pub

Fotografia: Eliot Lee Hazel
Publicado a: 16/08/2021

As múltiplas vozes do artista carioca a ecoar no sucessor de Cavalo.

Rodrigo Amarante: “O amor é a força mais política que existe”

Fotografia: Eliot Lee Hazel
Publicado a: 16/08/2021

Rodrigo Amarante gosta de palavras e de trabalhar sobre o seu significado. As palavras são os tijolos do pensamento e a matéria-prima que usamos para pensar as relações humanas que estabelecemos ou que queremos construir. Foi a partir de palavras que falámos de Drama, o álbum luminoso e emotivo que acaba de nos oferecer e ao qual nos rendemos à primeira escuta. Um álbum que nos faz ganhar tempo, interrompendo e baralhando o ritmo acelerado do quotidiano. Um álbum que abre espaço para falar de drama, amor e liberdade, palavras que se entrelaçam com uma música que é poética, dramática e política. Uma música erguida através de arranjos minuciosos que compõe uma generosa encenação sonora, que poderemos ver ao vivo no Porto e em Lisboa, a 18 e 19 de Abril de 2022. 

Rodrigo recebe-nos no Zoom, a vários milhares de quilómetros de distância, mas nem por isso deixa de nos acolher como se estivéssemos realmente em sua casa. O ponto de partida é o novo disco, sendo a partir dele que o músico nos fala da sua pulsão por desconstruir o mito idílico do criador que ambiciona fazer da sua arte a expressão mais pura do seu ser. Em vez disso, prefere falar-nos em vozes, em ecos de múltiplas vozes que o rodeiam, que nos rodeiam, e que nos ensinam a viver em conjunto. 

Drama é um disco a contraciclo com o pessimismo que propõe um diálogo sobre as nossas máscaras e o que está por trás delas; sugere uma conversa sobre a liberdade enquanto celebração da interdependência; coloca-nos a pensar sobre a força política do amor. No meio de tudo isto a música que, como aqui lembra, tem uma força imensa cada vez que faz mover os corpos em conjunto e sempre que amolece o músculo do coração. 

Um disco encantador, tanto complexo como intuitivo, falado em duas línguas, que vive do som e da palavra, dos arranjos e das narrativas, da dor e do calor, da razão e da fé. No fundo, da arte da vida que é confusa, embaraçada, por vezes dolorosa, mas cheia de possibilidades se a agarrarmos, se a construirmos, se a transformarmos em conjunto. De tudo isso falámos, e de muito mais, na entrevista que se segue. 



Muito obrigado, Rodrigo, por nos receberes. É um gosto falar contigo e do teu trabalho que me emociona muito. Tu numa entrevista recente disseste que “as palavras são os tijolos do pensamento”, então eu queria falar contigo sobre palavras nesta nossa entrevista…

Já gostei, João. Vamos a isso.

A primeira palavra é a palavra “tempo”. O tempo é algo muito relativo. O último álbum que tu lançaste foi há sete anos e quando se pensa no tempo que passou entre os dois discos podíamos formular muitos discursos sobre o tempo da criação, o tempo do criador, o tempo da indústria musical, o tempo social, o tempo político, o tempo que impomos a nós mesmos, o tempo que nos é imposto. O que mudou neste teu tempo enquanto criador e enquanto pessoa? O que motivou o impulso para fazeres este segundo trabalho nesta altura? 

É uma pergunta complexa [risos]. Sete anos é uma órbita, pelo menos das células que nos compõe. Dizem que em sete anos tudo se renova. Então eu estava esperando que as células se renovassem… Esta minha resposta não tem nada de verdade, mas achei boa [risos]. É claro que eu respondo frequentemente à pergunta: “Mas porque demorou tanto? Porquê outro disco agora?”. Eu entendo a pergunta porque aqueles com quem eu falo sobre isso têm na cabeça uma coisa do calendário comercial. Fica um pouco parecendo que ou não consegui fazer um disco antes, ou não quis, ou estava fazendo outras coisas que não são notícia, que é o mais próximo da verdade. Eu não me torturei por conta disso porque fiz tantas outras coisas, algumas que sim, são notícia, como o tema do Narcos ou um livro de artes… Quer dizer, notícia… Notícia em potencial [risos]. Mas o que mudou é difícil responder. É capaz se ver isso no disco, porque o disco é um retrato. Apesar de ter sido lançado agora tem músicas que até são anteriores ao Cavalo, pelo menos a semente delas. Então funciona assim como um apanhado. 

Ainda sobre essa ideia de tempo, uma coisa que senti foi que o próprio ritmo do álbum procura também um tempo próprio, um tempo de contemplação, uma disponibilidade para receber, um tempo de calma, para realmente parar e procurar alguma coisa de que precisamos… 

Talvez seja mais a procura de espaço do que de tempo porque a música é tempo. A música é uma coisa que acontece simplesmente no tempo, porque é invisível. Quando se entra nessa coisa do tempo da música, o que eu tento inventar tem a ver com o espaço porque com sorte espirra nos outros sentidos. É apenas música, mas é um lugar. Eu tentei fazer com que este disco fosse muito mais um espaço, um lugar onde se pode habitar por um determinado tempo que cada canção tem. 

Era um pouco isso que estava a tentar dizer. Para mim foi um disco que me obrigou a parar realmente, entendes? O ritmo acelerado do tempo social, dos fluxos de informação, da correria da vida… O disco ofereceu-me um tempo ou, se quiseres, um espaço para aproveitar. Ouvi-lo apenas. Não é “apenas”… É ouvi-lo. 

Eu entendo totalmente e é um elogio enorme. Quer dizer que o disco atrapalha outras coisas que estejam acontecendo ao mesmo tempo, o que é um elogio enorme. 

A segunda palavra que queria falar contigo é a palavra pandemia. Queria perceber um pouco como viveste a pandemia, o que é que ela tem significado para ti e em que medida se reflectiu na própria criação, construção e no diálogo que deu origem a este disco. Na discussão sobre a pandemia houve gente que sentiu que estávamos mais individualistas e isolados. Outras pessoas procuraram traços de união, de comunidade, de superação. Para quem está a trabalhar num disco nesta altura tão difícil da humanidade, como é que tudo isto foi vivido? 

Em relação ao disco, o que mudou foi planeamento. A ideia era fazer um disco ao vivo, como foi mais ou menos metade. Ou seja, ensaiar com banda, ir para estúdio e tocar junto na mesma sala. Como se fazia antigamente, sem a capacidade de editar, pegar numa coisa e botar noutro lugar. Aquilo que foi registado é o que vai ser e aprende-se a gostar daquilo que se fez. Eu tive de mudar de plano e voltar para esse meu quarto e fazer quase tudo aqui, tocar instrumentos que não sei tocar muito bem [risos].

Tens muitos instrumentos no disco e muitas vozes…

Eu adoro aprender outros instrumentos e tentar tocar saxofone, bateria, o que seja. Não sou muito bom, mas adoro, é um exercício incrível que revela os vícios que cada instrumento acaba impondo. Isso me deu um tempo e um isolamento que me levou aos arranjos do disco que tem a ver com o teatro que somos. 

Pois, a palavra seguinte era justamente a palavra “drama” que dá inclusivamente nome ao álbum. 

Pois. De uma maneira mais directa, o disco virou menos uma busca de uma voz pura, uma expressão da minha alma… Isso começou a parecer-me narcisista. Tornou-se muito mais uma busca do teatro que somos e que sou. Um exercício de vestir as máscaras que eu inventei para mim mesmo na transição para o ser adulto. Nós somos ecos, ecos de outras vozes, de tantas vozes que nos rodeiam e nos ensinam a viver. Para mim, a transição da criança para adulto tem mais clara essa construção e projecção de personagens, do que a gente acredita que é ser adulto. Nesse sentido, menos uma busca de uma impressão genuína e pura e mais um reconhecimento desses personagens, desses ecos que me compõe e com isso uma descoberta de algo por detrás das máscaras. Posso dizer para o mundo e para mim mesmo que sou uma coisa. Mas por trás disso há uma série de intenções. A gente é intenção, é pulsão de querer parecer de uma certa forma, de querer fugir de alguma coisa que imaginamos que somos. Por isso o título Drama

Há um cantautor e compositor português, o José Mário Branco, que infelizmente partiu há dois anos, que dizia que o que fazia não eram apenas arranjos, eram sobretudo encenações sonoras. Eu quando estava a ouvir o teu drama lembrei-me muitas vezes disso e pensava que também há no disco um grande trabalho de encenação sonora…

Adoro, João… Adoro essa expressão.



