Foi num misto de admiração e expectativa que nos sentámos à conversa com Rodrigo Correia, um dos nomes mais versáteis e estimulantes da música portuguesa contemporânea. Este ano ficou marcado por dois momentos capitais na sua carreira: primeiro a edição do álbum de estreia a solo, Promessa, e a recente distinção como Artista Revelação nos Prémios RTP / Festa do Jazz 2025.
Embora seja agora saudado como uma nova e promissora voz a despontar no circuito do jazz no jazz, tem vindo a dar várias provas de ser já um músico bastante completo, que há anos constrói, nos bastidores, uma parte significativa do panorama musical nacional, contando hoje com um percurso bem rico e multifacetado para quem tem apenas 26 anos de idade. A Promessa que dá título ao seu primeiro trabalho é, por isso, a materialização de uma longa jornada. Rodrigo Correia é um compositor, multi-instrumentista e produtor que se tem movido com igual mestria entre universos sonoros distintos, da pop ao fado, ou da música africana ao jazz, sendo que a sua assinatura está presente em temas de alguns dos artistas mais renomados da nossa praça, como Agir, Ana Moura, Slow J e Carolina Deslandes, entre muitos outros.
Em conversa com o Rimas e Batidas, Rodrigo Correia recorda todos os passos do seu trajecto e abre-nos a porta para entrarmos no universo de Promessa, um registo que, além dos talentos do seu próprio autor, inclui também um incrível número de colaborações com vários dos pesos-pesados do jazz e da música improvisada do nosso país, como são os casos de Mário Laginha, Ricardo Toscano, João Barradas ou João Paulo Esteves da Silva.
Tu estás com 26 anos, mas já tens um considerável percurso atrás de ti, até porque começaste a tocar ainda na adolescência. Como é que se deu a tua entrada na música? É por questões familiares? Já havia quem tocasse na tua família?
Eu agradeço sempre por a música ter aparecido de uma forma orgânica na minha vida. Eu cresci com o meu pai a tocar e a cantar, o meu avô a escrever e tocar saxofone, de forma amadora, no sentido em que não viviam só da música. Há muito aquela cena em Portugal, principalmente no Portugal mais rural, das filarmónicas, que são responsáveis pela formação de muitos músicos, principalmente malta dos sopros. O meu avô vinha daí, o meu pai cantava e tocava, a minha mãe gosta muito de música… Naturalmente tinha instrumentos em casa e eles eram como se fossem brinquedos para mim. Assim como eu ia jogar à bola, também pegava numa guitarra e experimentava.
E onde é que era essa casa em que cresceste?
Numa aldeia chamada Carvalhal, ao pé de Bombarral. E pronto, eu fui exposto a isto de uma forma natural. Aquela cena de “amanhã vais ter aula de piano às 10 horas” aconteceu posteriormente, quando fui para o conservatório. Dos 4 aos 10 anos, o meu contacto com a música era exactamente como se fosse uma brincadeira qualquer. Como os instrumentos existiam em casa, tinha contacto com eles desde que me lembro. Não era forçado de maneira nenhuma a levar aquilo mais a sério. Era uma brincadeira, pronto. E agradeço muito que nunca me tenham dado essa pressão, porque às vezes incutem coisas às crianças logo desde muito cedo.
E quando é que passas desse ambiente informal e familiar para o que dirias que é o início da tua formação clássica?
Foi natural. Comecei a desenvolver ali um interesse extra pela música, e como já havia esse contexto na minha família, os meus pais decidiram meter-me no conservatório das Caldas da Rainha.
E já tinhas alguma inclinação particular para um instrumento?
Não. Na altura brincava só com as guitarras que havia lá, com o baixo… A história é caricata, porque quando me fui inscrever, cheguei lá na recepção e perguntaram-me qual o instrumento que eu queria estudar. A minha mãe não disse nada, queria deixar que eu escolhesse, mas realmente toda a gente achava que eu iria escolher ou piano ou guitarra, porque eram os instrumentos que eu estava habituado a ver, ouvir e experimentar. Mas eu pedi para me mostrarem quais os instrumentos que eles tinham como hipótese, e apesar de nunca ter sequer visto um contrabaixo, foi o que acabei por optar. Não vejo nenhuma explicação para ter escolhido o contrabaixo, acho que foi aquela coisa de…
…o universo a fazer as escolhas por ti?
