A belíssima ideia contida no programa “Pipe Poetics” da iniciativa Braga25 é uma das muitas propostas que este ano a cidade dos sinos tem para oferecer. Este ciclo que convida quatro compositores contemporâneos dos campos marginais do orgão de tubos, seja na electrónica ou no piano, começou no dia de arranque oficial da “Capital Portuguesa da Cultura” com Kara-Lis Coverdale na Basílica dos Congregados, a 18 de Janeiro. O segundo momento aconteceu no dia 10 de Março, mudando o compositor convidado, o local e instrumento. Assim será em mais duas datas deste ciclo.
No dia 10 de Maio, o convite foi feito a Robert Aiki Aubrey Lowe (aka Lichens), que tem inscrito nos últimos tempos um trabalho profícuo de música para filmes, a exemplo está o último Power (Invada Records, 2024) nos campos da electrónica ao serviço do chamado stage & screen. Um documento fílmico na pertinência do “Who is more powerful: the people — or the police?”, para ver exclusivamente na plataforma Netflix. Mas Lowe tem assinadas outras recentes bandas sonoras ainda pela Invada Records, com Telemarketer$ e Grasshopper Republic, ambos de 2023, extensos registos sonoros, no último em que se entra floresta adentro do Uganda, na devastação provocada por gafanhotos. Lowe inscreve música com propósito e nada ao de leve no que toca às causas e efeitos pretendidos.
No entanto, a ideia de um órgão de tubos traz uma leveza invariável. Este órgão que a população do bairro de São Lázaro resgatou da perda espartilhada após a demolição da antiga capela. Um orgão que se tornou andarilho, tem até umas rodas na sua base. Foi construído pelo organeiro Manuel Sá Couto em 1817, também responsável pelo orgão de Bom Jesus do Monte. O órgão de São Lázaro é uma peça do barroco tardio, com uma caixa revestida em policromia atractiva, que replica sobre a madeira a fácies de bivalves fósseis que se reconhecem na rocha ornamental calcária chamada de lioz — empregue exaustivamente em Lisboa. Um órgão feito esguio, altaneiro, nuns quase 5 metros, com um teclado entre o buxo e o pau-preto, um contraste escuro na policromia em redor, encimado por 5 jarrões de talha dourada. Tem um total de 432 tubos contidos na caixa e que apenas a janela de abertura deixa revelar em parte. Exotismo quanto baste para querer saber dele ao que soa.
Robert Lowe esteve uma semana em residência de criação. Soube escutar as 54 teclas e os 10 registos em dois conjuntos. A relação permite-lhe um desejado sentido de composição site-specific. Permite fazer do teclado dois em simultâneo pelo uso conjugado de dois registos.
O concerto começa com uma breve peça a uma só voz, num registo de melodia simples com curta volumetria, directo e de introdução. Lowe veio munido de um sintetizador modular disposto a ser alimentado pelos tubos e a devolver atmosferas sonoras para encenar. A segunda peça revela essa conjugação em cadências. Passa-se depois ao prolongamento lento e sustentado das notas pedais — um drone modular, esculpindo o som tubular, ouvem-se vozes sintetizadas, em ímpetos, sucedendo-se como pulsos. Todo o alinhamento é tocado em suite e isso é fundamento para a devida imersão sónica. Um quarto andamento devolve dramatismo cromático e há sons de resposta aos ecos modulares, como discretas aparições.
Há um respirar fundo do organista e compositor desta inédita obra. Respira-se em função profunda, para ir ao fundo e vir ao de cima — irá entrar-se em apneia sonora? São nebulosas as paisagem que se escutam, pelo aproximar detalham-se os ornamentos, mas surgem difusas as formas do som. Lowe respira, ganha fôlego, um instrumento que vive da respiração, também do operador — sintonias. Prepara-se melhor o motivo, silenciam-se os registos. Como que uma sexta parte de um todo surge por via dos graves, em toadas que se demonstram de descidas telúricas. Surgida uma passagem que exprime com enaltecendo o mecanismo — correntes de ar, silvos de anúncios dadas às harmonias de graves.
Estava projectada uma curta sonora, em que as imagens serviram a música, e estas contam um das múltiplas narrativas possíveis. Muitos foram os presentes, a cada qual a sua curta vivência, a Robert Lowe a gratidão por uma curta que se saberá perdurar na memória do vivido — cuidando o presente poético como chave do órgão vindo do passado, ainda que tão recente.
“Pipe Poetics” retoma-se a 4 de Outubro com a organista Claire M Singer nos teclados e tubos da Igreja de Santa Cruz, numa curadoria sabiamente mantida por Luís Fernandes. Braga que se afirma como capital do órgão ibérico e que tem até dia 18 de Maio outro programa em curso com o Festival Internacional de Órgão, numa vertente clássica antiga. Demonstra, porém, que na poesia dos órgãos do passado se faz uma ideia com futuro, em expansão.