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Fotografia: Marta Bento
Publicado a: 18/02/2024

Em concerto, filme e disco.

Ricardo Toscano & Gabriel Ferrandini na SMUP: Unpredictable Sessions

Fotografia: Marta Bento
Publicado a: 18/02/2024

O encontro de dois músicos marcantes da cena jazz actual serve-se em três vias possíveis. A inédita interactividade da música do saxofonista Ricardo Toscano com a do baterista Gabriel Ferrandini foi levada para disco, filme e concerto. Marcaram encontro em 2020 com Unpredictable Sessions, gravando uma sessão de dois dias de estúdio, promovida e produzida por Eduardo Queiroz, que a Stereo Atlantico no inicio de Fevereiro último deu à estampa. Durante o processo de gravação, Lucas Dutra, sem conhecer a música previamente dos dois, captou em imagens os momentos e fez disso um filme documental na magia do noir, num confesso processo também ele no risco do improviso.

Dia 17 de Fevereiro, encontro marcado no salão da SMUP, na Parede. Data envolta em burburinho crescente, com expectativas criadas para a revelação em palco do diálogo deste duo. São os firmados percursos de cada um dos músicos, liderando prestações memoráveis em palcos e em discos notáveis — e vão dois para cada um — que desafiam a aritmética na arte para a possibilidade de um mais um serem três, esperando no conjunto mais do que a soma das partes. E soube-se esperar um pouco mais, e melhor, com a música de John Lurie servida como ambiente de fundo do salão. Palco chão, plateia à pinha, e balcão quase repleto, para ter lugar uma anunciada sessão imprevisível.

São dois músicos que desenvolvem linguagens próprias e ouvidos à distancia reconhecem-se cada um por si de olhos fechados. Essa idiossincrasia musical depressa se revela em palco, sem despirem as suas peles — haverá um terceiro “eu” no tocar a dois? Estamos dispostos a ver e ouvir essa revelação. Arranque promovido pela circulação permanente dos címbalos trazidos por Ferrandini desenvolvendo ondulações onde Toscano faz flutuar, tentativamente, fraseados curtos e quentes em movimentos desenhados à tona, sem ousar o mergulho. Tema em estilo prelúdio, a ensaiar desejos entre o público e os músicos.

Segundo tema da noite suportado por um Ferrandini a demonstrar o seu baterismo desenvolvido a múltiplos recursos de baquetas, ora feltros, ora pau e escovas. Os recorrentes gongos de mão aos que desfere golpes e circula em efeitos doppler, numa cadência entre peles, aros e címbalos, criando momentos de tensão crescente até uma quase impossibilidade física. Toscano sente o chamamento inicial e, após novas tentativas de estacar o alto em infrutíferos fraseados desligados, intui o momento e agarra-se ao que melhor nos tem servido com coesas melodias, carregadas de memórias — as suas e as nossas da música dele. Neste tema que se viria a demonstrar como o mais estendido e combinatório dos recursos da noite, houve lugar para um longo solo de bateria propulsora auxiliada por gongos e caixa de ressonância. Intenso uma vez mais Ferrandini, a desafiar a robustez e estrutura de aros da bateria. Toscano volta a ligar-se na medida do que a mão esquerda comprometida permite, e traz notas com maior carga que devolvem entusiasmo na prestação a dois.

O terceiro momento é promovido pelo saxofone de volta aos recursos de frases tacteantes e dispersas. De volta Ferrandini a trazer coesão à cena, munido de escovas a vassourar a tarola em remoinhos, no ver e mais ainda no escutar. Toscano tenta agarrar o vórtice sonoro com outras ideias que trazem uma palheta mais vibrante. Ainda assim, aparentam ficar numa antecâmara de um espaço maior. Concertos há em que o voltar ao palco traz uma eficaz redenção — foi o caso. O encore trouxe o melhor que se poderia querer da tal imprevisibilidade. Foi um diálogo pleno de intuição frutífera, num entendimento coeso e caloroso, com continuidade, num não antes alcançado lugar de maturação — agora que está a acabar é que devia estar a começar.

Depois veio o filme documentário, como que um poder puxar a fita atrás — ver do principio. A internacionalizar estes dois músicos incansáveis, o filme teve inscrição em montras como as do Tokyo Film Awards’22, 7th Music Film Festival, Cine Paris Film Festival’22, Lonely Wolf’23, Internacional Sound & Film Music Festival’22 e FilmHaus’23 em Berlim. Sustentado na beleza do preto e branco, na construção da expressão musical e no discurso directo dos improvisadores, dá a conhecer a vitalidade do assobio fundamental na música deste estreante duo.

Mesmo no final da dupla sessão da noite, concerto e filme, houve quem soltasse um “gostei ainda mais da música no filme” — acenámos telepacticamente que sim. O disco está aí e certamente outras irrepetiveis sessões também para fruir.


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