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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 28/06/2023

A (re)construção de uma capela no mais recôndito dos montes.

Cântico final de Pedro Gomes e Roy Montgomery na ZDB

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 28/06/2023

Brötzmann. A impossibilidade de um outro início. Nome próprio de um destemido. Autor de uma discografia sem paralelo, de discos recorrentemente alvo de audições, intemporais, ascensionais. Como referência mais óbvia, Machine Gun, editado enquanto Peter Brötzmann Octet e ao qual se deve sempre acrescentar a definição correspondente — “ma.chine’ gun – automatic gun for fast, continuous firing“. Referência incontornável da música contemporânea e nota de abertura do concerto que lhe dedicou Pedro Gomes. Em tom sereno, quase sussurrado e uma singela nota, como devem ser todas. Uma confissão sincera de admiração pelo trabalho do músico alemão, com o qual Pedro Gomes teve oportunidade de colaborar.

De costas para o público, marca habitual do guitarrista, que assumimos como uma proximidade face a quem escuta. Está no mesmo plano que nós, de frente para os amplificadores. Ouve o que ouvimos. O que sai da guitarra são notas dilacerantes. Associar a uma imagem é enviesamento retorcido. Trata-se de um discurso amadurecido, construído ao longo de anos e de uma relação íntima e intransmissível que mantém com a guitarra. Velocidade sempre, travagens e mudanças de direcção. Nada é linear, mas também nada é rebuscado. As alternâncias de tom, as texturas que acrescenta ou subtrai seguem o caminho com a sua naturalidade. Há um discurso. Afirma uma autoria. Sentimos que há quem nos representa. A voz dos mudos, o grito dos olvidados. Dos que trilham a ladeira que escolheram. Sem concessões. Aqueles que suportam um quotidiano irrelevante, tenham eles a mais “relevante” das profissões, sejam os que levam com as agruras de uma existência sem sentido e, sobretudo, os que na música não a querem de mão dada com as linhas e colunas do Excel e muito menos ver o seu nome grafado em “mupi” mundano ou post auto-celebratório. Há despojamento. A busca, arriscamo-nos em afirmar, do acto primordial. A (re)construção de uma capela no mais recôndito dos montes para nos aproximarmos das questões essenciais. O que nos deveria interessar a todos. Sem abébias, como se viu na pontualidade com que começou. A valer cada exercício de condução arriscado, desde o Piódão ou outra aldeia, seja no Lounge, na SMOP, é noite que nunca se perde. Neste canto de amorfos e servilismo “naftalínico” é voz a ser escutada. Mas, quanto a isto, a esperança é pouca. 

“Sou consciente do meu tempo de saída”. Presumivelmente não é a reprodução exacta do que Roy Montgomery disse no final da noite e na recusa de um encore pedido. Antes a assumpção de uma fragilidade conscientemente assumida. Condição pensada, repensada horas a fio e que se manifesta não só na forma delicada como toca guitarra, nas letras, o quanto, e na posição que escolheu para estar no palco — no limite do mesmo. Uma proximidade absorvida por todos. Um funambulista com pânico das alturas. Afronta os medos, perscruta cada uma das cicatrizes. A força é silêncio. Nenhuma manifestação de poder másculo, seja em solos desmesurados ou tecnicismos irrelevantes. Um homem, a sua guitarra, mesmo que emprestada, as histórias que reflectem cúmplices. 

Um pintor de tangentes. O fino traço de quem sabe que a fragilidade do “eu” só se poderá resolver na construção de diferentes micro-colectivos. Um plano de cumplicidade. Linhas de persistência. A persistência do Pedro Gomes, que ao fim de muitos anos permitiu a estreia do guitarrista neozelandês em Portugal, o som irrepreensível da Olga, na bonita tradição do Cristiano e Kelzo, o cuidado da Caetana na produção, do Marcos por ter aceitado a proposta. A todos os nomeou antes do concerto. Como não?

No final de uma tour que deixou marcas na voz, confessadas, mas não notadas, o tom é meditativo. Temas curtos, densos, negros. Olhar para o céu, exercício capital, para daí escrever letra compreensível, porque por todos reconhecida. Outros temas que estão em construção, o espelho de uma vida. Os fios e a sua meada. Um trabalho íntegro, uma ideia desenvolvida nas suas múltiplas facetas.

A verdade. Sempre ela. O despojamento de “nós”, o apagamento do “eu/ego”. A linhagem dos humanistas. Citando Nuno Marques Pinto – “Não são os genes que nos moldam, nós moldamos os genes”.

P.S. 1: Título inspirado no livro de Vergílio Ferreira, Cântico Final.

P.S. 2: Referência tão justa como fundamental ao cartaz de Carlos Gaspar, belíssimo. Motivo para aconselhar visita à exposição TIL WE MEET AGAIN, patente na Galeria Zaratan.

Na ausência de memórias fotográficas da noite de 27 de Junho, é precisamente o flyer assinado por Carlos Gaspar que serve de ilustração a esta reportagem.


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