pub

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Ricardo Guerreiro & Ricardo Dias Infante
Publicado a: 01/09/2025

Dois corpos-som entre a tradição e a transcendência.

Royal Bermuda: suturas de saudade e madeira

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Ricardo Guerreiro & Ricardo Dias Infante
Publicado a: 01/09/2025

[Núcleo Sonoro: O Nascimento das Ninfas de Madeira]

O duo Royal Bermuda, composto por André Parafina e Diogo Esparteiro, nasce como um gesto de amizade antiga que se metamorfoseia em som. Não são apenas dois músicos que tocam guitarras: são dois corpos sonoros que aprenderam a falar através da madeira e do metal, até ao ponto de se confundirem com a própria ressonância. As guitarras, objectos tangíveis de madeira trabalhada, tornam-se entidades anímicas, ninfas ancestraes, como se cada corda fosse uma veia onde circula o sangue secreto da música.

Nesta dialéctica íntima, há uma tensão constante entre a matéria e a memória: a madeira vibra sob o toque da unha ou da ponta do dedo, mas essa vibração já traz em si a sombra da saudade. É a saudade portuguesa que se infiltra na própria acústica do instrumento, uma saudade que não é apenas sentimento, mas forma musical. Como na análise etnomusicológica de tantas tradições, percebe-se aqui que a emoção não se separa da estrutura: o modo menor não é apenas tonalidade, é também lamento; o intervalo descendente não é apenas sucessão de sons, é queda e regresso; o silêncio entre duas notas não é vazio, mas eco da ausência.

As seis cordas de uma guitarra, mais as sete cordas da outra guitarra — treze no total, como se fossem meses de um calendário sonoro ampliado — cantam como ninfas que entoam cânticos de almas perdidas. Não são lamentos mortos, mas vozes errantes, que ora caminham por searas douradas, evocando a plenitude rural e mediterrânica, ora naufragam em baías eternas, espaços míticos onde o tempo se suspende. Estas imagens encontram, na análise musicológica, correspondência: a alternância entre passagens modais luminosas e arpejos melancólicos, entre cadências suspensas e resoluções inesperadas, cria precisamente essa justaposição entre o tangível e o etéreo.

O som do duo é assim uma tessitura intersticial, onde o que é visível — o gesto, o corpo, a madeira — se cruza com o invisível — memória, saudade, mito. A guitarra não é só instrumento; é um mediador cultural, um portal por onde o passado atravessa o presente. É também corpo feminino, ninfa, entidade sagrada que responde ao chamamento do dedilhado com vozes múltiplas. A etnomusicologia ensina-nos que muitos povos concebem os instrumentos como prolongamentos do corpo ou encarnações do espírito: aqui, essa visão reencontra-se na modernidade lisboeta, onde cada harmónico que ressoa é um sopro antigo vestido de contemporaneidade.

Assim, o núcleo sonoro dos Royal Bermuda não reside apenas nas notas que soam, mas no modo como cada ataque, cada ressonância e cada silêncio nos conduzem a esse lugar liminar entre presença e ausência, vida e mito. Ao escutá-los, percebe-se que a música não é apenas um fluxo acústico, mas um ritual partilhado: as guitarras transformam-se em ninfas que nos guiam por paisagens interiores, onde a saudade se torna palpável e a madeira se converte em voz.

[Etnicidade, Fusão e Terra]

Apesar da filiação profunda na tradição portuguesa — um enraizamento que se reconhece no fado, no folclore europeu e até no eco do chorinho que atravessou o Atlântico — o duo Royal Bermuda não se deixa aprisionar pelas fronteiras da origem. O seu gesto musical não é arqueológico, mas sim criador: a cada dedilhado, abrem-se fissuras por onde entram outros mares, outras danças, outras memórias.

O que se escuta nas suas guitarras é uma cartografia sonora híbrida, onde os compassos da milonga se entrelaçam com a cadência terrosa da balada ibérica, e onde a métrica pulsante do chorinho encontra ecos nas linhas melódicas que evocam os Balcãs. Este trânsito de sonoridades não é mera colagem ou exotismo de superfície: é antes um processo de fusão atlântica, em que cada tradição é absorvida, reconfigurada e devolvida como matéria viva, vestida de sotaque português.

A etnomusicologia ensina que o hibridismo cultural não se dá apenas na junção de formas, mas na sua reinterpretação criativa. Nos Royal Bermuda, esse fenómeno é palpável: os modos harmónicos do Mediterrâneo convivem com os motivos rítmicos da América Latina, e da sua confluência nasce uma estética de diálogo intercultural que recusa hierarquias. Não há centro nem periferia; há apenas o fluxo incessante das cordas que ligam Lisboa a Buenos Aires, Nápoles a Belgrado, o Atlântico ao Tejo.

Essa multiplicidade, porém, não dissolve a identidade: permanece sempre o inevitável sotaque português, uma assinatura invisível que se manifesta na melancolia dos intervalos, no balanço subtil dos andamentos, na forma como o silêncio é habitado. É aqui que surge o conceito de “exótica saudade”: uma saudade que não se volta apenas para o passado, mas que se projecta para fora, em direcção a geografias outras, incorporando-as no seu próprio tecido. É uma saudade em expansão, um arquipélago de memórias e sonhos, onde cada ilha é uma tradição reencontrada.

Assim, a música do duo não é apenas fusão: é terra fértil onde raízes diversas se entrelaçam. É uma etnicidade em constante movimento, feita de cruzamentos e metamorfoses, que nos lembra que a música, tal como a terra, nunca é fixa — é húmus que se renova, é pólen levado pelo vento, é corpo que dança entre margens.

[Terminologia Musicológica e Etnomusicológica]

Segundo a perspectiva etnomusicológica, o duo Royal Bermuda não executa apenas peças: encena a própria ideia de saudade como performance. O palco, seja ele uma sala, uma tertúlia ou uma rua lisboeta, torna-se espaço ritual onde cada gesto é mais do que técnico, é significante cultural.

O vibrato — quase imperceptível, mas carregado de intenção — não é apenas uma oscilação de frequência; é um tremor da memória, como se cada nota respirasse a fragilidade do instante. A articulação dos braços e mãos, pontes entre carne e madeira, inscreve no ar uma coreografia íntima: o corpo do músico e o corpo do instrumento fundem-se até à indistinção, e dessa união emerge o som como terceira entidade, híbrida e viva.

As escolhas tonais e rítmicas reforçam essa dimensão simbólica. O recurso deliberado a modos menores não é simples opção harmónica, mas evocação de um território afectivo onde a melancolia se transforma em linguagem. A gestão do arco melódico, por vezes ascendente como quem procura, por vezes descendente como quem se entrega, recorda que a música é também narrativa, uma sucessão de gestos que encenam procura, queda, reencontro.

O fraseado transporta ecos do fado: os portamentos que deslizam de uma nota para outra, como vozes humanas em pranto ou desejo, inscrevem na guitarra a memória do canto lisboeta. Já a complexidade rítmica — herdada do chorinho e da milonga — introduz um contraponto de vitalidade, como se a pulsação fosse um corpo que dança contra a gravidade da melancolia.

Assim, cada escolha — seja de modo, fraseado ou ritmo — inscreve os Royal Bermuda num campo de hibridismo simbólico, onde a técnica nunca é neutra. O que parece gesto musical é também acto cultural e ritualizado: uma reafirmação da identidade, mas também um convite à alteridade. A saudade não é aqui uma emoção isolada, mas uma prática performativa que se constrói em cada ataque de corda, em cada silêncio entre notas, em cada reverberação que insiste em não desaparecer.

É nesse espaço de intersecção entre corpo, técnica e memória que o duo se move. E nesse espaço, a música deixa de ser apenas som: torna-se linguagem transcultural, simultaneamente boémia e erudita, íntima e colectiva, local e universal.



[Partituras da Saudade: Repertório e Tornadas Verbais]

A linguagem simbólica dos Royal Bermuda não se esgota no som: expande-se em palavras, imagens e metáforas que prolongam a música para o domínio do mito. Ao auto-identificarem-se como “duas ninfas de madeira e corda”, André Parafina e Diogo Esparteiro inscrevem-se num território onde o músico já não é apenas intérprete, mas mediador entre mundos.

O animismo da madeira — madeira que respira, que guarda no seu corpo o eco das florestas onde nasceu — atravessa aqui a performance musical. Cada vibração é memória vegetal tornada som, cada harmónico é a seiva transfigurada em luz acústica. Esta concepção, enraizada em tradições pré-modernas da música europeia e de muitas culturas do mundo, reconhece nos instrumentos não uma função, mas uma presença viva.

Neste quadro, o repertório do duo adquire a dimensão de partitura ritual. Não são apenas canções ou peças, mas invocações tornadas verbais da saudade. O título de cada obra, a forma como se apresenta, a própria escolha das palavras, funcionam como chaves simbólicas que abrem portas ao imaginário do ouvinte. O que se nomeia, transforma-se: Paraíso Cafajeste, Sempiterna, À Antiga — cada nome é já um campo semântico que molda a escuta, convocando geografias afectivas e paisagens que os sons irão habitar.

Assim, as suas partituras não são apenas escritas em pentagramas invisíveis: são também poéticas da saudade, textos paralelos, tornadas verbais que habitam o mesmo espaço que o som. A música, neste caso, não se ouve apenas: lê-se, evoca-se, imagina-se.

[Presença Espacial e Boémia Intelectual]

A presença dos Royal Bermuda está gravada na topografia nocturna de Lisboa. É uma música que parece nascer à mesma hora em que as ruas esvaziam e os candeeiros projectam sombras longas sobre o empedrado. O duo inscreve-se na vida boémia lisboeta, numa geografia íntima feita de tertúlias tardias, de casas de fado depois da hora oficial, de encontros fortuitos em mesas de madeira onde uma garrafa de vinho se torna cúmplice e co-autor da experiência sonora.

Não é apenas um concerto: é um rito partilhado. O vinho circula como sangue simbólico, aproximando corpos e tornando a escuta mais porosa. Os Royal Bermuda não tocam apenas para o público, mas com o público: cada olhar, cada respiração conjunta, cada gargalhada contida entre temas transforma-se em material acústico invisível que molda a música em tempo real.

Do ponto-de-vista musicológico, este ambiente traduz-se num fenómeno performativo fenomenológico. A improvisação subtil, longe de ser excesso ou virtuosismo, emerge como gesto necessário para responder ao espaço, à hora, à energia da sala. O silêncio dramático, explorado como pausa expressiva, não é vazio mas presença densa, onde o público escuta a própria respiração da música.

Cada performance torna-se, assim, uma partitura aberta, onde a audiência participa como cocriadora. O duo lança linhas melódicas, e o público devolve-lhes energia, silêncio, murmúrio — uma polifonia não escrita que se inscreve no acontecimento musical.

[Corpus Discográfico em Duo]

O percurso discográfico dos Royal Bermuda, enquanto duo, é um arquivo sonoro de metamorfoses. Cada gravação não é apenas registo técnico, mas cristalização de um momento irrepetível, como se o estúdio fosse um espaço sagrado onde o tempo se condensa.

O EP Paraíso Cafajeste (2019) surge como primeira inscrição, título paradoxal que reúne o celestial e o profano. Dois anos depois, o álbum Sempiterna (2022) consagra esse processo como maturidade: transformar o instante em permanência, a nota em eco prolongado. Os singles “À Antiga” e “Nha Preta” mostram derivações laterais, prenúncio de futuros caminhos: tradição reencontrada e mestiçagem lusófona.

De uma perspectiva etnomusicológica, este corpus pode ser lido como narrativa de enraizamento e expansão: da inscrição inicial da identidade à promessa de novas geografias sonoras.

[Conclusão Poética]

No espelho dual que formam André Parafina e Diogo Esparteiro, a música não se apresenta como objecto, mas como presença viva. O duo Royal Bermuda não é apenas intérprete de cordas: é alquimista de memórias, transfigurador de tradições, arquitecto de uma saudade que viaja entre continentes e regressa sempre ao cais lisboeta.

A saudade, nas mãos do duo, deixa de ser mero afecto para se tornar prática performativa: uma ética da escuta em que o silêncio tem densidade e o gesto convoca comunidade. A sua música é corrente que liga margens, vento que dobra espigas, ponte que não conhece fronteiras.

[Coro Celestial e Chuva de Estrelas]
Análise Poético-Musicológica de um Concerto dos Royal Bermuda no Romaria Cultural, em Gouveia

Na igreja de Gouveia, a música começou com um coro celestial pré-gravado, que fez das paredes pedra vibrante. Logo depois, as guitarras derramaram uma chuva de estrelas, cada nota como centelha. Dois músicos tornaram-se um só organismo sonoro.

De tema em tema, recriaram estilos múltiplos: um fado reinventado, um flamenco transfigurado, guitarras acústicas que soavam como guitarras portuguesas. Cada peça trazia a sua assinatura: ora um solo cintilante, ora uma textura inventiva. O uso dos harmónicos era cirúrgico, e as dinâmicas oscilaram entre o quase-silêncio e a tempestade quasi-noise.

O público, rendido, pediu dois encores: epílogos brilhantes para um concerto que foi menos espectáculo do que revelação.

Do ponto-de-vista poético-musicológico, a actuação foi manifestação: fusão de virtuosismo e invenção, tradição e transfiguração, técnica e espírito. E a conclusão ecoou clara pelas naves: estes músicos são de outro mundo, e a sua música é casa onde todos podemos habitar, mesmo que apenas por instantes.


pub

Últimos da categoria: Ensaios

RBTV

Últimos artigos