Não, acho que foi só uma coisa engraçada, de eu chegar lá e ver um instrumento tão grande. Visualmente, aquilo chamou-me à atenção e eles mostraram-me lá um vídeo ou outro e achei graça ao som. Foi claramente aquela coisa de ser criança e ficar fascinado com algo que é novidade. Eu acho que foi isso. Na altura foi estranho para os meus pais, ficaram tipo: “O gajo nunca viu um contrabaixo, agora quer tocar contrabaixo.” Até porque os meus pais são pessoas que ouvem bastante música, digamos, mainstream — desde Supertramp ao fado. E é no jazz e na clássica que provavelmente vais encontrar mais o contrabaixo, portanto eu nem tinha muito essa referência. Mas pronto, lá entrei em contrabaixo, vou para o ensino clássico e faço em paralelo com a escola normal. Só que o conservatório vai ali para um sítio em que te começam a afunilar sempre para a música clássica, e eu estava numa de… Pronto, aquilo realmente deu-me uma série de coisas técnicas e teóricas que são interessantes, mas não me fascinava muito porque não era o tipo de música que eu ouvia.
Mas acabaste por fazer esse percurso até ao 12º ano de escolaridade?
Sim, fui estudando no conservatório em paralelo. No secundário escolhi a área de economia, gostava de estudar e era bom aluno, mas a verdade é que a música já morava em mim. Além da escola e do conservatório, também fui tendo as minhas bandas de garagem, tocava em bares… E tinha muito aquela cena de que mesmo que fosse tocar um cover, eu queria fazer a minha própria versão — dar-lhe o meu solo, um arranjo diferente… No meu subconsciente já começava a haver esta ideia de criar e improvisar, que era algo que no conservatório não me puxavam muito para fazer. Então eu meio que separava as coisas: o conservatório é o sítio onde eu vou aprender as escalas e os acordes, mas depois a música para mim é outra coisa completamente diferente.
É um bocado como eu ir à escola aprender a escrever, mas ninguém me ter ensinado a escrever sobre música, não é? Na escola só me ensinaram as regras básicas, a gramática…
Sim, é só um veículo. E por causa disso há muita malta que desmoraliza, perde um bocado a pica, alguns até se chateiam, de certa forma, com a música. Eu não quero estar aqui a fazer uma crítica, até porque eu também não sei a solução, mas o ensino das artes no geral em Portugal não é muito versátil, não é muito abrangente. Acho que tem a ver com muita coisa, a começar pelo facto de sermos um país que não aposta muito na cultura. Por exemplo, tu podes gostar imenso de rock. Eu não estou a dizer que tem que existir uma licenciatura de rock, mas a verdade é que cá só podes seguir estudos na clássica ou no jazz.
E o ensino formal do jazz até é uma coisa bem recente por cá.
Verdade. Mas tu olhas para outros países da Europa — isto para nem ir à América ou ao Reino Unido — e vês que realmente há cursos de, por exemplo, songwriting, de produção, de beatmaking, de música étnica… Cá não temos nada disso.
Então tu paraste os teus estudos no secundário ou seguiste para o ensino superior?