Estávamos ainda a falar da pandemia e do seu significado.

Sim, em relação ainda à pandemia, à palavra e ao que significa, eu fico pensando numa coisa que tem a ver com I Ching, que é o antigo livro chinês, que muita gente usa como oráculo, mas que são textos que transcendem isso. Um dos elementos, um dos trigramas, é o trovão. O trovão é a luz que na escuridão, por um instante, revela aquilo que não se podia ver. Então, no sentido histórico, eu vejo a pandemia como isso. Uma luz intensa que revela uma série de coisas. É claro que estou enxergando um lado que pode ser positivo do que é uma tragédia terrível, mas o nosso papel é espremer algo de útil, transformar isso em transcendência, aprender a ver que talvez não precisamos daquilo que imaginávamos que precisávamos, ou descobrir novas necessidades de que estávamos distraídos por causa da vida social. Mas essa luz também ilumina uma coisa talvez mais terrível que é a situação política e esse efeito colateral da revolução da informação que acabou sendo desinformação e com isso esse forçoso movimento do pêndulo político para a ultra-direita. 

Justamente a palavra seguinte que queria trazer era a palavra “liberdade”. Queria-te falar dessa palavra que está presente em várias canções deste disco, mas também porque na sequência do que dizias, tu vens do Brasil que é governado por uma pessoa que escusamos de adjectivar o que representa, e vives num país, os EUA, que foi dirigido por uma presidente que também escusamos de adjectivar o que ela representa para quem pensa o mundo com um sentido de justiça, de igualdade e de liberdade. São palavras minhas, mas porque é que para ti a liberdade é uma palavra pela qual vale a pena lutar e disputar o significado?  

Porque acho que nela reside uma luz que ilumina o que eu entendo como o paradigma e a ideia mais perigosa da nossa era. Quando você vai aos dicionários buscar o que significa “liberdade”, você encontra nos significados, não importa a língua, um verbete que sempre aponta para separação, desenvencilhamento, distância. Tem algum sentido isso por conta da história de opressão da humanidade. Desenvencilhar-se da opressão e de tudo o que é ruim…

Libertares-te das correntes…

É. Mas eu discordo. Estou-me apropriando da palavra querendo que ela signifique o oposto, querendo que a liberdade tenha menos que ver com a independência, mas mais com a celebração da interdependência. A identificação da liberdade com a independência espirra num conceito que tem a ver com capitalismo, com esse movimento ideológico e essa política que nos força a entender uma metáfora do mercado como a natureza, da sociedade como a natureza. Na minha opinião é uma falácia. É uma perversão da ideia darwiniana de evolução através da competição para justificar a dominação. A gente cresce com o ensinamento de que o meio último da evolução é a competição porque nos é dito que é assim na natureza. Eu discordo. Não precisa de olhar muito tempo para a natureza para ver a simbiose, a interdependência e a cooperação. A gente tem a fantasia de nos imaginarmos como predadores, como a águia careca, o tubarão e o tigre…

Tens até aqueles programas de negócios, como o Shark Tank, em que te imaginas no meio de tubarões… 

Exactamente. É como nos EUA o símbolo ser a águia. Mas nós, na verdade, somos vermes, bactérias, formigas, abelhas. Nós somos um organismo só. Eu tenho a impressão de que é muito mais bonito se sentir pequeno do que se sentir grande. Eu vejo as pessoas que se dão a trabalhos incríveis de subir a montanha e olhar lá de cima a vasta superfície do planeta e se sentir tão pequenas… Ou você chega ao pé de uma árvore enorme de proporções colossais e dá uma sensação leve, de alívio, de beleza, uma coisa quase infantil que nos vem. Eu acho que essa sensação é o entendimento com as tripas de que somos uma coisa só. Sentires-te grande é mais feio, é menos transcendente, é talvez angustiante. Você em pé em cima de um formigueiro vendo aquelas criaturas, é uma sensação estranha. A gente vem ao mundo e aprende a se entender separado das outras coisas. A criança entende “a minha mãe não sou eu, ela é uma coisa e eu sou outra”. A gente se lambuza com a separação, a criança entende que está separada, entende-se como indivíduo, sente-se especial, único. Tudo bem, tudo isso é bonito também, mas eu acho que, depois disso, a curva deveria ser o entendimento de que, no fundo, somos um só. Você pode cortar os meus dois braços, as minhas duas pernas, que são coisas que chamo de “eu” e eu ainda sou. Mas se você me cortar o ar, a comida, o amor e a amizade, eu deixo de existir. Liberdade para mim é fazer parte. 

Justamente a próxima palavra é a palavra “amor”, que está muito presente no disco. Amor e empatia são palavras importantes para definir o som que tentaste construir? Quando digo amor não estou a falar apenas no sentido do “amor romântico”, mas mais no sentido amplo da disponibilidade, da abertura e da partilha perante e face aos outros. 

Essa palavra me causa pausa porque é tão… Acaba abraçando toda a intenção. Tem muitas intenções por trás daquilo que eu escrevo, das mais pequenas e menos nobres [risos] àquelas que eu, sem vergonha, quero que sejam importantes. Nelas está claro o amor, nesse sentido que você diz. É preciso tratar o outro com amor porque não se sabe a história do outro. A bondade faz bem. O amor é transcendente, é um presente para si. Dar o amor é ser o amor. É uma metáfora muito pouco poética que eu vou dar, mas quando você está dentro de um carro dirigindo e há espaço para alguém passar à sua frente vindo de outra rua, o que te dá uma sensação melhor? Acelerar e ganhar um vigésimo de segundo ou dar um xauzinho e falar: “Pode ir”. Qual a sensação que qualquer de um nós escolhe? Até aqueles que escolhem ir para a frente, vencer e ser competitivos, até eles no fim do dia, lembram desse momento e se arrependem. O amor que se dá é o amor que se tem, é o amor que se é. Ser amor é dar amor. 

Sobre tudo isso não resisto a partilhar contigo que estava a falar com um amigo antes da nossa entrevista, que me contou que se apaixonou e começou a namorar em pleno concerto teu, ao som da tua música, no Palácio Sinel de Cordes em Lisboa.

Que lindo, João…

Para acabar, e na sequência do que falávamos, achas que a música, neste tempo difícil em que vivemos, pode ser um acto de amor e de esperança? 

Acho que sim e acho um pouco boba essa da distinção entre uma “música de amor”, uma “música política”, uma “música de protesto”… Claro que algumas músicas são deliberadamente de protesto, mas a coisa de dividir o político do amor acho uma contradição. O amor é a força mais política que existe. Eu acho que, por exemplo, quando a gente está numa sala dançando com outras pessoas, isso tem uma força… A música pode não ter letra nenhuma, mas o exercício de mover o corpo dentro de um espaço respondendo aos outros corpos e dançando é um acto de amor. Quando você está dançando com outras pessoas, com estranhos, você está amando a todos eles. Na mesma forma você vai a um concerto e qualquer um preferiria estar naquele concerto com outras pessoas em vez de estar sozinho. Você quer ver o concerto sozinho na primeira fila ou quer estar na última fila, mas com o teatro cheio? Você vai ali não é para ver, vai ali para sentir esse amor.

Para pertencer…

Para pertencer, exactamente. É isso que preenche o nosso coração. Nesse sentido sim, acho que a música, mesmo aquela que apenas te faça dançar, é uma força incrível de amor e política. Se aquilo amolece o músculo que a gente entende como coração, isso é de uma força e de um valor imenso. 


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos