pub

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Miguel Baltazar
Publicado a: 27/08/2025

A escuta do tempo na paisagem sonora portuguesa.

Rui Vieira Nery: o fio harmónico da memória

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Miguel Baltazar
Publicado a: 27/08/2025

[Afinar o País]

Portugal, esse corpo vibrátil entre o silêncio do Atlântico e o murmúrio dos telhados de Lisboa, guarda na sua música a memória, a ferida e o sonho por cumprir. Do canto litúrgico ao hip hop suburbano, do lamento da guitarra ao grito eléctrico das bandas de garagem, o país moldou-se em estratos sonoros — tantas vezes ignorados, tantas vezes mal compreendidos. E durante demasiado tempo, a escuta crítica permaneceu cega: órfã de uma lente que unisse o rigor do saber à paixão da pertença.

Foi então que se ouviram vozes como a de Rui Vieira Nery — vozes que escutavam o país não apenas com o ouvido afinado, mas com o coração da etnomusicologia. Porque compreender a música em Portugal — seja ela erudita, jazz, pop, rock, hip hop ou popular — é compreender, igualmente, a nossa maneira de estar juntos, de resistir, de celebrar ou de esquecer. Nery trouxe à análise musical aquilo que nos faltava: um olhar demorado, atento ao som e ao seu entorno; um pensamento crítico, sensível à melodia e às estruturas sociais que a modelam.

Este ensaio não visa apenas render homenagem a esse gesto; visa escutá-lo e, nesse mesmo gesto, propor uma nova afinação para a crítica musical em Portugal: mais informada, mais ampla, mais justa. Porque, como nos ensinou Nery, a música nunca é apenas música. É política, é geografia, é desejo, exclusão, memória. E, quando escutada com vagar e atenção, pode até ser pátria.

[A Primeira Voz Foi o Silêncio]

Nasceu em Lisboa, em 1957, numa casa onde as paredes não reflectiam apenas ecos: absorviam histórias. Não se escutava música como quem deposita um disco ao acaso — ali, cada nota era confidência, cada pausa uma convocação à escuta interior. Antes de pronunciar palavras, Rui Vieira Nery ouvia o mundo. Não apenas o mundo exterior, mas o universo íntimo da vibração.

Filho do guitarrista Raul Nery, cresceu num espaço onde o fado não era apenas género musical, mas pulsação quotidiana. A casa era prolongamento da guitarra portuguesa. O berço, talvez, embalado por bordões de Amália, por modulações vindas de longe — de Coimbra, de Alfama, de um país inteiro que falava em tom menor. A infância de Nery não se fez de brinquedos, mas de acordes. Desde cedo compreendeu que a música não era suplemento da vida — era forma de pensamento.

[Escutar é Traduzir]

Não se tornou apenas músico, nem se satisfez com a mera prática sonora. Nery escolheu o caminho mais fundo: o da interrogação musicológica. Estudou com precisão de ourives aquilo que, para muitos, era apenas “tradição”. Aprendeu a discernir os tempos, os modos, as razões culturais que moldam um povo que canta. Entre o Conservatório e os corredores da Academia, tornou-se intérprete do que nunca fora escrito: o gesto cantado, a voz da colectividade.

Entre o barroco e o popular, Nery foi erguendo uma obra sem paralelo em Portugal. Não se limitava a fazer história da música: escavava sentidos, lia entre as linhas do pentagrama nacional. A sua investigação sobre o fado resgatou a canção marginalizada, devolvendo-lhe a condição de património da humanidade. O que antes era murmúrio, tornou-se monumento.

[A Geografia do Som]

Mas Nery não era apenas cronista de géneros: era cartógrafo sonoro. Com ouvido atento aos ventos da História, mapeou os cruzamentos da música com as políticas, com as etnias, com os exílios. Escutou as trocas coloniais, os ritmos afro-lusófonos, os ecos do Brasil no cancioneiro português. Fez da musicologia um exercício de diplomacia sensível: reconciliação entre vozes, entre povos, entre os silêncios da história oficial e a música que resistiu à opressão.

Nas suas aulas, palestras e escritos, ouvimos mais do que erudição. Ouvimos uma ética da escuta. Uma pedagogia do subtil. Nery ensina-nos que a música não é apenas arte — é sintoma. Reflexo da maneira como um povo respira.

[Fado, Jazz, Rock: A Obra Incompleta]

Mesmo ao escrever sobre o fado — campo onde se tornou mais visível — Nery não se confinava a um tom. Interessavam-lhe o jazz, a pop, a canção de intervenção, os circuitos alternativos. Por detrás do académico, habitava um coleccionador de afectos musicais. Alguém que compreendia que não há hierarquia no som: há contextos, memórias, afectos.

Por isso, Nery resistia à clausura das gavetas. Escrevia tanto sobre o barroco como sobre José Mário Branco; analisava partituras do século XVIII com o mesmo rigor com que discutia a canção urbana contemporânea. A sua obra é biblioteca viva — incompleta, como todo verdadeiro arquivo deve ser.

[Ouvir é Um Acto Político]

Em tempos de ruído, Rui Vieira Nery permanece entre os raros mestres da escuta. Num país que se extravia em monólogos, a sua prática é a da atenção — aos detalhes, às margens, às vozes por cantar.

Mais do que musicólogo, Nery é mediador entre tempos. Afinador de nações. A nota que persiste, mesmo depois de finda a canção.

[Janelas sobre o som]

Rui Vieira Nery não estudou apenas História — cultivou-a à semelhança de quem escava o silêncio à procura de um som esquecido. Formou-se em História pela Universidade de Lisboa como quem aprende a ler não as palavras, mas as pausas entre elas. Mais tarde, doutorou-se em Musicologia na Universidade do Texas, em Austin, cruzando o Atlântico com os ouvidos preparados para escutar o eco daquilo que nunca chegou a ser dito. Mas mais do que títulos, acumulou janelas. Cada obra, cada manuscrito, cada linha melódica esquecida num arquivo era uma fresta aberta no tempo, um vitral de possibilidades para escutar a alma histórica de um povo.

A sua formação não foi apenas académica — foi também atmosférica. Cresceu entre vibrações, entre partituras que tremiam como mapas e sons que ainda não tinham encontrado casa. Se o saber é arquitectura, então Rui construiu catedrais de silêncio onde antes só havia ruína.

[A lição de Kastner]

Com Macario Santiago Kastner, o grande musicólogo germano-lusitano, Nery aprendeu que o som pode ser escavado como um fóssil e lido como um texto — que há nas pautas antigas a mesma densidade de mistério que nos pergaminhos iluminados. Kastner ensinou-lhe a ver o som para além da onda — a reconhecê-lo como estrutura emocional e política, como tensão entre o instante e a eternidade. Nery compreendeu, então, que a musicologia é uma escuta arqueológica, uma disciplina que ouve aquilo que já não se ouve. Aprendeu que um acorde pode conter séculos, que uma cadência pode ser um gesto social, que o timbre pode ser um documento de identidade.

Com Kastner, a musicologia deixou de ser inventário. Tornou-se poética da escuta — e, no caso de Nery, uma forma de habitar o tempo português.

[Topografias do ouvido]

O barroco português, com as suas ornamentações espirais, deixou de ser estilo e tornou-se geografia espiritual. As modinhas luso-brasileiras, com os seus perfumes coloniais e afectos mestiços, revelaram-se espelhos sensíveis de um império a definhar em melodia. O fado — esse território sem mapas — foi, por Nery, conduzido da taberna ao tratado. Não como quem o dessacraliza, mas como quem lhe restitui o carácter múltiplo: música e mito, destino e construção, memória e invenção urbana.

Para ele, o fado nunca foi apenas canto. Foi cidade cantada. Corpo acústico de Lisboa. Uma forma de escrever a identidade com acordes menores e uma lágrima suspensa.

[O ouvido como ética]

Nery escutava com rigor, mas também com compaixão. O seu trabalho é, acima de tudo, escuta: do tempo, do outro, da história. A sua erudição não pesa — ilumina. Nunca se limitou a “explicar” as músicas — preferiu sempre deixá-las respirar, dar-lhes contexto sem lhes roubar o mistério. Cada ensaio seu é uma oferenda, uma casa de portas abertas onde a teoria convive com a emoção, e onde a linguagem técnica serve o encantamento — nunca o contrário.

[Conclusão: uma cartografia por ouvir]

Se há arquitecturas visíveis feitas de pedra, vidro e aço, há também outras, invisíveis, feitas de som, memória e presença. Rui Vieira Nery ergueu dessas últimas. A sua obra é uma topografia da escuta. Um mapa vibrante de tudo aquilo que a música portuguesa — erudita, popular, mestiça, urbana — ainda tem para nos dizer.

E talvez o seu maior legado seja este: ensinou-nos que ouvir é, antes de tudo, um gesto político e poético. Um acto de amor ao que fomos. E uma promessa ao que ainda podemos ser.



