erguer uma obra tão visionária quanto singular, tão influente quanto original. Essa icónica ferramenta – que se revelaria crucial na imposição de géneros como o hip hop, house e techno – teve, aliás, papel importante no álbum que o trio que Sakamoto notoriamente integrou, Yellow Magic Orchestra, editou nesse mesmo ano de 1981, BGM, um dos primeiros registos em que o clássico som da 808 surge em toda a sua grave glória. Quem sabe se essa foto não mostra o momento em que uma das peças desse belíssimo álbum estaria a ser criada?



O mundo não foi, claro, apanhado completamente de surpresa quando a notícia que revelou que Ryuichi Sakamoto tinha falecido no passado dia 28 de Março foi finalmente difundida: os seus problemas de saúde eram amplamente conhecidos e o próprio compositor falou da sua batalha contra o cancro de forma muito cândida. Sakamoto usou mesmo essa condição como a mais funda inspiração para várias composições nos últimos anos, incluindo para o material que reuniu em 12, o seu derradeiro registo, lançado em Janeiro último e que já deixava perceber que o fim poderia estar próximo. Para a posteridade, Sakamoto deixa uma vastíssima obra que atravessa os domínios da pop, da vanguarda electrónica, da composição para cinema e da música erudita contemporânea, campos em que deixou indelével marca autoral.

Ryuichi Sakamoto nasceu a 17 de janeiro de 1952, meia dúzia de anos depois da rendição do Japão ter sido declarada meros seis dias após a aviação americana ter largado sobre Hiroshima e Nagasaki duas devastadoras bombas atómicas. Quando Sakamoto ingressou na Universidade, em 1970 para estudar música, com o campo da electrónica a ser uma das suas áreas de especialização, o Japão vivia já numa nova era de prosperidade económica, que tinha iniciado uma vintena de anos antes, tendo-se estabelecido como uma nação tecnologicamente avançada, resultado de um aturado e estratégico investimento na industrialização, por um lado, e na pesquisa científica, por outro, eixos que permitiram afirmar o país como líder no fornecimento global de produtos electrónicos. E tanto na área do áudio como dos instrumentos musicais, o Japão revelar-se-ia uma absoluta super-potência, com marcas que se estendiam da Sony à Technics ou da Yamaha à Roland a imporem-se mundialmente nas décadas seguintes com produtos revolucionários e inovadores – do Walkman aos gira-discos 1200 e 1210, e de teclados como o DX7 a caixas de ritmos como a já mencionada TR-808 ou TR-909.

Nos seus estudos, Ryuichi Sakamoto foi capaz de equilibrar os distintos mundos musicais de Bach e Debussy, que consideraria mais tarde como uma das suas mais decisivas influências, com a experimentação com pioneiras ferramentas electrónicas criadas por visionários como Don Buchla e Bob Moog a ser inspirada pelo trabalho de mestres contemporâneos como Karlheinz Stockhausen ou John Cage… Não demorou para que o jovem estudante se transformasse num jovem profissional: o Discogs lista diversos trabalhos em que Ryuichi participou como teclista e arranjador entre 1975 e 1978. Um desses registos de 1978, o álbum South of The Border de Yoshitaka Minami, inclui a contribuição de Sakamoto ao lado da de Yukihiro Takahashi, baterista com quem Ryuichi criaria os Yellow Magic Orchestra após ambos terem sido recrutados para esse projecto por Haruomi Hosono, músico um pouco mais velho e mais experiente (Takahashi também faleceu recentemente, no passado dia 11 de janeiro). “Hosono era cinco anos mais velho do que eu”, contou Sakamoto a Clive Bell, da revista Wire, em 2000. “Ele nasceu logo depois da guerra, quando havia muitas tropas americanas no Japão e por isso a influência americana era muito maior nele do que em mim”.

“Fomos ambos convidados a ir a casa de Hosono”, relembrava ainda Sakamoto referindo-se a Takahashi, que foi baterista na mítica Sadistic Mika Band. “Ele mostrou-nos a ideia assim”, recorda Sakamoto segurando uma imaginária folha de papel. “Ele tinha feito um desenho do Monte Fuji e escreveu ‘1 Milhão de Cópias’. Pensei, ‘que é isto?’ Não me preocupei com esse plano, mas o Hosono planeava tudo. Ele queria alcançar algum tipo de sucesso nos Estados Unidos, não no Japão. O Japão viria depois”, escreveu Clive Bell na Wire no início do milénio.