Eu segui para a faculdade, para a Escola Superior de Música de Lisboa, em Contrabaixo Jazz. Aí entra em cena o Adelino Mota, que mais do que um músico e maestro é um agitador cultural ali da zona, responsável por uma série de coisas que acontecem ali, como o festival Jazz Valado. Ele já andava mais ou menos atento ao meu percurso, no sentido em que era amigo dos meus pais e conhecia-me do conservatório também, porque o filho dele andava lá. Às tantas, ele organizou ali no CCC – Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha uma espécie de masterclass, um workshop de big band, em que tinha uma série de músicos convidados. Tinha o André Sousa Machado, tinha o Daniel Bernardes, o Rubenda Luz — uma série de malta do jazz mais a sério. E o Mota disse-me: “Pá, tu sabes ler, és um gajo com facilidade auditiva, vem aí, até pode ser que aches engraçado, porque eu vejo-te aí a tocar guitarra, vejo-te a tocar outras merdas, e claramente és um gajo com interesse em muita música.” A verdade é que eu não tinha mesmo awareness do que seria jazz, mas lá vou eu com o contrabaixo e tal. Passaram-me assim um repertório de big band e eu claramente nunca tinha tido contacto com aquilo. O que me marcou nem foi tanto a coisa técnica, mas mais o contacto com aquela música. Eu estava muito habituado ao formato de canção, dos Pink Floyd aos King Crimson, que mesmo sendo bandas mais fora, não deixam de ter um quê de canção, com uma estrutura que era perceptível. Eu sabia identificar o verso, o pré-refrão, o refrão… E no jazz não percebi isso de imediato, porque há alguns temas que são muito lixados de perceber. Quando ouvi o Kind of Blue foi a primeira vez que eu percebi que realmente havia uma melodia, uma conversa de solos em torno dessa melodia e depois voltava à mesma melodia base, como se fosse um refrão. Quando se fez essa luz eu comecei a interessar-me realmente. Às vezes, na música clássica, encontras malta que diz: “Ah, isso é uma grande seca”. As pessoas dizem isso porque não têm conhecimento para perceber nada, então claro que é uma seca. Se tu não percebes nada do que está a acontecer, é claro que se torna chato. E eu, ao início, quando ouvia o Coltrane, achava… Nem era chato, era só uma coisa que eu não entendia de jeito nenhum e então ficava sem saber muito bem o que é que estava ali a acontecer, então também não tinha grande interesse em praticar aquilo. Mas isso foi mudando consoante eu começo a estudar harmonia e começo a perceber essa dinâmica do jazz. Fazendo uma analogia com o que é uma conversa: quanto mais tu sabes sobre um assunto, mais tens para dizer. E quando eu percebi essa cena tive um grande interesse em começar a ouvir muitas coisas. Não sei se conheces um gajo que é o Aurélien, que na altura também estudava lá no conservatório, mas ele começou a passar-me assim uns discos, desde Bill Evans a, sei lá, Richard Davis, um contrabaixista assim marado. Também Keith Jarrett, coisas muito dispares, mas tudo dentro da música improvisada. Eu aí comecei realmente a ganhar, mais do que gosto, um entendimento por aquilo. E comecei a querer tocar aquilo também. Depois vou para a Superior de Música e aí sim, tenho contacto directo com o Afonso, o Leonardo, o André Fernandes, o Nelson Cascais, o João Paulo, essa malta toda. Aí já estava muito inside, pelo menos na cena de ouvir jazz e de querer participar de alguma forma nesta forma de música, mas sempre paralelamente a manter esta coisa de gostar muito de tocar guitarra e de tocar o solos dos Scorpions ou do “Sultans of Swing”. Acho que por eu nunca ter abandonado esse outro mundo ganhei o meu próprio som, depois as pessoas podem gostar ou não, mas isso trouxe-me o meu “eu” artístico.
E é depois de concluíres essa formação superior que começas a tocar…
Eu vou-te contar sobre o meu trajecto na Superior de Música. Sempre me irritou um bocado a coisa do ensino da música formal. Acho mega importante e eu tive aulas de tudo e mais alguma coisa, mas depois eu não acredito muito na cena do… Tirando a parte técnica, que efetivamente é mecânica, em que te explicam que aquela tecla é o dó, tu pisas e é o dó… Tirando isso, há uma falha muito grande naquilo que é a liberdade de expressão. Eu fiz o conservatório quando era adolescente, mas na ESML já era adulto e sabia muito bem o que queria fazer dentro das coisas infinitas que é a música. Eu já estava a descobrir como é que isto podia resultar para mim. Então era estranho, por exemplo, ter de acordar a uma quarta-feira para ter uma aula de Big Band de Bebop às 11h00, que era tudo o que eu não queria. Eu queria era estar a gravar uma cena, sei lá, com a Carolina Deslandes, por exemplo. Era uma altura em que já estava a pagar a minha vida. É claro que quando não pagas a tua vida, acho que é mais lixado pensar nisto, tipo: “Isto é muita giro, mas como é que eu pago a renda com isto?” E como eu já estava a pagar a renda com isto, estava mais na cena de querer decidir tocar o que me apetecer.
