pub

Fotografia: Luís Lopes
Publicado a: 02/07/2021

A compreensão total da linguagem da improvisação.

Rodrigo Amado: “Toco um instrumento que tem o sopro da liberdade”

Fotografia: Luís Lopes
Publicado a: 02/07/2021

Rodrigo Amado é uma figura tutelar da nossa música mais livre, um homem de acção, mas também de pensamento, de reflexão. E um artista que, nitidamente, gosta de conversar, de contar histórias, de reviver memórias. Com Chris Corsano, Kent Kessler e Joe McPhee, o saxofonista português mantém o This is Our Language Quartet, célula altamente avançada que acaba de lançar Let The Free Be Men, última parte de um intenso tríptico, agora apresentada na Trost Records.

Ao Rimas e Batidas, Rodrigo tem o cuidado de desmontar processos, de explanar ideias, de desenrolar novelos de histórias que ajudam a compreender uma música que é tão visceral quanto honesta, tão energética quanto mágica, uma música que vive da implosão de regras e da elevação a uma dimensão nova que exige de quem a ouve uma entrega igualmente generosa, sem reservas.

O incansável Rodrigo Amado também prepara lançamento de novo trabalho com o Motion Trio, unidade que mantém com Miguel Mira e Gabriel Ferrandini e que neste novo título conta com os inestimáveis préstimos do lendário pianista Alexander von Schlippenbach. E depois, mesmo no final da conversa, ainda angaria o entusiasmo necessário para falar da sua nova working band, o Refraction Quartet que se estreou há um par de semanas com uma data no Desterro, em Lisboa.

Essa aparentemente infinita energia que anima Rodrigo Amado resulta de uma entrega absolutamente verdadeira e incondicional a uma prática musical que é tão exigente quanto recompensadora. E quem já o escutou em palco sabe que é mesmo assim.



Em Let The Free Be Men, há uma recuperação de uma gravação de 2017 para fincares os pés neste presente pandémico de que estamos agora a ver a luz ao final do túnel — e esperamos nós que não seja um combóio a vir na nossa direcção. Há com isto alguma intenção de recuperar um tempo em que éramos todos mais felizes?

Não, não. Realmente, a única razão para a recuperação desta gravação de 2017 é mesmo musical e, quanto muito, de uma esfera, digamos, mágica, que pode existir. Porque eu estava lá nessa noite, quando fizemos esse concerto na Jazz House, em Copenhaga. E foi uma noite absolutamente extraordinária, tanto para nós como para o público. Tocámos quase duas horas de música. [Foram] dois sets. Tocámos na parte de baixo, na sala grande da Jazz House, que é uma sala muito bonita, com chão de madeira… Foi assim uma coisa muito especial. Não sei para quantas pessoas… Umas 500 pessoas.

É quase como uma gravação de estúdio, na verdade.

É. Porque eles gravaram com equipamento de topo. Só microfones incríveis, tudo do melhor. Foi, inclusive, uma gravação experimental para eles. Porque foi a primeira vez que a régie estava fora da sala, num sítio à parte, para [o técnico] ouvir exactamente como se tivesse a ouvir um disco e, portanto, não ser influenciado pelo som exterior. E o concerto foi muito bom. Foi dos melhores concertos do quarteto. Eu, logo na altura em que terminámos o concerto, tive aquela sensação de “epá, incrível. Fizemos esta música e isso está gravado. Perfeito.” A semente, de que aquilo seria algo para editar, ficou plantada logo a seguir ao concerto.

Há, obviamente, no tipo de música que tu fazes, sobretudo para os leigos ou os ouvidos menos treinados, uma grande dose de mistério. O que é que determina essa certeza de “hoje foi muito bom”, por oposição a “ontem não correu assim tão bem”?

Há sempre uma componente subjectiva fortíssima. Porque acontece, às vezes, nós terminarmos um concerto e um de nós estar assim meio infeliz com o concerto, enquanto que os outros acham, “não, isto correu incrivelmente.” Isso também existe. Normalmente, pela experiência que eu tenho com improvisadores mais experientes, todos nós percebemos quando é que o concerto é incrível, percebemos quando foi bom mas poderia ter sido melhor e percebemos quando é que foi uma noite assim-assim. Abaixo do assim-assim, ultimamente, é muito difícil [de acontecer]. Há muitos anos que não tenho um daqueles concertos em que fico com um galo do caraças. Eu acho que tem a ver com a alegria, com a comunicação… Aquela sensação de que estivemos a ser conduzidos pela música. Tu deixas de pensar e a música está a acontecer nas tuas mãos, na tua cabeça, nos outros… A comunicação está a acontecer e é um processo intuitivo, não racional.

