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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 05/11/2020

Raül Refree aparece novamente em mais uma jogada de contextualização do património musical tradicional espanhol.

Rodrigo Cuevas: “Não tinha planeado deixar tudo para viver numa aldeia. A vida acabou por me trazer até aqui”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 05/11/2020

Manual de Cortejo é o disco de Rodrigo Cuevas que foi lançado no final do ano passado e que justamente o posicionou num lugar de destaque na música espanhola. Uma rápida pesquisa na Internet deixa-nos perceber que o álbum leva aqueles que o ouviram a chegarem à mesma conclusão: estamos perante um recuperador de uma tradicionalidade captada ao longo de uma vivência nas Astúrias rurais. O artista autodenomina-se agitador folclórico e é com essa expressão em mente que funde a música tradicional com as expressões mais contemporâneas da música eletrónica experimental.

Conversámos com ele em dois momentos diferentes: no primeiro falou-nos a partir de um monte numa aldeia perto de Oviedo, no Norte de Espanha, onde se encontrava num local com pouca rede, mas suficiente para perceber que estava a apanhar castanhas juntamente com as suas duas burras e um amigo. No segundo, já estava muito perto da fronteira com Portugal, a caminho daquela será a sua primeira apresentação a propósito da 11ª edição do Misty Fest, no Museu do Oriente, esta noite, em Lisboa. Amanhã, Cuevas apresenta-se no Auditório de Espinho e no dia 8 de Novembro é o Convento de São Francisco, em Coimbra, que o recebe.



Quando surge o interesse de Rodrigo Cuevas em folclore?

Quando era novo não tinha interesse na música tradicional, estudava música no conservatório. Mas em Palma de Maiorca frequentei uma conferência de música e vi um grupo de idosos a cantar música tradicional, o que me impactou muito e, consequentemente, despertou em mim um enorme interesse no género, encontrei nele muito mais do que aquilo que estava à espera, uma nova forma de expressão que à primeira vista não me era evidente. Na Galiza tinha um par de vizinhas que tocavam pandeireta e me introduziram de certa forma a esse universo, o que me levou a querer fazer parte desta corrente de expressão musical. Senti que fazia parte da história da humanidade, e isso fascinou-me, porque encontrei um estilo que me permitia aprofundar muito mais a minha técnica musical e criar a minha própria narrativa.

Dirias que essa atração ao folclore aconteceu organicamente?

Sim, não tinha planeado deixar tudo para vir viver numa aldeia, a vida acabou por me trazer até aqui, e à medida que ia viajando fui descobrindo o que queria para mim.

Para descrever o teu trabalho musical poderíamos utilizar a palavra etnografia?

Tenho a sorte de estar constantemente ligado ao mundo tradicional. Estou muito próximo das zonas mais ruralizadas, mas estamos muito escondidos de toda a urbe. O nosso mundo tem a característica muito especial de ser muito mais orgânico e em contacto com a realidade.

A ruralidade que me falaste: sentes que está a desaparecer?

Eu acredito que sim. Ainda temos a sorte de a termos muito viva em Espanha e Portugal, mas ao mesmo tempo não sinto que se trata da mesma forma com que se tratam as instituições de património material. O embargo cultural do património imaterial não se cuida da mesma forma. Não há um empenho em transmitir o património da cultura oral, ou seja, sinto que o património imaterial não é o que traz turistas a comer a restaurantes, a fazer fotos e selfies em frente a edifícios, ou seja, não existe uma aposta porque não há uma perspectiva de riqueza quando falamos de património imaterial.

Qual é o papel que vês na música tradicional para o futuro?

Sinto que a música pode ser muito popular. Se traçarmos uma história do género, podemos pensá-lo como tendo os seus momentos de alta popularidade ao longo da história, em vários países. Em Portugal e Espanha é fácil testemunhar um crescimento desta expressão, como por exemplo no caso do Tiago Pereira ou Fado Bicha, que, de certa forma, apostam na fusão dessa tradicionalidade com várias vertentes de expressões artísticas contemporâneas.

Achas que a Internet te veio facilitar o acesso a este tipo de cultura musical?

A Internet ajuda à investigação e ao intercâmbio de conhecimento, o que na minha perspetiva pode ser muito bom. Existe uma maior variedade de informação a ser transmitida entre artistas que trabalham com o tema do folclore e do tradicional.



Dirias que existe espaço para uma corrente musical em torno do género?

Creio que sim, sinto que já existe uma corrente. Muitos campos contemporâneos viraram-se para o folclore ao longo da história. Os séculos 19 e 20 são testemunhos históricos desses momentos. Agora, em pleno século 21, temos de novo um olhar refrescado sobre essa tradicionalidade, vista agora de uma perspectiva mais contemporânea.

Porque é que achas que essa recorrência ao folclore é importante na actualidade?

Existia uma forma de viver e ver o mundo que definia as pessoas do mundo antigo e tradicional. Humanista, colectivo, creio que através da música popular toda essa sabedoria pode voltar a ser transmitida. Essa sabedoria é aquilo que eu pretendo transmitir na minha música.

Fala-me um pouco do teu Manual de Cortejo.

As canções foram compostas por mim: por vezes fundi a música tradicional com letras escritas por mim. Após isso reuni-me com o Raül [Refreee] e levei-lhe uma maquete com as canções que eu gostava de cantar e trabalhar. De parte em parte fomos trabalhando as músicas, algumas puramente tradicionais, outras com maiores alterações. No estúdio reduzimos as músicas à sua essência restando por vezes apenas a batida e a minha voz, a partir daí fomos reestruturando o arranjo até chegar ao resultado que pode ser escutado em Manual de Cortejo.

“Muiñeira para a filla da bruxa” foi um dos primeiros singles do teu disco. Como chegas até estes temas para criares um trabalho como Manual de Cortejo?

O tema para essa música parte das muiñeiras tradicionais de Toutón e Moscoso, Pontevedra, que exemplifica um pouco a minha inspiração: escuto cantares que gosto pela sua melodia ou expressividade, recolho, ou por vezes simplesmente faço um sweep de músicas que eu gosto. A partir daí tenho as peças juntas para criar uma muiñeira que eu goste, tentando adaptá-la para os meus próprios ouvidos.

A maior parte das músicas ouço-as a partir das pessoas mais velhas, ou estou em casa e componho o meu próprio projeto, uso o mundo tradicional que me é mais próximo como meio de expressão. Como estou normalmente rodeado de todos esses elementos, essa acaba por ser a minha experiência de vida, o sumo do meu trabalho. É por isso que vivo numa aldeia, estou no centro desse modo de expressão.

Existe uma música em concreto que me captou a atenção: “Ánimes del Purgatoriu _ Bienveníos Refuxaos”.

Sim, essa música parte da tradição da noite dos defuntos, em que as mulheres andavam pelas aldeias equipadas com campainhas e depois de cada verso davam um toque no sino para libertar as almas que se encontravam no purgatório e queriam dali sair. Pensei nesse título como uma boa metáfora para os refugiados que se encontram no mar, que quase vivem num purgatório sem saberem se vão poder entrar nos países para que se dirigem. As vidas deles estão suspensas nessas fronteiras.

Numa última pergunta, gostava de saber como é que achas que a pandemia afetcou a tua criação artística e o espaço para a exposição da arte.

Ainda ainda é cedo para clarificar como a pandemia me poderá ter afetado no processo da criação artística. Mas julgo que uma grande tendência foi a transição dos espetáculos para o formato online, houve uma transição da arte para o espaço digital.


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