Então não concluiste esses estudos?
Não, eu saí. Tenho a matricula congelada e saí já no final do terceiro ano. Na verdade só me faltam tipo duas cadeiras, que é uma coisa que à minha mãe vai ficar sempre… Ela tem aquela cena de querer que eu tenha o papel, e eu percebo, mas eu também não preciso dele. É claro que ela depois chegou a ir ver-me aos concertos e percebeu, então deixou de falar nisso. Se calhar, daqui a 10 anos vou lá e até acabo. Eu sou assim, tenho essa cena. Se eu não estou a acreditar e a sentir aquilo… Não era por preguiça, até porque eu trabalhava ainda mais quando não ia à escola. Chegou a um ponto em que ir lá já só me atrapalhava, percebes? Atrapalhava a vida que eu queria fazer e que eu queria levar. Eu queria ir aos fados até às 5 da manhã e estar lá a olhar para o Proença a tocar viola. Não queria ter de acordar passadas duas horas para ir a uma aula de História que na altura não me interessava. Isto não vem de um sítio de eu achar que a História do século XX é uma grande merda. Vem de um sítio de eu não querer acordar à terça de manhã para ter aquela aula naquele dia. São coisas diferentes. Até porque eu, depois em casa, se calhar até vou ler sobre a História do século XX.
Fala-me desse mergulho na profissionalização. Tu, de repente, ao mesmo tempo que estás a fazer os estudos, começas a perceber que o teu telefone não pára de tocar?
Comecei naquela coisa de ser muito activo na cena das jams. Estava sempre todos os dias nas jams, todos os dias nos fados. Estava todos os dias em todo o lado.
E a tua cara começa a ser reconhecida?
Sim. Eu ia aparecendo e as pessoas iam dizendo: “Olha, este gajo parece bom a fazer isto”. Demonstrava, acima de tudo, que não estava ali por nada mais do que pela música. Eu nunca fui para os fados porque queria ter muitos concertos. Fui para os fados porque eu gosto mesmo de ouvir fado e gosto de perceber como é que uma viola toca com um baixo no fado. Eu não estava lá só para dizer que tocava todos os dias. Até porque eu quase nem toco nas casas de fados, é muito raro. Toco com fadistas como o Ricardo Ribeiro, às vezes com a Ana Moura.
Quando tocas nos fados, vais de viola?
Não, só toco contrabaixo no fado, assim como na música improvisada, em que 90% das vezes toco contrabaixo.
É na pop que tocas mais guitarra?
Sim. Entretanto, numa das jams da Fábrica do Braço de Prata, há um dia em que aparece o Paulo Carvalho. Ele ia lá às vezes, porque é um gajo que gosta de música improvisada. Mas houve uma vez em que foi com o Agir, numa noite em que eu estava lá a tocar com o Zamora, com o Toscano e essa malta. O Agir gostou especialmente de me ver tocar, até filmou e contactou-me no Instagram. “Achei porreiro o que tu estás a fazer. Gostei de te ouvir.” Ele estava ali naquela fase de escrever as canções para o álbum Cantar Carneiros, um disco que ele gravou e que evoca aquela cena da canção portuguesa, mais ligada até à onda do pai dele. Então o gajo estava interessado em reunir assim uma malta que tocasse música improvisada, à procura daquela instrumentação de trio de piano jazz. E tinha aquela cena de querer reunir uma malta nova e não ir tanto aos nomes mais óbvios, alguém que estivesse interessado em gravar para as canções que ele andava a fazer. Começámos a dar-nos bem. Depois, como deves saber, ele é um gajo que escreve e produz para quase toda a gente. Ele tanto escreve para a Ana Malhoa e para o David Carreira, como para ele próprio ou para o Diogo Piçarra. E pronto, as coisas aconteceram. Ele tem o próprio estúdio e tem, digamos, a própria empresa. E ao reparar que sou multi-instrumentista, percebeu que eu numa tarde conseguia limpar quase um álbum inteiro. Eu já tocava muita da aquela linguagem, depois tinha a cena de tocar baixo, contrabaixo e guitarra. Para ele era muito bom, porque ele fazia o beat e a parte harmónica tratava eu. Fiquei ali um bocado tipo o braço direito dele. Naturalmente, como ele escreve e produz para tanta gente, tive acesso a essas pessoas todas ali numa fase inicial por causa dele. Era tipo: “Olha, hoje vem aqui gravar o Fernando Daniel”. E pronto, ficava a conhecer o Fernando Daniel. “Hoje vem o Slow J. Hoje vem não sei quem”. Foi um bocado essa a onda. Depois é aquela cena: se tu fizeres um trabalho consistente e que a malta admira, vão-te contactando individualmente. Às tantas, do Agir passei a ir por aí fora.
Sem querer mergulhar muito nisso, porque também estamos aqui para falar do teu álbum, mas essa quantidade de trabalho que te ia aparecendo não é uma questão de sorte.
Não, não.
Se esse trabalho ia ter contigo, era porque tu tinhas as ferramentas correctas para o executar. Isso pode ser uma sedução e uma armadilha, no sentido em que se tu tens sucesso a fazer isso, podias não sentir a necessidade de fazer a tua própria coisa. Qual é o momento em que tu decides que também queres trilhar um caminho com o teu próprio nome?
Eu ainda sou bastante novo, mas eu só concretizei o primeiro álbum aos 26 porque foi quando eu senti que já reunia as condições para gravar um bom álbum. Há uma cena gira — ainda noutro dia estava a falar disso com o Ricardo Ribeiro — que é a malta da minha geração, e mais novos até, ter muito essa coisa do saberem fazer tudo. Existe Internet, eles vêem um vídeo e sabem logo fazer uma coisa. Mas porquê é que fazem isso? Saber o porquê é que é fodido. A maioria da malta agora não sabe porque é que faz as coisas. Eu próprio às vezes penso nisso. “Fiz aquilo porquê?” Um gajo vê um vídeo de alguém no TikTok a fazer o pino e fica a saber fazer o pino. Mas porque é que que o faz? Aí é que está a cena. Eu estava sempre numa de querer gravar as minhas merdas, isso já era uma coisa que eu tinha desde que comecei a tocar. Tive as minhas bandas e sempre quis compor as minhas coisas, mas depois começou aquele pensamento de: “Pá, eu toco estes instrumentos todos e mexo-me nestas linguagens todas, mas o que é que eu sou?” Daí vem a pergunta de “que álbum é que eu poderei arquitetar?” Primeiro pensei naquela cena mais básica, que é e assumir-me como contrabaixista de jazz e fazer um trio, um quarteto ou um quinteto. E pronto, escrevo música para essa formação, uma coisa assim mais ortodoxa. Mas depois… Pá, não era que isso fosse batido, mas eu não me revia muito nessa cena de o meu primeiro projecto ser um trio, aquela coisa “mais do mesmo”. Eu realmente achava que havia aqui qualquer coisa que poderia acrescentar. Eu não queria fazer um disco de música improvisada, isso era logo uma coisa que eu tinha assente, porque senão também era muito confuso