É quase como um estado de elevação a que a música conduz. Mas quando a coisa não corre tão bem, o que é que pode ter contribuído para isso? Foi a notícia que se viu antes, no telejornal? A discussão que se teve em casa?

Não. Nem por isso. Lá está: com improvisadores experientes, nós quando subimos ao palco ou quando entramos em estúdio, esvaziamo-nos totalmente dessas coisas. Na realidade, é isso que eu sinto que acontece mesmo. O que influencia muitas vezes, eu diria que é o som. O som que tu estás a ouvir. O som da sala, monitores, a forma como estás colocado no palco, etc. Isso é uma coisa crucial: no momento em que tu chegas a uma sala para dar um concerto, decidires qual vai ser a posição dos músicos no palco. Porque uma posição errada é o suficiente para lixar o som. Depois, é importantíssimo, também, a contenção no uso de monitores, etc. [Tem de se] reduzir tudo ao mínimo. A opção que eu tenho feito, e que sinto que os outros músicos também estão nessa direcção cada vez mais, é apenas utilizar monitores quando absolutamente necessário.

Portanto, a escuta é acústica, completamente?

Escuta acústica. Exactamente. É o melhor. Nem sempre é possível. Basta que seja um palco muito grande, em que a gente tenha de estar a uma certa distância. Se tu tens um instrumento… Por exemplo, quando é um concerto com piano. Se o piano ficar de um lado e tu, obrigatoriamente, tiveres de ficar do outro… Epá. Há algumas situações em que é delicado. Basicamente, isso seria o número um. O número dois é a vibração que emana do público, que é importantíssima. Por exemplo, nessa noite na Jazz House, a casa estava cheia de músicos, muitos amigos — alguns amigos de Portugal, que vivem lá ou estavam de visita. Era uma daquelas combinações mágicas, em que está tudo a bater certo. Nós estávamos a tocar e eu lembro-me das pessoas reagirem a meio da música, que é uma coisa rara. Não conseguiam conter… É que nem eram palmas. Era assim um burburinho. Tu sentias que o público estava ali a viajar contigo.

No universo do rock, há aquela coisa, praticamente cliché, do vocalista da banda que diz “vocês são o público mais incrível”. E diz isso todas as noites. Mas há um público mais educado, treinado ou receptivo a este tipo de música na Europa, um público que seja, de facto, melhor?

Há. A Jazz House era dos sítios mais incríveis. Já toquei várias vezes lá, antes de fechar — a equipa que geria a Jazz House tem agora um clube novo, o Alice, onde eu também já toquei. E essa sala era extraordinária. Tinha a ver com o sítio mas também com a equipa. E quando eu digo equipa, refiro-me a toda a gente. Pessoal do bar inclusive. Todas as pessoas que lá trabalhavam eram completamente apaixonadas por música, da cabeça aos pés, e tinham um respeito pelos músicos, em que basta entrares na sala para o sentires. Tratam-te muito bem. Isso aliado a alguma consistência, faz toda a diferença. Depois, há a questão dos festivais. Os grandes festivais de música improvisada, como é o caso do Wels, do Saalfelden… Há dezenas de festivais importantíssimos. São festivais que têm uma tradição muito grande e já têm públicos educados. As pessoas sabem que vão ao festival e qual é o tipo de música que vão ouvir. São pessoas que regressam ano após ano e estão à espera o ano inteiro por aquele momento. É um momento muito especial. Tocar para um público desses é sempre um privilégio enorme. É completamente diferente de aterrares num clube que umas vezes faz [programação com] música mainstream, outras vezes música latina…

Pode ir gente ao engano, não é?

Tu até podes ter uma noite incrível. Não é garantido, de maneira nenhuma. Só não há aquela consistência.

Vamos desmontar o nome do projecto. Isto começa por ser o nome da primeira parte do tríptico e, de repente, o quarteto, de alguma forma, reclama esta afirmação muito forte — “esta é a nossa linguagem. Já construímos uma linguagem”. Tu tens uma longa história de tocar com bandas da área do rock, em que existe todo um conjunto de rituais — da sala de ensaios à carrinha na estrada — que nós associamos a uma praxis rock. Neste caso, em que vocês não estão juntos um ano inteiro, não têm essa vida de estrada continuada e quase exclusiva — os U2 não andam por aí a tocar esta semana com uns e na semana a seguir com outros. A minha questão é: o que é que define, neste contexto da música improvisada, a identidade de um grupo?

Acho que tem que ver, sobretudo, com o encontro das quatro personalidades. Na verdade, este é o terceiro disco de uma trilogia em que, quando ouvida em conjunto, é muito fácil de definir os traços desta música. Na realidade, o que estamos a fazer é apenas a aprofundar aquilo que já fizemos. Estamos a trabalhar uma linguagem que é comum desde o início do grupo. Essa linguagem é a junção das nossas quatro personalidades. O que isso me diz, também, em relação aos músicos que estão comigo, é que são pessoas muito claras. Eles próprios, enquanto pessoas, são pessoas muito claras. Não são daquelas pessoas que tu às vezes conheces e não percebes bem. Aquele gajo que, num dia, te diz uma coisa, e depois diz outra. Se tu traduzires isso para música, é o que acontece aqui. Estas pessoas são assim, transparentes.



Vou lançar-te um desafio. Fala-me um bocadinho sobre cada um deles. Começando pelo Joe McPhee.

O Joe, pronto. Ele é, de alguma forma, a alma do grupo. Um ancião. E é uma personagem mágica. É daquelas personagens que — e disse isso há pouco tempo numa entrevista — que se vivesse na idade das cavernas, seria um xamã. Ele tem essa energia. Completamente.

Ele quando gravou o disco estava com que idade?

78. Nós tocámos em 2019 no dia em que ele fez 80 anos. Portanto é isso. Mas, por exemplo, nessa altura em que nós fizemos a nossa última tour, o Joe teve um problema gravíssimo com os dentes. Teve uma infecção na boca e teve de arrancar os dentes todos. Isto aconteceu uns meses antes da tour. Nós ficámos aflitos e pensámos “vamos ter de cancelar a tour”. E ele meteu dentes falsos e teve de reaprender a tocar. Basicamente, ele teve de reaprender a tocar para a tour. E quando chegou à tour ainda estava hiper-fragilizado. Só que, pela personalidade dele e pela forma de ele encarar a vida, ele fez tudo… A música estava toda lá! E quando digo toda, é toda a 100%. Fragilizado, é verdade, se tu tiveres a reparar nos movimentos e no volume. Mas depois, se o tiveres a ouvir…

Isso é uma das coisas mais bonitas que eu encontro na música. Há uns anos vi, em Londres, uma exposição sobre o velho Rembrandt. A arte que o Rembrandt pintou já no fim da sua vida. E eu achei isso uma coisa maravilhosa. Ouvir o Sinatra velho. Ouvir o Tom Waits velho. Ouvir estes músicos, quando eles metem toda a experiência e todas as cicatrizes dentro do que estão a fazer. Eu acho isso admirável, poder ouvir essa passagem do tempo.

Claro. Não só o Joe mas também outros músicos, como o Alex Von Schlippenbach, com quem tocámos há pouco tempo e que tem 83 anos, todos eles são uma inspiração brutal para mim, porque eu quero envelhecer assim.

Queremos todos, não é? [risos]

Exactamente. Eu quero fazer aquilo que gosto até ao fim. Até cair para o lado. E isto é tudo malta que tu notas as dificuldades que eles já têm, pela idade, mas que não desistem. São guerreiros até ao fim. E eu já vi alguns deles em sérias dificuldades. Mas isso não os demove de tomar a decisão de “ok, vamos para a estrada.”

E o Joe tem essa força anímica, não tem?

O Joe? Completamente. 100%.

Maravilha.

Muito rapidamente: o Chris, por exemplo, é um baterista extraordinário, que toca tudo, todos os géneros que ele quer, e nunca traz gimmicks, digamos, para a música. Ele está a tocar connosco e está a 100% lá. Se for preciso estar a noite toda a tocar jazz, ele está. Não sente a necessidade de fazer coisas experimentais só para mostrar que sabe fazer. Sem qualquer tipo de… Nunca há uma boca ou assim. Ele está ali para tocar música connosco. Depois, como pessoa, no dia-a-dia e nas tours, é de uma generosidade e uma atenção absolutamente incríveis.

