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Publicado a: 05/02/2018

Rui de Castro, o Pirata: Por Géneros Nunca Antes Navegados

Publicado a: 05/02/2018

[TEXTO] Eduardo Morais [FOTOS] Direitos Reservados

Uma espécie de agente secreto nos anos 80 ao serviço da ignição do punk, do disco e do hip hop em Portugal.
Soa à combustão musical da Nova Iorque de outros tempos, mas refiro-me mesmo a Rui de Castro, nascido em Lisboa na década de 50, descendente da família do Conde de Castro Guimarães.

“Quando era novo, o Jorge Palma ensaiava lá na nossa casa com o Vitor Mamede”, explicou-me o Rui quando o visitei em sua casa, referindo-se ao grupo Sindicato, que juntava membros de bandas precursoras do psicadelismo em Portugal como os Jets ou os Chinchilas.

Foi na verdade o baterista Vitor Mamede que lhe deu oportunidade de dar os primeiros passos na música, iniciando-o na Warm Blues Band ainda adolescente.

Começámos assim a desempacotar algumas das centenas de caixas que guardam o espólio tripante da rota desta peculiar figura.

 


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[Um ilustre em Londres]

Com a vida adulta a bater à porta, o Rui de Castro pirou-se de Lisboa em ’72 para fugir ao implacável serviço militar, e após uma passagem por latitudes tão distantes como África do Sul ou Suécia instala-se em Londres.

Por lá formou a banda WARM — mais tarde alterados para The Warm, como manda a lei do alfinete –, um trio de pub-rock/proto-punk que chega mesmo a ser mencionado pelo lendário John Peel no jornal The Sun, mas “conseguir uma edição, ‘tá quieto!”, confessou.

Movido pela rejeição, em ’76 o Rui decidiu fundar a sua editora Warm Records a fim de lançar o seu próprio projecto.

No livro Corta-e-Cola: Discos e histórias do Punk em Portugal, o autor Afonso Cortez refere que “a importância de Rui de Castro para esta história não reside apenas na música que edita, mas sobretudo na forma como o faz (…) É ele quem, juntamente com os amigos, faz tudo, desde a gravação à distribuição dos discos …”. E estava na verdade bem acompanhado pois a sua esposa escocesa, Mary Harrison-Goudie – que “foi uma das responsáveis pelo Photozine e pelo F**k P**k, dois dos primeiros fanzines punk ingleses, editados ainda no ano de 1977” — rapidamente se torna numa crucial compincha focada na vertente gráfica das edições da Warm.

“Os primeiros dois singles que fiz foi em ’76, um logo no início e o ‘Crazy Daisy Lady’ em Agosto. Mais tarde reeditei-os num EP, em que a Mary tirou uma foto à televisão com a Mae West a preto e branco. Copyright? Caga nisso!”.
Segue-se uma ligação repleta de correspondência constante entre o Rui e o divulgador-mestre em terras lusas António Sérgio, tornando-o também pivotal na génese do Punk em Portugal. É a partir de uma das inúmeras cassetes  enviadas para o Sérgio que este edita a seminal colectânea Punk Rock ’77 / New Wave ’77 em terreno virgem, através de uma camuflada Pirate Dream Records. O LP porém acaba por ser retirado do mercado por um processo em tribunal iniciado pela Phonogram e tem a particularidade não ter o último tema completo, pois a duração da cassete enviada assim não o permitiu.

Bem orientado, o Rui de Castro não navegava apenas no “rock speedado”. De forma não só a aumentar a paleta sonora da própria editora mas também a auxiliar a edição discográfica independente na sua terra natal, licenciou discos de editoras como a Cherry Red, a Record Shack, a Groove Production, entre outras. Pode dizer-se que trilhou assim o seu caminho indo directamente “à bica” desviando-se dos icebergues burocráticos portugueses.

Paralelamente, produzia um programa de Disco Music na BBC — que mandava para a RDP/Antena 1 — chamado Disco Tempo sob o nome “Snakeman Show“, onde manuseava a maquinaria da estação. O resultado chegou a ser editado em cassete mas infelizmente ele não se recorda do paradeiro.

“Tive oportunidade de trabalhar com no “corte e cola” daqueles masters em fita que me cediam quando comprava as licenças, por exemplo, da Skratch Music que lhe dava total liberdade para fazer os seus próprios edits. Admitiu-me “não sei fazer muito scratch, mas sabia cortar à lâmina, colar com fita-cola e pôr os beats a bater um no outro … tumba tumba tumba!”.

Já conhecido é o sarilho que acontece na sua derradeira morada pela capital londrina, quando a Virgin Records lhe deixa por engano na caixa de correio o test pressing do primeiro single dos Public Image Ltd. — o então recente projecto do seu vizinho da frente e ex-Sex Pistol Johnny “Rotten” Lydon, que via frequentemente na rua acompanhado por Don Letts ou Ari Up –, e sem pensar muito, o Rui o reencaminha imediatamente para o colega António Sérgio, que transmite o tema em estreia mundial numa emissão do programa “Rotação”, na Rádio Renascença.