Sob a liderança de Hosono, os Yellow Magic Orchestra (YMO) lançaram o que justamente se pode considerar uma discografia imaculada, sobretudo a primeira meia dezena de álbuns: Yellow Magic Orchestra (1978), Solid State Survivor (1979), X∞Multiplies (1980), BGM (1981) e Technodelic (1981). Num belíssimo texto (como de habitual), publicado há alguns dias na Pitchfork, Simon Reynolds argumenta que se deve repensar o contributo dos YMO para a história da mais desafiante música electrónica e defende que a discografia do trio foi fundamental inspiração para os criadores do techno de Detroit, devendo, por isso mesmo, ser mencionada ao lado da de outros nomes fundacionais, nomeadamente dos Kraftwerk. De facto, a historiografia musical erguida a partir do Ocidente tende a esquecer válidas discografias que na Ásia, África, Brasil ou Caraíbas – para dar alguns exemplos supostamente mais “periféricos” – fizeram a música global avançar tanto quanto a que foi produzida na Europa ou na América do Norte. E a avançada e refinada visão musical dos Yellow Magic Orchestra tem realmente sido demasiado ignorada ou frequentemente subvalorizada: a revista de referência Electronic Sound nunca lhes devotou qualquer capa, apesar de ter dedicado várias aos Kraftwerk, Human League, Cabaret Voltaire, Suicide e outros relevantes pioneiros; livros recentes como The Underground Is Massive: How Electronic Dance Music Conquered America de Michaelangelo Matos, Live Wires: A History of Electronic Music de Daniel Warner, Mars By 1980: The Story of Electronic Music de David Stubbs não fazem qualquer referência ao grupo japonês e mesmo o fundamental Energy Flash: A Journey Through Rave Music and Dance Culture, do próprio Simon Reynolds, apenas faz uma breve menção ao grupo (a título de comparação pode referir-se que os Kraftwerk, por exemplo, são alvo de uma vintena de menções).

David Toop, pelo contrário, reconheceu os válidos contributos dos Yellow Magic Orchestra e de Haruomi Hosono e Ryuichi Sakamoto no brilhante livro Exotica: Fabricated Soundscapes in a Real World, entendendo que a música do trio continha visionárias marcas de um mundo fantasioso situado algures entre o passado e o futuro, entre o oriente e o ocidente, entre o humano e o tecnológico. No mesmo artigo de Clive Bell, Ryuichi Sakamoto refere-se a outro importante marco da sua carreira, a lendária banda sonora que assinou para Merry Christmas Mr. Lawrence, filme de Nagisa Oshima lançado há precisamente 40 anos e em que Sakamoto actuava ao lado de David Bowie. “Tive o cuidado de não usar nenhum elemento realmente japonês. A escala pentatónica existe em todo o mundo, não é nada japonesa. Quis escrever música que soasse oriental para qualquer pessoa, no ocidente ou no oriente, mas sem que parecesse vir da cultura japonesa. De algum lado, mas de lado nenhum”, explicou o compositor, referindo-se ao mesmo valor criativamente fantasioso que David Toop identificava na sua música e na do grupo Yellow Magic Orchestra.

Merry Christmas foi a primeira de muitas bandas sonoras que Ryuichi Sakamoto escreveu. O compositor japonês trabalhou com realizadores famosos como Bernardo Bertolucci – The Last Emperor (1987), The Sheltering Sky (1990), Little Buddha (1993) -, Pedro Almodóvar – Tacones Lejanos (1992) -, Brian de Palma – Snake Eyes (1998), Femme Fatale (2002) – ou, entre vários outros, Alejandro G. Iñarritu – The Revenant (2015) – tendo acumulado na sua carreira perto de meia centena de scores para cinema e TV, a mais recente das quais, Exception, série de terror anime, que estreou na Netflix no último trimestre de 2022.

A este volumoso corpo de trabalho deverá ainda somar-se uma vintena de trabalhos a solo. Essa carreira começou logo em 1978 (na mesma época em que iniciou o seu percurso com os Yellow Magic Orchestra) com a edição de Thousand Knives. Entre leitura de poemas de Mao Tsé-Tung sobre faux reggae de contornos electrónicos inspirado em Herbie Hancock e exercícios de “exótica” arrancados a electrónica analógica, este foi um dos primeiros trabalhos em nome próprio em que Sakamoto afirmou a sua veia exploratória e decididamente cosmopolita. Esse espírito de cidadão do mundo levou-o bem cedo a colaborar com músicos internacionais. Logo no seu segundo registo a solo, B-2 Unit, uniu esforços com Andy Partridge dos XTC e com Dennis Bovell, o produtor de dub que foi fundamental na definição dos contornos sonoros do pós-punk britânico. David Sylvian, ele mesmo um criador de horizontes largos, cruzou-se pela primeira vez com Sakamoto quando este trabalhou com os Japan em “Taking Islands in Africa”, uma das peças do clássico Gentlemen Take Polaroids, de 1980. Dois anos mais tarde, ambos assinaram o clássico single “Bamboo Houses”/”Bamboo Music”, peça movida a DX7 que leva essa noção de um exotismo “quarto-mundista” a um elegante extremo. Mas, obviamente, foi a versão vocalizada de Sylvian para o tema mais memorável da banda sonora de Merry Christmas Mr. Lawrence, que recebeu o título “Forbidden Colours”, que haveria de captar mais aplausos, feliz encontro de personalidades que ainda hoje soa arrepiante.



Colaborações com artistas internacionais de vários quadrantes musicais como Bernard Fowler, Maceo Parker, Arto Lindsay, Iggy Pop, Bill Laswell, Bootsy Collins, Brian Wilson, Jill Jones, Youssou N’Dour, John Lurie, Bill Frisell, Ingrid Chavez, David Byrne, Holly Johnson (Frankie Goes to Hollywood), Roddy Frame (Aztec Camera) ou Towa Tei (Deee-Lite) pontuaram a sua belíssima discografia pop da segunda metade dos anos 80 e primeira metade dos anos 90, período fértil em que se destacam álbuns como Neo Geo (1987), Beauty (1989) ou Heartbeat (1991), clássicos de uma sofisticada e ainda assim acessível musicalidade em que a pop e a vanguarda se cruzavam de forma harmoniosa.

Com BTTB, de 1998, Ryuichi Sakamoto iniciou uma nova fase da sua carreira. Esse trabalho de piano solo sinalizou uma aproximação ao instrumento e um reencontro com o lado mais clássico e romântico da sua aprendizagem académica, permitindo-lhe canalizar a sua paixão por compositores como Satie ou Debussy. O produtor alemão Carsten Nicolai, aka Alva Noto, foi outro dos seus cúmplices, um criador com quem estabeleceu uma frutuosa parceria balizada pelos álbuns Vrioon (2002) e Glass (2018). O violoncelista e compositor brasileiro Jaques Morelenbaum ou o produtor austríaco Fennesz foram outros parceiros com quem gravou mais do que um álbum.

Com o aclamado async, lançado em 2017, Ryuichi Sakamoto parece ter combinado as múltiplas vertentes do seu trabalho ao criar música com uma qualidade cinemática, em que o piano se entrelaçava com electrónica ou gravações de campo numa demanda musical realmente aventureira e em que a ideia da morte já estava bem presente, uma vez que o compositor já tinha batalhado contra um primeiro cancro na garganta diagnosticado algum tempo antes. Nesse álbum, o seu amigo David Sylvian declama, sobre solene e algo sombria base sonora de esparsa electrónica:

“And this I dreamt, and this I dream
And some time this I will dream again
And all will be repeated, all be re-embodied
You will dream everything I have seen in dream

To one side from ourselves, to one side from the world
Wave follows wave to break on the shore
On each wave is a star, a person, a bird
Dreams, reality, death – on wave after wave

No need for a date; I was, I am, and I will be
Life is a wonder of wonders, and to wonder
I dedicate myself, on my knees, like an orphan
Alone – among mirrors – fenced in by reflections
Cities and seas, iridescent, intensified
A mother in tears takes a child on her lap”

Um poema que é igualmente um perfeito epitáfio para uma vida cheia.


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