A entrada de Roy Ayers no palco do Arena Lounge, no Casino de Lisboa, foi anunciada com palavras arrebatadas onde surgiram justas expressões como “lenda viva”. Curiosamente, o primeiro sinal de que uma lenda se preparava para subir ao palco foi dado pelo invulgarmente elevado número de caras conhecidas dos mundos do hip hop e do circuito de clubes portugueses que se encontravam entre o público que praticamente esgotou a sala: Bomberjack, Xeg, Tekilla, Melo D, membros dos Cool Hipnoise, Rocky Marsiano, Rui Vargas, Tó Ricciardi, Rui Murka… De facto, Roy Ayers é um nome cuja música, samplada ou simplesmente assimilada, influenciou gerações de produtores de hip hop e de house. A presença de tantos representantes dessas culturas teve portanto o sabor de tributo devido. No final do concerto, Roy Ayers falou sobre a importância que estas gerações têm para si.
“Claro que saber que arrasto novas gerações para os meus concertos me enche de orgulho. Apesar deste concerto ser num casino, ainda não estou propriamente pronto para fazer o circuito dos casinos como há na América e tocar para reformados,” afirmou o vibrafonista, por entre risos. Ainda muito recentemente, o nome de Roy Ayers surgiu na contracapa de Eardrum, o último lançamento de Talib Kweli, mesmo ao lado do de Kanye West. “É verdade, o Talib convidou-me para ir a estúdio meter um solo de vibrafone num tema. Foi uma experiência fantástica.” Fantástica, mas também diferente. O hip hop ergueu-se na América sobre a utilização da memória gravada, sobretudo aquela que na década de 70 marcou a elevação da condição negra. Roy Ayers fez parte dessa geração dourada, registando inclusivamente com a sua “banda”, Ubiquity, um dos pontos altos da produção musical para a chamada “Blaxploitation”, a resposta de Hollywood à necessidade criada após o sucesso do Civil Rights Movement de uma nova geração de heróis negros. Ayers assinou o score de Coffy, filme em que Pam Grier (a mesma de Jackie Brown de Tarantino) surgia em toda a sua glória. E criou nessa década verdadeiros estudos aplicados do groove que ainda hoje sobrevivem nos soundsystems dos clubes: “Everybody Loves the Sunshine”, “We Live on Brooklyn” ou o apropriadamente entitulado “Change Up The Groove”. Muitos destes clássicos ganharam novos públicos ao serem samplados.
Quando, em 1984, Roy Ayers foi convidado pelo Departamento de Estado a fazer uma digressão em África, isso significou o reconhecimento de uma carreira que marcou de forma profunda a década de 70 americana. Em 1981, Ayers tinha editado Africa – Centre of The World, disco que Jazzie B dos Soul II Soul reconheceu publicamente ter inspirado o arranque da carreira do seu grupo. Esse álbum foi certamente despoletado pela experiência visionária de gravar com o gigante Fela Kuti em Music of Many Colours, editado no ano anterior. E esses são apenas um par de discos que chegaram depois de uma década de invulgar criatividade: Ubiquity de 1970, Change Up The Groove de ’74, Mystic Voyage de ’75, Everybody Loves The Sunshine de ’76 e You Send Me de ’78 são alguns dos marcos de uma década que ainda hoje aponta novos e entusiasmantes caminhos e serve de combustível para samples um pouco por todo o mundo.
“Os Brand Nubian e a Mary J Blige samplaram o ‘Everybody Loves The Sunshine’ e ainda bem que o fizeram, pois foi uma forma de manterem a minha música viva. Aliás, graças ao tema ‘My Life’ da Mary J Blige eu tive o meu primeiro disco de platina. Nunca consegui um galardão desses durante toda a minha carreira,” explicou o veterano de 67 anos. Para lá das questões estéticas e legais do sampling, a verdade é que essa abordagem criativa à música amplamente utilizada no hip hop permitiu que muitas lendas esquecidas pelo tempo voltassem ao activo ou que pelo menos começassem a receber significativos cheques de publishing. “Eu sei que há muitos nomes da minha geração que falam contra o sampling”, confessou Ayers, “mas também sei que muitos desses nomes o fazem porque nunca foram devidamente recompensados por terem sido samplados. Eu não me posso queixar: os meus temas foram samplados em mais hits dos que os de James Brown. Não fui samplado mais vezes, mas em mais sucessos.” Esse é, notoriamente, um motivo de orgulho para Roy Ayers.
Compreensivelmente. “Quanto custa um sample?” O vibrafonista fez uma pausa e reflectiu antes de responder: “Depende, mas pode significar 7 mil e quinhentos ou 10 mil dólares, só por um par de compassos. Nada mau, sobretudo quando se trata de música que muitas vezes nós próprios já tínhamos esquecido.” Claro que nem todos os discos de hip hop têm o orçamento de Eardrum de Talib Kweli e muitas vezes estes samples são dissimulados ou simplesmente não creditados, mas também se percebe que para esta geração de artistas ter estes veteranos nos seus álbuns é uma clara mais valia. Mos Def não hesitou em utilizar Weldon Irvine, os Jurassic 5 recorreram a Gil Scott-Heron e os exemplos multiplicam-se. Do sampling, passou-se a uma nova estratégia, a do envolvimento directo, em estúdio.
“Claro que estou sempre aberto a essas propostas,” referiu Roy Ayers. “Neste momento estou concentrado em tocar ao vivo, mas devo voltar a mexer nas gravações de arquivo que renderam estes trabalhos recentes na BBE.” O músico veterano refere-se a trabalhos como Mahogany Vibe e Virgin Ubiquity, lançados nos últimos anos pela britânica Barely Breakin’ Even. “E, claro, estou sempre disposto a dar um salto a estúdio quando alguém me liga. Sinto-me muito ligado a estas pessoas, como o Talib Kweli, a Mary J Blige, a Erykah Badu. É uma bênção ter estes amigos.”
Nota: este artigo foi originalmente publicado na Blitz em 2007, após um concerto de Roy Ayers no Casino de Lisboa.