[O Fado e os Outros Fantasmas]

[O eco que nos antecede]

Se o fado foi reconhecido pela UNESCO como Património Imaterial da Humanidade, muito se deve ao labor invisível, persistente e afinado de Rui Vieira Nery. Mas o seu papel nunca foi o de um militante nostálgico, nem tampouco o de um curador imune à crítica. Nery não romantizou o fado — pensou-o, interrogou-o e desdobrou-o como quem abre uma carta antiga que ainda pulsa com o frémito do que ficou por dizer.

Cada palavra sua foi escrita com o ouvido encostado à cidade. Em obras como Para uma História do Fado ou Fado: Um Património Vivo, não delineou apenas uma cronologia — traçou mapas afectivos. Como quem sussurra que a história do fado não é linha recta, mas viela com becos, ecos e espectros que se insinuam no intervalo das sílabas.

[O fado como tensão entre destino e construção]

O fado, sob o olhar musicológico de Nery, deixou de ser apenas lamento ou cliché sonoro nacional. Tornou-se corpo político. Uma partitura urbana em permanente negociação entre o que somos e o que sonhámos ser. Nery viu no fado uma forma de discurso social, uma construção cultural que reflecte desigualdades, pertenças, feridas coloniais, migrações interiores, lutas de classe.

Se para Amália o fado era “o povo a chorar”, para Nery o fado era também o povo a pensar. A resistir. A inventar-se. A mascarar-se para, no fundo, melhor se revelar.

[Devolver ao fado a sua dignidade]

Mais do que defensor do fado, Nery foi o seu advogado sensível — alguém que não se contentou com arquétipos nem com folclore domesticado. Quis restituir ao fado a sua dignidade estética, sim, mas também a sua espessura política. E essa dignidade, para ele, vinha do rigor da escuta.

Porque o fado, como Nery nos ensinou, não é apenas música: é sistema de afectos. Dramaturgia implícita entre quem canta e quem escuta. Liturgia laica da saudade. Teatro íntimo onde as emoções se suspendem no fio incerto de uma guitarra.

[A cidade como instrumento]

Lisboa, nesse universo conceptual, é mais do que cenário — é instrumento musical. Com os seus bairros como escalas harmónicas e os seus silêncios como compassos de espera, a cidade irrompe nas obras de Nery como se ela própria cantasse. Alfama, Mouraria, Bairro Alto: geografias emocionais antes de coordenadas topográficas.

E é nessa cidade-cancioneiro que Nery nos convida a escutar não apenas o fado enquanto género musical, mas enquanto vibração contínua da vida urbana, onde cada esquina pode ser uma cadência interrompida e cada varanda, um palco anónimo.

[Fado como arquivo vivo]

Ao reconhecer o fado como património vivo, Nery opôs-se à tentação da musealização. Nada de vitrinas, nada de etiquetas fixas. O seu fado respira, debate-se, metamorfoseia-se. É corpo vulnerável e adaptável, onde a tradição não congela, mas fertiliza. Onde o passado não é peso, mas húmus fértil para o que ainda não se ousou cantar.

[Conclusão: o fado como espelho imperfeito]

No fundo, o labor de Rui Vieira Nery com o fado é o de quem não teme espelhos estilhaçados. O fado — esse espelho do país — devolve-nos a imagem sem ornamentos, sem maquilhagem. E Nery, com a sua escuta obstinada e generosa, soube vislumbrar nessa imagem uma beleza política, uma poética do real.

Entre a lágrima e o pensamento, entre a guitarra e a história, entre a UNESCO e os becos de Alfama, Nery construiu uma ponte invisível — e sonora — entre o fado que herdámos e o fado que ainda temos de merecer.



[A Ecologia do Ouvir]

[O ouvido como lugar de cidadania]

Rui Vieira Nery não escutava música — escutava mundos. Cada som era-lhe território. Cada forma musical, uma paisagem habitável. Enquanto investigador do Instituto de Etnomusicologia e professor na Universidade Nova de Lisboa, praticava uma pedagogia que recusava qualquer hierarquia sonora: o canto gregoriano e a electrónica de vanguarda, a modinha luso-brasileira e o jazz improvisado, o fado e a polifonia sacra — tudo lhe era íntimo porque tudo lhe era vivo.

Para Nery, o som não se cindia em géneros, mas em gestos. Gestos de humanidade, gestos de escuta, gestos de inscrição cultural. A música não era ornamento civilizacional, era direito fundamental. Um modo de existir no espaço público com dignidade sensorial. Um modo de respirar em comunhão.

[Música como ecossistema vivo]

Via a música como ecossistema — e não por metáfora. Compreendia-a como rede dinâmica de interdependências: tradição e inovação, oralidade e escritura, criação e escuta. A música enquanto organismo só se revela se escutarmos as suas relações internas e externas. Não há nota isolada que não dialogue com um contexto. Não há canto que não evoque um chão.

Nery não separava os sons dos corpos que os geravam, nem os corpos das estruturas sociais que os moldavam. Daí a sua incansável defesa da diversidade musical enquanto forma de resistência cultural. A sua luta não era pelo gosto pessoal, mas pela multiplicidade de ouvidos possíveis.

[O gestor que compunha políticas]

Na Fundação Calouste Gulbenkian, onde dirigiu o serviço de música, Nery reconcebeu o papel do programador cultural. Não como curador enclausurado numa torre de marfim, mas como compositor de políticas públicas. Pensava a programação como quem compõe uma partitura: com atenção à textura, à tensão, ao equilíbrio entre ruído e silêncio.

Recusava a ideia de cultura enquanto privilégio ou lazer — para ele, era sustento. A música, tal como o pão ou a palavra, era essencial à sobrevivência humana. E, sendo essencial, deveria ser garantida como tal. A política cultural, dizia, não é luxo de países prósperos — é urgência ética em qualquer democracia que se respeite.

[Democracia dos sentidos]

Foi, como muitos o disseram, um democrata do ouvido. Mas mais do que epíteto amável, tal era o cerne do seu pensamento. Rui Vieira Nery acreditava, com rigor afectivo, que a escuta é acto político. Escutar é suspender o juízo. É admitir que o outro pode ter razão. É acolher que há beleza para além do gosto próprio.

A democracia, para Nery, principiava no tímpano e na capacidade de não interromper o som do outro. E era essa ética da escuta que lhe permitia defender com igual fervor uma ópera barroca esquecida e um projecto de arte sonora experimental. Porque o que importava não era a forma, mas o gesto, a intenção, o lugar de escuta que cada obra propunha.

[A música como espelho ecológico]

Num tempo em que o planeta grita e o ruído se sobrepõe ao sentido, o pensamento de Rui Vieira Nery adquire urgência. Ensinou-nos que escutar é forma de cuidado. Que cada canção esquecida é como uma espécie extinta. Que preservar sons é preservar memórias — mas também futuros possíveis.

Compreendia, como poucos, que o património imaterial é feito de vibração, presença e relação. E que, em última instância, um país é também aquilo que consente ouvir.

[Conclusão: herdar a escuta]

O legado de Rui Vieira Nery não é apenas bibliográfico ou institucional. É auricular. É escuta transmitida. Não nos deixou apenas textos ou arquivos — deixou-nos perguntas que ressoam. Que exigem ouvidos menos apressados e mais atentos.

Neste tempo de algoritmos e escutas condicionadas, talvez o maior legado de Nery seja este: a coragem de escutar o mundo como ele é — polifónico, imperfeito, assombroso. Escutá-lo com o mesmo cuidado com que se escuta alguém que se ama. Ou que ainda não se aprendeu a amar.



[A Voz no Espaço Público]

[Quando a palavra nasce do escutar]

Entre 1995 e 1997, Rui Vieira Nery ocupou o cargo de Secretário de Estado da Cultura. Mas talvez o mais notável tenha sido isto: não perdeu o ouvido quando ganhou a voz. Num ambiente tantas vezes dominado pelo ruído político, soube preservar a lição musical mais profunda — a de que tudo o que ecoa precisa, primeiro, de escuta. Porque sem escuta, a palavra não passa de emissão cega; de som sem mundo; de frase órfã de ressonância.

Ao contrário do político comum, que fala para ouvir-se, Nery trazia a raridade da palavra que vem do outro. Falava como quem devolve o que escutou. Cada frase sua em público tinha a arquitectura de uma partitura bem escrita: com pausas, com respirações, com respeito pela ressonância do silêncio.

[Radialista, cronista, conferencista — o timbre civil da escuta]

Na rádio, não ocupava o tempo: oferecia-o. A sua voz não era de locutor nem de orador, mas de curador de silêncio, como quem sintoniza as frequências de um país que não sabe bem o que quer ouvir — e, no entanto, ao ouvi-lo, sentia-se afinado. Falava com o vagar de quem confia na escuta, e com a precisão de quem escutou antes de falar.

Como cronista e conferencista, oferecia mais do que conhecimento: oferecia contexto, profundidade, camadas. Citava sem vaidade. Argumentava sem esmagar. As suas ideias não eram martelos — eram afinações. Pequenas reorientações do ouvido, da memória, da cultura.