Quando a gigante editora lhe pediu explicações, o senhor Castro foi sincero!

 


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[“Olha, agora já está em Portugal!”]

Prevendo o global advento da pirataria ainda em Londres como forma de expansão da sua editora, decide voltar para Portugal em ’81. Nesse ano, muda-lhe o nome para MHGR/Warm (sigla adicionada a partir das iniciais da sua companheira) e continua na sua forma independente a editar e distribuir alguns sete polegadas de reggae, disco, ska, punk e new wave por cá.

Curiosamente, ainda hoje acondiciona várias cópias e capas destas edições não escoadas num frigorífico desactivado da sua cozinha, que nem uma deliciosa sobremesa de bolacha preta.

Por Lisboa, prensava os discos na Lamiré, perto da Rua das Janelas Verdes, que pertencia à editora Sassetti, e fazia tudo dentro dos conformes: “Eu pagava os direitos de autor à SPA para fazer, por exemplo, 500 exemplares e levava o documento lá ao senhor Cancela” enquanto a Mary magicava o grafismo das capas.

Alerta-me no entanto: “Atenção que vim preparado para Portugal com o meu aparelho de duplicar cassetes”, e funda então uma distribuidora para este pequeno formato, a MIRA.

“Chamei-lhe Mira … Pira .. de Pirata. Porque o gajo que me as vendia, também vendia cassetes piratas. Ainda bem — pensei eu — porque também é um mercado que eu quero”, planeou o editor. “Para começar na primeira edição comprei 300, porque nessa altura, no mercado todo vendia-se umas 300 cassetes por edição”.

Pela Mira, e em paralelo com a sua MHGR/Warm direccionada para o vinil, colocou no mercado nomes como Russ Abbot, Peter Sarstedt, Marc Bolan, Medium Medium, The Orange Juice, e “basicamente muito do que era a fase mais disco diverte-te”.

O humor é de facto uma das peculiaridades no trajecto musical do Rui: “Às vezes inventávamos umas capas para as cassetes da Mira que nada tinham a ver com o disco”. No entanto, o plano fazia sentido na cabeça do editor quando pensava “não vou fazer, por exemplo, um LP do Peter Sarstedt, porque depois vão piratear-me esta porcaria toda e eu lixo-me! Então vou fazer cassetes e meto um selo branco! Naquela altura, se eu editasse um LP, no dia seguinte apareciam as cassetes pirateadas no Martim Moniz”.

Na verdade, em nenhum momento o Rui foi egoísta e quis até enriquecer o mercado discográfico nacional: “Com muito do catálogo da Cherry Red, eu dei a licença à editora NOVA através do António Sérgio, que fabricava o LP e eu fabricava as cassetes e vendia-as nas discotecas normais”. Dava para todos, portanto.

Rui possuía, por exemplo, os direitos para editar em exclusivo todo o catálogo futuro da Record Shack em Portugal, mas depois “eles começaram a dar outros artistas à Edisom e eu fiquei feito ao bife”.

O regresso do Rui a Portugal não foi sinónimo de pausa nas suas composições. Ainda em ’81, cria o projecto Robot Jukebox Band e lança um único single, “Sábado à Noite”, uma mistura entre rock’n’roll e electrónica que soa algo entre Alan Vega e os Silicon Teens de Daniel Miller.

Mas irrisório é que dois anos depois e no seguimento desse alter-ego, inventa um projecto que remete humoristicamente a um Raymond Scott fundido com o Avô Cantigas, o “Caixinha de Música” de música electrónica para a pequenada, com versões electrónicas d’”As Três Pombinhas”, “A Caminho de Viseu”, “Papagaio Louro”, etc., lançando várias cassetes. Numa delas, que gravou em casa directamente para o seu gravador de bobines TEAC de 1/4 polegada, escolheu “para capa uma foto da minha amiga Sarah Brightman com um papagaio no braço”.

Abrindo outra caixa selada encontramos surpreendentemente um Roland 606, um EDP WASP, um sequenciador Spider, um Korg MS-10, e um Casiotone MT-40, que adquiriu nos seus tempos na capital londrina. Conta-me que “programava a Roland entre o WASP e o Korg, que por sua vez estava ligado ao Spider. Foi assim que fiz aquela do “Malhão, Malhão”; a cassete com as versões electrónicas dos Beatles para Beatlemaníacos como eu; e o single do meu projecto Robot Jukebox Band».

Na caixa seguinte reencontrou uma cassete esquecida em que “o Malhão Malhão está no canal 1 … eiii caraças até fiz o Zumba na Caneca. É o fim da macacada!» Mais tarde, dá conta que na mesma cassete está o baixo do célebre single “Pirate Rap Attack”. Esse, assim como grande parte restante do tema foi feito a partir de uma Roland MC202 e do Casiotone MT-40, mas já lá volto.

Curiosa é também a sua faceta ginasta de quando enveredou pela música de aeróbica — modalidade que a sua mulher instruía — e editou LPs do género. Um deles é o resultado de quando com um amigo fez “uma party numa boîte da Costa da Caparica” especificamente para gravar a mistura final num disco com a escolha do material da Record Shack!

Repetiu a técnica em discotecas em Cascais para os discos de aeróbica da esposa, alterando as “passagens” dos masters que adquiria, e em ’84 acabou por gravar um disco próprio com a Mary, Shape Up & Dance, em que adaptou um tema instrumental de televisão escrito por Vince Clarke (Yazoo / Depeche Mode), acrescentando-lhe uma letra original. Infelizmente, esse disco que nunca chegou a ser comercializado.

 


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[Quando o barco afunda]

A barafunda com a SPA estala com o disco 40 Super Disco Hits on 33 porque decidiu assinar um contrato numa “outra modalidade em que eu teria de pagar os direitos não por disco fabricado, mas por disco vendido”, categoria recentemente introduzida a partir do Grupo Português de Produtores Fonográficos.

Confiante, criou um anúncio televisivo para a RTP1 com o tema “La Chica”, para ir para o ar durante semanas no intervalo da mítica série Dallas, e fez 7000 exemplares do disco, não sabendo se iria vender sequer metade.

Da Lamiré, onde prensava os seus discos até então, tinha-se agora mudado para a (Fábrica Portuguesa de Discos da) Rádio Triunfo e lá foi com “luz verde” tanto da SPA como do GPPF, mas “tudo termina com a SPA a dar o dito por não dito e a apreender-me todos os discos logo depois de serem prensados, dizendo que os direitos não tinham sido pagos”.

O caso arrastou-se para os tribunais onde o Rui ganhou, “tanto que me desapreenderam esta merda toda mas só em 85!”

“‘A High-Energy da Evelyn Thomas foi o que deu origem a que dissessem que o meu disco era pirata!”, referindo-se ao singleHigh-Energy” — que acabou por nomear todo um estilo da música de dança — co-produzido por Ian Levine, lendário DJ de Northern Soul — que lançou numa outra colectânea.

Um jornalista do Êxito — suplemento do Correio da Manhã — expôs este novo caso publicamente e acusou-o de pirataria. Rui teve direito a uma resposta à acusação e começa com “Oh Sôr Doutor, Oh Sôr Doutor”, embrião para a caricatura que se segue.

Explicou-me: “Eu sempre fui contra a pirataria, mas na altura viraram o bico ao prego e começaram a chamar-me de pirata. Eu achei graça e o resultado está aí! Então se sou pirata, visto-me à pirata”.

Furioso, pegou nos seus sintetizadores, levou “já os programas todos prontos” para o estúdio Musicorde, em Campo de Ourique e gravou o singlePirate Rap Attack” com o técnico Rui Remígio. Relembra: “Partimos o coco a rir com o acelerar e desacelerar daquela parte que parece um pica-pau na música”.

Foi este o seu último disco, lançado já em ’85 e intitulado O PIRATA (Pirate Rap Attack) de Rui de Castro & o Grupo Português de Piratas + Long John Silver’s Crew. Utilizando o rap como forma de ataque, ironiza repetidamente no refrão o provérbio “Uns comem os figos, a outros rebenta-lhes a boca” e na própria contracapa inscreve pérolas como “O Mel Brooks não tem nada a ver com este disco!” ou “Não autorizado pela Ésse Pê Há.! Nem Precisa!”.

Após o Rap Attack manda tudo ao ar — apesar do catálogo da editora no Discogs fazer incorrectamente referência ainda a três singles no fim da década, mas de uma outra Warm Records — torna-se solicitador e põe outros processos em tribunal contra a SPA e a Edisom, mas aprende que “este Portugal não funciona bem”.

Um final Club Classics Monster Mix, misturado já em ’85, chega a ser prensado em LP, embora nunca tenha sido comercializado pela também sua editora alternativa 3G Empire.

“Depois de 25 anos é que me disseram que eu fiz o primeiro rap em português, e eu digo que se calhar é! O Herman José fez o genérico para O Tal Canal e era assim tipo um rap, mas é diferente” pois o tema composto por Ramon Galarza é criado com um propósito totalmente distinto. “Uma vez até dei ao Herman uma cópia do meu disco e disse-lhe: ‘Olha lá, tenho veia para isto, não tenho?!’ Para ver se o gajo me punha lá no programa dele”.

Sem entrar no jogo do “ovo ou a galinha” de quem foi pioneiro dos géneros aqui retratados, até porque esta história tem é papagaios, o importante é que as pepitas de ouro deste pirata não sejam afastadas da história da nossa música eléctrica. Não tem a ver com uma gananciosa busca inflacionada pela raridade dos seus discos, tem a ver com a preservação na memória colectiva do conteúdo das suas caixas, pois o Rui até faz questão de as selar bem com fita-cola para que o tempo não faça das suas.

 


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