O Chris está com que idade agora?

O Chris é surpreendente. Ele parece um puto mas eu acho que ele já tem 42. Só que parece ter 30 anos. Estou a dizer 42 mas, na volta, é mais. Eu sempre que vou ver a idade dele, fico surpreendido e nunca consigo interiorizar [risos]. Ele pergunta sempre ao Joe se precisa de ajuda com a mala ou com outras coisas. Pergunta-me a mim também. Ou seja, anda a acompanhar-nos a todos. É uma pessoa que se preocupa mesmo com os outros. E eu acredito que isso também aconteça na música. Isso é muito importante num baterista. Muito importante. O Kent é uma personagem completamente diferente. Ele está no mundo dele. Mesmo durante este tempo em que não tocámos nem nos vimos, nunca existe comunicação com o Kent. Ele trabalha numa área ligada aos vinhos e o que ele gosta é de estar lá, nas provas, nas vinhas e não sei o quê. Está no mundo dele, pronto. E, de repente, quando é chamado para tocar, vem com aquele power todo, que eu nem percebo como é que ele continua a tocar assim.



E quando o chamam ele traz uma garrafa com ele para vocês provarem?

Traz, traz. E ele anda sempre com uns charutos. Há sempre um momento do dia em que é o momento zen dele. Fica a fumar o seu charuto. É um gajo assim, completamente sonhador, uma personagem diferente. Portanto, nós os quatro juntos, somos quatro pessoas completamente diferentes. E, no entanto, nunca houve uma discussão ou algum momento mais… Nada. Zero.

Isso é impressionante. Fala-me agora da arquitectura sonora. O que é que cada um deles faz dentro deste turbilhão que nós escutamos nos discos. Turbilhão que às vezes é agitado mas, a maior parte do tempo, e falando deste disco em concreto, até é bastante tranquilo ou, talvez, definido. Intriga-me isso: a bateria, os sopros, o contrabaixo; todos eles ocupam um lugar muito específico dentro deste mapa sonoro, que depois compõem um disco como este. Porque o Chris não está aqui para manter o tempo, o Kent não está aqui para segurar a base… Todos vocês estão ali a fazer outra coisa, não é?

Isso tem a ver com os princípios da improvisação, com a disciplina da improvisação, com os pontos de tensão e os pontos de release e atracção, digamos. Todos nós estamos, simultaneamente, a trabalhar com três pontos diferentes e a gerir esses impulsos. Porque eu acho que, neste quarteto, nós estamos todos em pé de igualdade. Apesar de uma bateria ser um instrumento completamente diferente do saxofone e de se esperar mais de uma bateria que mantenha uma base, enquanto que o saxofone pode andar a voar, eu, na realidade, muitas vezes estou a fazer um trabalho de contraponto em relação às coisas que o Joe está a fazer. O Joe faz muito disso para mim, também.

Eu acho isso maravilhoso neste disco. A vossa capacidade de entendimento mútuo é assim uma coisa… Linda!

Isso é uma coisa que é difícil, mesmo para mim, de explicar. Não tem explicação. É a magia da improvisação. Isso é uma das razões que me fazem voltar sempre à improvisação, por acreditar que é o tipo de música mais verdadeiro, no sentido em que traduz exactamente aquilo que nós os quatro somos naquele momento. Não há volta a dar.

Tendo isso em conta, o que é que sentes que é mais importante para a tua expressão artística? O pulmão ou os ouvidos? É mais importante ouvir o que os outros estão a fazer ou ter capacidade de soprar por cima deles todos?

É mais importante o ouvir. Sem dúvida. O ouvir é a chave das coisas. E se tu consegues ouvir as coisas, porque fizeste um percurso até uma determinada altura, e se sabes que conseguiste ouvir até ali, não o deves tomar como um dado adquirido. É uma preocupação que deve existir sempre, cada vez que vais para cima de um palco, para estúdio, quando estás na situação de criar música, de saberes que tens de ouvir. Com muita atenção. Porque no dia em que começares a tomar as coisas como seguras… “Ah, ele vai fazer aquele tipo de coisa e não sei o quê.” Começas a pensar no tipo de coisa que vais fazer, a antecipar aquilo que vais fazer… Epá. Já foste.

Há bocado falávamos de ver a luz ao fundo do túnel, de sairmos da situação mais estranha das nossas vidas. Ainda agora me falaste do Jazz House ter fechado — felizmente abriu o Alice em contrapartida. Tu sentes que o ecossistema que permitia a existência deste tipo de manifestação artística poderá estar neste momento, de alguma forma, ameaçado, tendo em conta o que se tem vindo a passar no mundo?

Sim. Completamente. Mas eu tenho plena consciência de que não é apenas este ecossistema. São todos os ecossistemas que estão ameaçados. Ou seja, está tudo a ser reequacionado neste momento. Todos os nichos, todas as coisas. Isso é verdade com a forma como a música se vende. Havia uma tendência para o desaparecimento das lojas de discos; era tudo na net, vendas digitais e isso. Todos esses modelos estão a ser reequacionados. Há uma resistência cada vez maior às plataformas de streaming, por exemplo. Em relação aos clubes, eu não sei até que ponto as pessoas… Na Europa, o tipo de público para esta música é um público que, de alguma forma, é bastante envelhecido. Isso não acontece em Portugal, o que é um fenómeno incrível. Quando tocamos aqui, em Portugal, temos salas cheias de malta nova. Agora, quando eu vou tocar àqueles clubes mais pequenos — na Alemanha, na Áustria, Bélgica, etc. — a média de idades é bastante elevada. E esse é um grupo de pessoas que foi bastante afectado com esta crise. Portanto, eu não sei até que ponto é que eles se vão voltar a sentir confortáveis todos fechados dentro de um clube, daqueles minúsculos, em que estão todos em cima uns dos outros. Não sei. Não faço a mínima ideia.

Por outro lado, é a faixa etária que já está toda vacinada.

É verdade. Imagino, por outro lado, se pensarmos nas várias faces da coisa, que devem estar todos doidos para se voltarem a enfiar nas velhas caves deles.

Falando da questão mais premente desta pandemia, que é isto que nós estamos aqui a fazer, o transmitir ar uns para cima dos outros. Tu tocas um instrumento que vive muito disso. Soprar, numa altura destas, fez-te pensar, em alguma altura, algo como “porque é eu não fui pianista?” [risos] Até porque um pianista pode tocar de máscara e um saxofonista não.

Nesse sentido, não. Quanto muito, pensaria que tinha um instrumento que tinha o sopro da liberdade, de alguma forma. E isso tem a ver com o título do disco. Porque são exactamente esse tipo de coisas que me fazem acreditar que nós estamos mesmo em risco de perder a nossa liberdade enquanto humanidade. O título é exactamente sobre isso. A primeira vez que li o poema do E. M. de Melo e Castro, bateu-me logo assim, forte, como sendo uma coisa completamente vital neste momento. Depois, ainda tive muitas conversas com amigos, por causa da questão do homem e o não falar da mulher, etc.

Mas há um título que remete para aí, não é?

Sim. Tive esse cuidado. Mas, na realidade, é óbvio que esse “men” se refere a “humanidade”. Homens, mulheres, tudo. É exactamente por esse tipo de coisas que… Imagina que nós, agora, tínhamos de conter os nossos sopros. São tudo formas de perder a liberdade. Como já acontece na China, por exemplo, por causa da poluição. Aí é o contrário. As pessoas protegem-se para não entrarem bactérias. Mas tudo isso são formas de se perder a liberdade. E nós, como sociedade, se conseguirmos colocar as mudanças necessárias em marcha, podemos eventualmente inverter o processo. Mas o processo em marcha, que está a acontecer, é todo no sentido de nos reduzir cada vez mais.



E não há música que sagre mais a liberdade, porque é acerca da liberdade de pensamento, do que esta música. Não é?

É. Não estou a imaginar nenhuma música que seja mais livre do que a música que é totalmente improvisada.

Livre de estruturas, livre de escolas, livre de tradições, livre de tiques, livre de modas…

É isso. E, por isso, é uma coisa que me dá muita felicidade e muita força, saber que estou a trabalhar numa área destas, que celebra esses valores fundamentais.

Já há datas para o regresso do quarteto à estrada?

Já. Ainda não tenho os meses certos, mas em 2022 vamos fazer uma tour grande na Europa.

Como é que vocês se organizam? Têm um grupo no WhatsApp? [risos]

É no WhatsApp, sim. [risos]

Têm um grupo e vão partilhando coisas?

Epá… Sim. A comunicação é muito esporádica.