misturar isso com a coisa das canções ao mesmo tempo, ia dispersar muito. Então fixei-me na cena de fazer um disco de canções que conseguisse entrar na caixa do jazz ou da música improvisada. Também sabia que queria muito fazer um vinil, e um vinil tem 40 minutos. Comecei neste brainstorm, a despistar coisas. “Pá, tenho aqui 20 minutos de cada lado, posso ter de um lado música acústica e do outro a cena electrónica, como eu estou muito ligado aos beats e à parte da produção.” Mas depois comecei a pensar numa cena que podia ser gira: “Vou escrever umas oito peças e para cada peça escolho uma formação diferente, que representa esta coisa de eu me mexer em muitos meios. Então cada uma tem uma cor diferente consoante as pessoas que participam. Isto não foi à toa. Eu não escolhi só os all-stars que tocam muito bem e juntei-os. Não. Isto foi uma coisa que eu pensei previamente, tipo: “Vou chamar o Laginha para fazer o quê? Não é só porque ele toca muito bem piano, porque isso toda a gente sabe.” Aquela peça em que eu nem toco, que só escrevi e produzi, com o Barradas e com o Toscano, é uma coisa com um beat, e logo aí já é game changer, no sentido em que não existe eles a tocarem por cima de um beat. É como ires ao Lux e eles estarem lá a improvisar por cima de um beat. O que eu acho giro é que todos se conhecem, são todos históricos do jazz de gerações diferentes, todos se admiram entre si, mas de certa maneira nunca tocaram juntos nestas formações. Por exemplo, o Mário Laginha nunca tinha tocado com o Salgueiro, com o João Moreira e comigo em quarteto. E aí, como é música improvisada, é uma coisa que é nova logo por si só. E isso reflecte-se na música, naturalmente, porque ela vive das relações pessoais.
Passa-me em revista as pessoas que tu convocaste para o teu álbum. Já mencionaste o Toscano, o Barradas, o Laginha…
Também tenho o Zé Soares, o André Fernandes, o Tomás Marques, o Alexandre Frazão…
Foste à seleção nacional escolher os melhores, não foi? [Risos]
Fui [risos].
Não foste à 3ª divisão buscar ninguém?
Ou seja, eu fui à divisão em que eu jogo.
Precisamente.
Isto pode soar pretensioso, mas…
Mas é o que é!
É isso. É o que é. Se eu costumo jogar com eles, não ia chamar outros, não faz sentido. E eu escolhi porque realmente sinto que eles aqui e ali se encontram na mesma visão da música que eu, por mais diferenças que possamos ter. São pessoas de cabeça aberta, todas elas. Tu conheces todos estes convidados, tenho a certeza, e sabes bem que nenhum deles é fechado. Quem vê line-up do disco encontra lá 20 dos melhores — se não os melhores — que já fizeram isto cá. Mas o disco não é sobre isso. Eu aqui não tenho os gajos a fazer um ganda solo como fazem em todo o lado. Não. Eles estão ali a ser postos numa situação…
Procuraste almas gémeas para fazer o disco?
Eu acho que sim. Acho que foi isso.
E como é que foi o processo de feitura? Houve momentos em que os convocaste para estúdio, chegavas e tinhas a composição para lhes entregar?
Não. Aquilo tem quatro faixas que partem de um beat que eu fiz previamente. Voltando à faixa com o Barradas e com o Toscano, por exemplo, para essa especificamente queria gravar um videoclipe. Pus os dois numa sala com o papel à frente e a solar por cima daquilo. Fizeram dois, três takes e foi filmado. Esse é o conceito que eu queria que eles chegassem, lá está, aquela minha ideia base, que era mesmo como se eu tivesse chegado ao Lux e estavam lá o Barradas e o Toscano a fazer solos por cima do beat que estava a dar. E quis documentar isso em vídeo. As outras faixas de jazz, digamos, mais concretas foram em live take, lá no Vale de Lobos. Nunca ensaiei, porque acho que a música não era complicada tecnicamente ao ponto de se ter que ensaiar, principalmente para os gajos que tinha a tocar comigo. Isso ia fazer perder aquela cena da novidade. Quando tu falas muito sobre um assunto, às tantas vais-te repetir em relação à primeira vez em que falaste sobre isso. Eu sei que vou dar o papel ao Fernandes, por exemplo, que é um improvisador nato, e o primeiro solo que ele fizer provavelmente vai ser o mais especial, e eu queria que fosse assim. Eu sabia que no primeiro e no segundo take é que ia sair a magia. Se eu tivesse ensaiado acho que não ia ser tão especial.