Num país de cacofonias, foi um timbre constante. Quando todos gritavam, ele murmurava. Quando se anunciava o futuro como ameaça ou salvação, Nery falava de herança como convite: herdar, para ele, não era repetir — era escutar o passado com perguntas novas.

[A palavra como gesto musical]

A escrita de Nery — fosse ela ensaio académico, nota de programa ou crónica — tinha sempre um ritmo interno. Frases com respiração. Parágrafos com modulação. Silêncios com intenção. Escrevia como quem sabe que o verbo é parente do som.

A sua palavra não impunha: convidava. Era uma palavra que escutava enquanto se dizia — como os grandes músicos, que ouvem o que tocam. Por isso os seus textos continuam a ressoar, mesmo lidos em silêncio. Porque foram escritos com consciência de que nem toda a palavra é som — mas todo o som pode ser palavra.

[Conclusão: quando o ouvido ocupa o poder]

Na sua breve mas marcante passagem pela política, Nery deixou-nos um modelo: o do intelectual que governa com o ouvido. Que faz da cultura não propaganda, mas escuta pública. Que concebe a política cultural como sistema de harmonia, e não de censura.

A sua herança nesse espaço não foi um grito — foi uma afinação. Porque, no fundo, aquilo que Nery nos ensinou é de uma simplicidade luminosa: o verdadeiro poder nasce da escuta. A autoridade constrói-se com humildade auditiva. E um país só se compõe quando a palavra pública tem o timbre da escuta interior.



[A Coda Inacabada]

[O que ainda vibra quando o som já partiu]

Rui Vieira Nery é, hoje, mais do que referência musicológica: é ponto de escuta da cultura portuguesa. Como uma ressonância grave que permanece após a última nota, o seu pensamento paira no ar comum. Não foi apenas académico — foi, à maneira dos grandes etnomusicólogos, um antropólogo do som, um cartógrafo do sensível, alguém que compreendeu que, para estudar a música, é preciso primeiro escutar o povo que a carrega.

Enquanto muitos catalogavam notas, Nery anotava o mundo. O seu trabalho, embora enraizado em arquivos e metodologia, foi sempre movido por uma pergunta mais funda, quase filosófica: de que é feita a escuta humana? E como é que essa escuta constrói uma nação, uma história, uma ideia de pertença?

[Entre partituras e pertenças]

É nesse entrelaçado — entre o estudo sistemático e a memória afectiva — que a sua obra se torna indispensável. Não porque pretenda dizer tudo, mas porque abre espaço para que o som fale. Rui Vieira Nery ensinou-nos que há música nos interstícios da história, nos silêncios da política, nos cantos das margens. O seu olhar sobre o fado, sobre as modinhas, sobre o património imaterial, é sempre o de quem ouve antes de escrever. E de quem escreve para perpetuar a escuta, não para encerrá-la.

Como Bruno Nettl observava sobre os grandes estudiosos da música: o verdadeiro musicólogo não se limita a teorizar sobre sons, mas interroga-se sobre os modos pelos quais os sons significam. Nery descodificou o país pelas suas vibrações invisíveis, como se cada reza cantada, cada canção de embalar, cada improviso popular, fosse partitura viva da identidade colectiva.

[O fade-out como legado]

E como toda a grande obra, a sua permanece incompleta no melhor dos sentidos — aberta, passível de continuidade, ecoando como uma coda que não fecha mas suspende. Nery não encerrou uma visão da musicologia: lançou-a em espiral. Deixou-nos não respostas, mas possibilidades. Não apenas livros, mas lugares de escuta.

O seu pensamento, como os modos melódicos que tanto estudou, move-se por modulações subtis. Não termina com acorde final — esbate-se como bruma harmónica, pedindo ao ouvinte o mesmo que pedia aos seus alunos: não julgar com pressa, mas escutar com vagar.

[Uma escuta por continuar]

Tal como Bruno Nettl defendia, o estudo da música é sempre ensaio sobre a condição humana — sobre o modo como organizamos o tempo, o corpo, o desejo e a memória através da frequência. Nery sabia-o. Por isso os seus textos são mais do que análises: são chamados à atenção. Exercícios de desocultação. Práticas de reverência ao que passa despercebido.

A sua obra é cíclica, como cantares de roda; acumulativa, como improvisos de oralidade. E sobretudo, generosa: nunca quis ser última palavra. Foi, antes, prólogo permanente. Início potencial de outras escutas.

pub

Últimos da categoria: Ensaios

RBTV

Últimos artigos