Tu és o teu próprio manager, não é?

Não, não. Este grupo tem uma manager, que é a Danielle Oosterop. É uma manager holandesa, que trabalhou todos estes anos com o Mats Gustafsson, o Paal Nilssen-Love… O pessoal todo dessa área. É ela que trata disso.

E também há novidades de Motion Trio, que tu já me enviaste. Essa gravação é de quando?

Foi gravada em 2019.

Outro registo pré-pandemia.

Foi gravada dois meses antes da tour, em Setembro ou Outubro. É uma gravação super especial porque tens o regresso do Motion Trio. O trio já não estava muito activo durante um grande período. Eu estava a trabalhar com outras bandas, com outros trios, etc.

Isso prende-se com o início da nossa conversa: o que é que define a identidade e a alma de um determinado ensemble.

Sim. E o Schlippenbach é um dos músicos que todos nós mais admiramos desde que me lembro. Era um dos nossos ídolos. O trio dele, principalmente, e o quarteto. Os grupos que ele tem em nome próprio. Aliás, ele quase não toca com outras pessoas. Tem uma ou outra coisa com a mulher, a Aki Takase, e depois tem algumas coisas com o Brötzmann e pouco mais. É um músico que é muito ciente da sua própria identidade musical. Ele ter aceite fazer isso connosco, essas duas datas, no Festival de Vilnius e em Berlim, já foi extraordinário. E depois, o chegarmos e tocarmos… Foi a primeira vez que eu e o Miguel tocámos com ele. O Gabriel já tinha tocado. Sentimos de imediato que estávamos a tocar a mesma música. São aqueles mistérios da música improvisada. Na realidade foram dois concertos extraordinários. O de Vilnius foi um set de quase uma hora e meia, de seguida. No disco estão 56 ou 53 minutos, se não me engano. Porque nós editámos e deixámos de fora uma parte do fim e o encore. É uma música super intensa, super exigente.

Quando tu dizes super exigente, tem a ver com o nível a que a música avança?

Tem a ver com abstracção. Por exemplo, comparando com a música do quarteto: a música do quarteto é bastante mais universal nesse sentido. Acho que é uma das coisas que define a música do quarteto, esse cariz universal.

Pode ter a ver com o facto do Joe vir duma tradição musical americana?

Acho que sim. Completamente. E sendo ele um xamã, traz isso em força para o meio do grupo. O Alex não. É uma mente tipicamente alemã. É um alemão daqueles…

Estamos, provavelmente, a falar de um lado de alguém com origem na igreja baptista, do outro alguém mais luterano.

É por aí. Portanto, estamos a comparar duas coisas completamente diferentes. E a música, na realidade, aquilo é mesmo hiper intenso. Tudo com base em clusters, a harmonia em permanente transformação. Sou eu a acompanha-lo a ele. Umas vezes vou eu à frente, outras vezes é ele quem vai à frente. Mas para quem está a ouvir… Não há sossego.

É como ir ao ginásio levar porrada durante uma hora ou duas [risos].

É isso. E eu fiquei espantado, porque o primeiro tema do set foi de uma hora e quinze e logo desde o início as pessoas ficaram doidas. A vibrarem…

Isso não é determinado, pois não?

Nada. Eu não olho para o tempo. Há um tempo sentido. Eu tento não dar uma seca às pessoas.

Quando o Ferrandini tocou com o Schlippenbach, na Culturgest, lembro-me de escrever sobre um detalhe que eu reparei: o Ferrandini chegou ao palco, desapertou o relógio e pôs o relógio ao lado.

Pois. O Ferrandini, às vezes, controla. Mas em Motion Trio não.

Simbolicamente falando, isso é alguém a abdicar da ideia de tempo.

Sim. Sim.



É um abandono espiritual? Digamos assim.

Completamente. E não só o abandono é espiritual, como todo o arco temporal que preside a um concerto é uma coisa espiritual e totalmente intuitiva. É um circulo que nós sentimos de forma natural e que se fecha.

Tenho uma pergunta que, apostaria, te foi colocada nunca ou raras vezes: como é que é acordar num dia a seguir a um concerto destes, em que tu sentes que algo especial aconteceu? Qual é a tua energia no dia seguinte?

