CD / Digital

Roke

Shaitan

Paga-lhe o Quarto Records / 2021

Texto de Luís Carvalho

Publicado a: 25/01/2021

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Na crença islâmica, shaitan é um demónio ou um espírito maligno capaz de conduzir os humanos para o incorrecto, moldando a mente das suas vítimas através dos seus sussurros, desviando os bons do seu caminho, daquilo que lhes compete, daquilo que são por natureza. Shaitan é também o título do novo EP de Roke, rapper que, no ano transacto, ganhou uma maior notoriedade, graças à sua presença na compilação Sinceramente Porto. Isso leva-nos à questão: será Roke um shaitan do hip hop? Tudo nos leva a dizer que não, mas, para melhor avaliar os seus desejos e motivações, temos de recuar e fazer o caminho inevitável até chegar ao seu novo trabalho.

Tal como muitos, “Algodão Doce” foi o primeiro contacto que tive com a música de Roke. Lembro-me perfeitamente de quando me mostraram o tema: “quem é este MC?”. Nenhum de nós conhecia o seu passado, muito menos a sua origem, mas partilhámos uma admiração imediata pelo seu timbre. Era distinto, chamava imediatamente a atenção do mesmo jeito que as vozes de Allen Halloween ou Valete conseguem, e sobretudo cativava pelo modo como a usava, numa toada lenta, nada esforçada, no total controlo do “seu” tempo, um tempo que parecia diferir de todos os outros rappers. O seu flow teve pano para mangas nessa conversa. Algumas comparações foram feitas, nenhuma, por sinal, totalmente certeira. Não soava a novo, não na sua totalidade pelo menos, e tinha algo de clássico, mas nunca o suficiente para pensarmos que estávamos a ouvir um contemporâneo dos Mind da Gap. Era, por isso, algo pessoal, irreverente, ao seu jeito arrojado. Concordamos que este seria um artista de potencial enorme, distinto, refrescante, com uma rima eficaz; uma entrega genuína.



Obviamente, tudo isto que foi dito, todo o entusiasmo e todo o potencial que ouvimos, não passou ao lado de Keso, que o convidou para continuarem a sua colaboração em modo editorial pela sua POQ Records. O resultado confirmou todas as potencialidades indicadas em cima de tal maneira que poderia fazer uma transcrição. No entanto, tal não pode ser feito porque, em Shaitan, Roke tornou-se ainda mais excitante, distinto e mordaz, sobretudo na lírica, em que claramente se sente uma maturação. Os seus versos são coesos, inteligentes, altamente visuais e são sabiamente usados com esse propósito na construção de uma entusiasmante observação pessoal e civilizacional, que vai sendo ilustrada faixa a faixa, através de constantes analogias com a cultura contemporânea, figuras populares, elementos pop, personagens televisivas ou de diferentes tipos literários, da filosofia aos mangás. Todas estas referências, são usadas como um meio descritivo, um catalisador que desbloqueia a mensagem, algo que facilita o transporte da mesma, mas sobretudo que ilustra os seus pensamentos, mesmo que para isso, por vezes, tenha de exagerar o seu conteúdo que, por sinal, é bastante sombrio, pesado, por vezes satírico, mas sempre muito negro.

Este é um álbum sonoramente carregado. É certo que muito disso advém da composição pesada e negra dos beats produzidos por Lex Lucas, um arquitecto que construiu um universo altamente denso e gélido, que combina na perfeição com as mensagens e com o timbre que as emite. Apesar de alguma dualidade presente, afinal de contas “…a vida é feita de escolhas e as minhas são mesmo dúbias”, como se ouve em “Anno Domini”, música que ainda nos transmite alguma esperança, no brilho e no requinte do piano ou nos põe com vontade da dançar através dos seus kicks intensos, isso praticamente desaparece de “Baú” para a frente, até sermos sufocados por sons obscuros e pecaminosos, basta ver que fechamos a audição de Shaitan ao som de balas.

Um final metafórico, que prova o crescimento e a atenção ao detalhe, realça a capacidade que este tem de se envolver com a imagem, a noção do uso da referência como um elemento poderoso a nível descritivo, porque por vezes para explicar o mundo actual, temos de falar a sua linguagem. Aqui mais do que nos empurrar, ele aponta o caminho e motiva, através das analogias, fala sobre si, sobre a sua arte, sobre os seus desejos e escolhas. Roke talvez nos desvie, talvez sussurre ao nosso coração, mas não como o termo islâmico que serviu de inspiração ao título do trabalho. Ele desvia-nos para um bom porto — o da reflexão.


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