Falemos agora da estética. Podias ter escolhido uma linguagem mais moderna, no sentido de… Até porque dialogas com essa gente — falaste já do Slow J, do Agir, etc. Podias ter uma coisa mais vincadamente hip hop com malta do jazz a solar em cima, podias ter seguido um caminho mais formal, acústico, ortodoxo, etc. Mas o teu disco, pelo que eu escutei, funciona ali num terreno meio ECM, fusão, que é um terreno assim, que não é muito explorado por cá. Não há muitos exemplos desta sonoridade a ser feita cá.
Para o bem ou para o mal, isso não existe. Acho que posso dizer isto.
Quais são as tuas referências? Por que bússola te guiaste?
Eu gosto sempre de dizer isto antes de responder este tipo de perguntas: tu às vezes vês um casaco que tu gostas muito, mas que não o irias vestir tu, não é? E eu tenho esta cena que é: dentro das mil referências que eu tenho, há duas ou três que claramente são mais aquilo que eu depois faço. Tipo o Aaron Parks. Eu sinto que há muitas coisas do Aaron Parks na minha música, principalmente do disco Invisible Cinema. Tem aquela cena que é meio rock, meio Radiohead, de certa maneira, não é? Vai buscar assim uma cena do anos 90 que essa malta ouvia muito. Tal como o Brad Mehldau, que também vai muito por aí. Isto tem muito do Fellowship do Brian Blade, que também tem esse lado do blues e do rock. Também sinto que tenho muita coisa de Portugal, a cena do fado, naturalmente, das melodias portuguesas. Também tem muito do João Paulo, do Mário e do Ricardo Dias. Eu ouvi — e ouço muito, cada vez mais — o Fausto, o Sérgio Godinho, o Zeca… Mas muito o Fausto, e até o Janita, numa cena ainda mais rebuscada. O Janita tem cenas muito rebuscadas que a malta não está a par. Aquilo é complexo e vai até ali para umas cores que eu acho que não existem cá noutros artistas. Ate mesmo um Jorge Palma, que não deixa de ser um gajo que faz canções mas que abre ali para outros sítios. Depois também tenho um bocadinho grande de Toninho Horta, do Milton e de Minas Gerais, tanto que há lá uma faixa com o Frederico Heliodoro, que vem muito de eu ouvir o Toninho Horta, o Milton e o Clube da Esquina e uma série de outras coisas. A malta normalmente em Portugal está muito virada para o Brasil da bossa nova, do MPB e do samba, e Minas Gerais é um mundo muito à parte.
Daí o Milton ter tido o impacto que teve nos Estados Unidos — no Wayne Shorter, no Herbie, na Spalding, enfim… E ainda tem!
Sim, ele continua a ser uma referência para essa gente toda. A harmonia é muito evoluída e impressiona um Herbie, que é dos níveis mais altos da música.
O Ed Motta referia-se a essa música brasileira como “música de harmonia rica.”
Exactamente. É muito sofisticado. Às vezes parece que nem é lógico. Há coisas que o Milton e o Toninho fazem que vêm mesmo do coração.
As regras não apontariam para aí, não é? [Risos]
Mas isso para mim é que é saber de música.
Como é que este disco vai poder ser apresentado num palco?
Por questões óbvias, nunca iria levar estas pessoas todas, porque não dá. No máximo, o que eu vou fazer é… Agora em 2026 vou certamente levar isto para a estrada. Gostava de fazer dois concertos de apresentação, um no Norte e um cá em Lisboa. Nessas datas sim, tentaria levar o máximo de pessoas que conseguisse, até pela celebração do disco. Mas depois, em termos concretos de ir a festivais e para programação normal, o que eu estou a propor é um quinteto, em que toco o Promessa com o Lencastre, o Fernandes, o João Paulo e o Toscano. Primeiro porque é um quinteto que é versátil, a meu ver. Tem o piano e tem a guitarra, depois tem o Fernandes que é um gajo que consegue abordagens com efeitos e dá para fazer outras cenas do disco que eu tenho assim mais “fora”. Tens o Toscano que é um gajo super versátil. Todos eles são muito versáteis e fica um grupo bastante abrangente. Depois tenho um outro formato também para propor, eventualmente, que é o quarteto com o Mário, com o João Moreira e com o Salgueiro, que também acho que é interessante. É malta que vai a muitas coisas dentro da música improvisada.
Tu desenhaste-me aí duas formações, um quarteto e um quinteto, só com feras. Tu és sempre o mais novo destas formações. Como é que esta gente que vem desse status quo do jazz português olha para um jovem leão que fala várias línguas, que toca em diferentes contextos? Como é que tu sentes que o jazz enquanto comunidade olha para ti?
Ainda estou a descobrir, porque só há um mês é que lancei o disco. É verdade que eu já ando aqui há seis ou sete anos, mas só quando lanças em teu nome é que vais perceber isso. Aliás, há uma série de pessoas que vieram ter comigo assim: “Ah, a tua música é boa, nunca diria.” Havia pessoas que pre-concebiam uma coisa pejorativa de mim — “é o gajo que toca kizomba e fado e não sei o quê, isto não vai sair nada de sério” — e depois deram-me props. Ainda estou a perceber qual é o feedback, porque saiu há muito pouco tempo, mas sinto que a malta está a deixar esse estigma de me olhar como um gajo que está a tentar, mas sim como um gajo que é concretizador e que leva isto com seriedade. Pá, acima de tudo, eu gosto mesmo é de música.
O jazz americano já resolveu isso há muito tempo. Tinhas as grandes feras a tocar com malta do rock, com malta do hip hop, com malta da soul… Esse é um problema que o jazz português ainda precisa de resolver, de entender que músicos com as tuas capacidades podem mover-se em diferentes territórios?
100%. Por exemplo, o Mário Delgado e o Alexandre Frazão dizem que eles quando tinham a minha idade era ainda muito pior. Eles irem tocar com a Lena D’Água, com o Pedro Abrunhosa ou com o Rui Veloso era mesmo visto como uma coisa muito negativa pelos seus pares. O que é ridículo. Primeiro porque estamos a falar de música que, gostes ou não, é muito bem feita e muito bem tocada. É factual. É unânime. Era só preconceito. Eles dizem que sofreram isso uma carreira inteira e que acham que agora até está bastante melhor, porque aparecem mais gajos como eu que não têm amarras e que fazem questão de dizer que não as têm.
E há muito mais música escrita em tua casa, dentro da tua gaveta, para tu lançares no futuro?
Sim, eu faço temas mesmo… Faço, nem que seja, uma ou duas ideias por dia, quase todos os dias. Nem que seja um bocadinho aqui, um bocadinho ali, um verso, ou um bocadinho uma passagem específica.
Qual é o teu método? Como é que guardas isso? Está no telemóvel? Está numa pasta no computador?
Tenho tudo no dictafone e meto nomes, que é muito importante quando tu fazes em grande quantidade, para estares a catalogar e saberes do que se trata.
Então olha, pega aí no teu telefone e, para terminar, lê-me dois ou três nomes de coisas que tu tens aí arrumadas.
Deixem-me ver aqui… Epá, tenho aqui uma série de nomes em polaco, porque eu agora vim de uma tour com a Lura na Polónia e achei giro. Tenho, por exemplo, “Krasnala Chords”, que é os acordes que eu fiz nessa cidade, para me lembrar do nome da cidade. Pode ser um nome giro para dar ao tema, estás a ver? Tenho aqui uma que diz “Ideia Milhanas Refrão”. Tenho uma “Aaron Parks Type Shit” [Risos]. Tenho estas coisas assim.