É incrível. Andas a pairar, basicamente. Nas digressões, tu por norma deitas-te às duas da manhã, depois de um concerto incrível, e metes o despertador para as quatro, para ires apanhar um autocarro para o aeroporto. Viajas durante quatro ou cinco horas, apanhas outro autocarro para ires dar um outro concerto no dia a seguir. E isto não é apenas por uma vez. Isto acontece, às vezes, durante sete dias seguidos. Depois, pronto, no meio, eventualmente, há ali um dia mais calmo, em que podes descansar um bocadinho mais. Mas, resumindo, tu passas por tudo isto transportado por essa energia. E eu nunca sinto quebra de energia enquanto estou em tour. Antes pelo contrário. Eu normalmente sinto que há um crescendo interior em mim. Em que eu, nos últimos concertos, estou a sentir-me todo-poderoso, em termos de energia. Depois, quando chego a Lisboa… Levo um porradão daqueles, em que fico uns dois dias K.O.. Mas isso tem a ver com esta energia que estamos a falar.

Como é que tu lidaste com a falta dessa injecção durante este tempo?

Lidei bem, até.

Andaste a fotografar?

A grande coisa que eu andei a fazer durante este período todo, além de ter tido mais tempo para a fotografia, foi começar a praticar que nem um doido. O estar no estúdio durante horas e horas seguidas. Senti-me bem porque, na realidade, tinha energia extra para isso. Senti que dei um salto enorme no saxofone nestes últimos dois anos. Eu senti isso agora, nos concertos a solo que fiz. Não senti só. Muitas pessoas, amigos meus que me conhecem bem, me disseram “epá, fogo, tu estás a tocar tipo…” Em termos técnicos, mesmo. Eles reconheceram isso. E isso só pode ser porque eu nunca tinha praticado tanto como nestes últimos tempos.

E continuas com o mesmo instrumento?

Não. Também aproveitei o tempo para isso.

Fizeste um upgrade.

Em plena pandemia, meti-me num avião vazio e fui a Paris comprar o saxofone que eu queria mesmo ter. Tive sorte, também. Porque isto não é só decidir. Apareceu uma oportunidade e eu aproveitei-a.

Qual é a história desse saxofone?

Nós, saxofonistas, temos alguns Santos Graal. O mais comum, digamos, são os saxofones vintage da Selmer. Dentro desses saxofones vintage existem três modelos. Há o Balanced Action, digamos que é um pré-histórico. São saxofones de 1940/1945, da altura da guerra, e que são incríveis. Têm a fama de ser saxofones com um caracter espiritual que nunca mais foi replicado. Diz-se, inclusive, que alguns deles foram construídos — que acho que é o caso de um que eu comprei, antes deste que tenho agora — com metal de sinos das igrejas. Durante a guerra, as igrejas foram destruídas e, então, fundiam os sinos para fazer capsulas de balas. Depois eles apanhavam as capsulas das balas e fundiam tudo para fazer saxofones. O que é uma história…

Tu costumas falar disto em entrevistas? Isso é incrível!

Creio que não [risos]. Mas a história completa, já agora, é que eu experimento o saxofone aqui, em Lisboa. Pertencia a um médico e era um Balanced Action, de 1945. Experimentei e fiquei completamente apaixonado pelo saxofone. Naquele momento eu soube: “é este o som que eu andava à procura.” Disse que o queria comprar, ele concordou em vender-mo, só que eu ainda não tinha o dinheiro que ele pedia. Mas ele concordou até que eu lhe passasse um cheque. Eu combinei, numa sexta-feira, ir lá buscar o saxofone e levar-lhe o cheque. Só que deixei a coisa para o fim da tarde e, quando cheguei ao Millenium, em Entrecampos, não tinham máquina de dispensar cheques. Então, pedi-lhe desculpa. “Não consegui mesmo fazer isto mas, na segunda-feira, estou cá a dar-lhe o cheque.” Ele, que já me tinha passado o saxofone, ficou super irritado. “Tínhamos uma combinação. Isto não pode ser. Quero já o meu saxofone.” Eu disse “tudo bem, vou buscar o saxofone.” Fui a casa, de propósito, buscar o saxofone. “Está aqui o saxofone. Mas é meu. Na segunda-feira trago-lhe o cheque.” Depois, na segunda-feira, fui lá com o cheque e já não havia saxofone. Epá… Eu fiquei doente. Passaram-se alguns meses. Falei com amigos em comum, pessoas que eu conhecia, para o tentarem convencer. Ele não queria. Ficou mesmo atravessado com aquilo. E finalmente ele lá decidiu e eu comprei-lhe o saxofone. Entretanto, andava a tocar com ele, todo feliz, e uns meses mais tarde apareceu-me uma oportunidade de ter um Super Balanced Action. É o segundo modelo da Selmer. Este que eu tenho é de 1951, que é um modelo já baseado na arquitectura moderna, digamos, dos saxofones. Aliás, é um modelo que depois serviu de base para todos os saxofones modernos. É o Super Balanced Action. É aquele que as pessoas dizem que, dos três modelos, que é o mais equilibrado. Tem a espiritualidade do Balanced Action e tem já o mecanismo e a modernidade do terceiro modelo, que é o Mark VI. Eu sentia que o Balanced Action tinha o som que eu queria, mas sentia limitações, que são conhecidas, são características desse modelo, em termos de afinação dos harmónicos, etc. Ou seja, eu sentia que o carácter estava lá, todo, mas aquilo que é mesmo certo para mim é o Super Balanced Action. Só que pronto, isto são saxofones de coleccionador. Custam uma fortuna. E eu vi um vídeo do dono a tocar o saxofone. Senti o som a passar através do telemóvel. Através de tudo, estás a ver? [risos] Um som incrível! “Tenho de experimentar. Eu se calhar chego lá e não vou conseguir decidir, porque é muito dinheiro.” Mas fui. Meti-me no avião, todo nervoso. E com a viagem de regresso marcada para o fim da tarde. Foi uma maratona. Tinha uma hora para experimentar e decidir. Fui lá, experimentei e ainda fiquei com umas dúvidazinhas. Mas pensei, “é isto”. Foi um investimento um bocado coiso. Mas, depois, comecei a tocá-lo… É um instrumento absolutamente extraordinário.

Que grandes músicos conheces que tocavam este modelo?

Coltrane, Sonny Rollins… É o saxofone utilizado em todas as gravações clássicas. Aquelas, as primeiras. O Coltrane, fala-se, que depois tocou com o Mark VI. A série mais antiga, dos primeiros. Mas aquele saxofone que aparece nas fotografias é um Super Balanced Action. E o Sonny Rollins, na fase que eu mais gosto de o ouvir tocar, é tudo com um Super Balanced Action.

Para terminar: no futuro imediato, já me disseste que há coisas a serem preparadas para o This Is Our Language; e para Motion Trio, há aí novidades também?

Não há planos porque eu, neste momento, estou a trabalhar com outros grupos, outras working bands. A principal é o Refraction Quartet, que começou agora mesmo. É um quarteto que eu tenho com o João Almeida, no trompete, o João Valinho, na bateria, e com o Hernani Faustino, no contrabaixo.

Só feras.

É muita giro. Porque eu e o Hernani somos de uma geração completamente diferente. Eles são mesmo putos e têm um talento incrível. São músicos que têm uma preparação académica completamente diferente da nossa. Mas quando estão ali connosco, a improvisar, são improvisadores 100%. Representam um outro equilíbrio dos elementos. É muito giro fazer música assim. E pronto, temos todos a vontade e disponibilidade para nos reunirmos regularmente e estarmos a trabalhar em música sem ter nenhum objectivo que não seja tocar.

Tendo em conta as experiências que vais tendo com estes jovens, sentes que o nosso futuro está bem defendido?

Está, está. Completamente. Eu acho que, em termos de capital humano, temos músicos incríveis. Músicos hiper-curiosos, com uma vontade enorme de explorar, com super-atenção a todos os géneros musicais — soul, rock, tudo o que se faz de criativo. Esse é o foco. É aquilo que, todos nós, de alguma forma exigimos. Que a música arrisque. E há coisas incríveis.

Tu próprio continuas sensível a isso. Ainda recentemente trabalhaste com o João Peste, não foi?

Foi.

Não há fronteiras. Não é?

Não. De maneira nenhuma. E acho que é assim que deve de ser. Mas é uma evolução grande em relação há 20/30 anos atrás. Eu acho que estamos super bem defendidos. Em relação ao Motion Trio, o que eu acho que vai acontecer é… Eu acho que o disco é incrível. Gosto particularmente deste disco. Fiquei mesmo feliz quando comecei a perceber o que o disco é. Porque o disco não foi imediato. E imagino que vamos ter convites para tocar em festivais, etc. Bora aí!


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos