pub

Fotografia: Casota Collective
Publicado a: 21/09/2022

Um compromisso com o cosmos.

Rodrigo Brandão & Sun Ra Arkestra no ComPasso de Música: espírito não é algoritmo

Fotografia: Casota Collective
Publicado a: 21/09/2022

Na natureza, diz o velho adágio, nada se perde e tudo se transforma. Os corpos que se vão transformam-se em energia espiritual e por isso também permanecem, resistem e acrescentam. E isso é fácil de entender quando se pensa em música: os artistas legam registos ao mundo que os eternizam e as suas vozes continuam vivas de cada vez que alguém pousa uma agulha num gira-discos ou faz play numa aplicação. Espírito não é algoritmo. E é a isso que Rodrigo Brandão se refere quando exclama “cada um de nós escolheu estar aqui, agora”, no palco do Teatro José Lúcio da Silva, em Leiria, onde, no passado domingo, se pôs da melhor forma ponto final numa longa e aventureira jornada que envolveu a cidade do Lis em notas sonoras de todas as cores por mais de 24 horas com a iniciativa ComPasso de Música*.

Embora a sala não estivesse cheia, estava suficientemente preenchida para que a apresentação do exclamador brasileiro à frente de uma versão muito particular da Sun Ra Arkestra se possa considerar um sucesso. Afinal de contas, o espírito do mais famoso músico de Saturno – ou o do seu sucessor Marshall Allen, ausente devido a problemas de saúde, mas igualmente presente de forma astral: o concerto foi-lhe, naturalmente, dedicado – não possui, entre nós, o mesmo apelo popular que justamente se atribui a nomes como os de Paulo Carvalho ou David Fonseca, que protagonizaram os momentos de maior afluência desta iniciativa.

Além do mestre de cerimónias conjurador de espíritos e declamador de verdades universais Rodrigo Brandão, viajante doutros espaço vindo do Brasil e cientista criador d’Outros Mashup, esta versão da Arkestra incluiu os portugueses Pedro Melo Alves (bateria) e Luís Vicente (trompete), o já português e também ainda brasileiro Felipe Zenícola (baixo eléctrico), o já saturniano e também brasileiro Elson Nascimento (percussão), o cidadão afro-espacial de Baltimore Knoel Scott (saxes barítono e alto) e o viajante do mundo que começou em São Paulo e actualmente ressoa entre os arvoredos místicos de Sintra Yedo Gibson (saxofone tenor). Gente de todo o lado onde a música é livre e, naquele fim de tarde de domingo, dali mesmo, daquela terra de História e monumentos, de presente e de futuro – afinal de contas, quando a feérica apresentação chegou ao final quem exclamava mais alto “só mais uma” não contava, certamente, mais de 10 anos de idade… Imagine-se onde estará daqui a duas ou três décadas…

Sentado à mesa como poeta-pessoa, Rodrigo Brandão começou por chamar a si os espíritos, ligando a Amazónia a Saturno e aos confins da galáxia por hi-fi, uma alta-fidelidade aos preceitos cósmicos originais de Ra aqui afinados com tremor tropical. Os músicos entraram consigo no transe e daí não voltaram a sair. Nascimento, no surdo, é, talvez, a mais discreta presença, mas é, igualmente, a mais forte ligação ao núcleo, ao magma da Terra que agita a superfície. E aí, o jogo entre o baterismo erudito de Melo Alves, em nítido topo de forma, tremendamente enérgico e resolutamente inventivo, como sempre, e a circular elegância de Zenícola, hipnoticamente repetitivo e abissalmente profundo, foi decisivo para a arquitectura erguida, verdadeira pirâmide de Gizé em imponência, autênticas linhas de Nazca na expansão. Por cima disso, as trocas entre o basso profundo de Scott – que pontualmente também soltou pó de estrelas com o alto – e o efervescente trompete de Luís Vicente, em nítido modo reverente, mas nem por isso menos dotado de arrojo, ditaram o tom geral. E Gibson foi o coringa, o agente livre que circulou entre os outros músicos, como cobra pelo meio da folhagem, acentuando um riff aqui, descolando para um solo estratosférico mais adiante. O notável, no entanto, é que esta fanfarra de guerreiros da paz soou coesa, una e sólida.

A sobrevoar tudo isso estiveram sempre as certeiras palavras de Brandão, um verdadeiro guia espiritual que não se cansou de gritar liberdade e amor, e que, em determinado momento, depois já de ter levitado no palco, levantando-se pela força da mensagem, desceu à plateia para relembrar cada um dos presentes da nossa condição de astros eternos: “você é sol, você é estrela. Sol. Estrela. Você é sol e você? Estrela!” 

E porque todos temos um compromisso com o cosmos, todos somos presentes e dotados de brilho próprio. Os que tocaram e declamaram. Os que aplaudiram. E os que, de dimensões paralelas, se juntaram à dança, como Sun Ra ou Marshall Allen, o mestre a quem esta celebração curativa foi dedicada. 

Amanhã, a Arkestra aterrará em Coimbra com nova tripulação para actuação no Salão Brazil que marcará o arranque do Jazz ao Centro 2022: Rodrigo Brandão, Elson Nascimento e Knoel Scott terão dessa vez a seu lado Vincent Chancey, Rodrigo Amado, Hernâni Faustino, Carla Santana e João Valinho. Outro momento imperdível, pois claro.



*Esclarecimento: o autor deste texto integrou a programação ComPasso de Música na qualidade de DJ tendo na tarde de domingo assinado um set de jazz num espaço público da cidade de Leiria.

pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos