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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 17/12/2020

O saxofonista vai liderar na Culturgest um septeto com que abordará a obra-prima de John Coltrane, uma poderosa criação espiritual que continua a iluminar-nos a todos, 55 anos depois.

Ricardo Toscano: “A Love Supreme é sobre a coragem e o auto-conhecimento”

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 17/12/2020

Amanhã, pelas 21 horas, e no sábado, pela “hora da missa”, às 11 da manhã, Ricardo Toscano lidera um septeto numa missão “impossível”, mas ultra-desejável: revisitar no palco da Culturgest, em Lisboa, o magnum opus de John Coltrane, A Love Supreme, trabalho originalmente lançado em 1965 e que se ergueu e impôs como uma das mais justamente celebradas obras de arte do século XX, o culminar de uma longa evolução artística e espiritual, não apenas do seu principal criador, mas de toda uma cultura.

Em conversa tida ela mesma a horas impróprias – ou seja bem cedo –, numa esplanada do centro de Lisboa ainda vazia e portanto relativamente tranquila, com a distância física que actualmente se impõe, mas a proximidade natural de duas pessoas que sabem que estão ali para conversar sobre um disco que ambas têm como um dos seus favoritos, Ricardo Toscano abriu a sua cabeça e o seu espírito para discorrer sobre essa titânica tarefa de revisitar A Love Supreme antes de se dirigir a mais um ensaio. É óbvio, escutando o saxofonista, que este não é apenas mais um “gig” e que todo o cuidado está a ser depositado no espectáculo que, e essa é uma excelente notícia, será certamente guardado para a posteridade já que vai ser registado pela RTP. Serviço público em estado puro, sem dúvida.

Em jeito de preparação do caminho para este concerto, a Culturgest estreou, nas suas redes sociais, o conjunto de vídeos À Volta de A Love Supreme em que Toscano surge “em diálogo mais íntimo, directo e emotivo” em arrebatadores encontros com diferentes secções do ensemble que montou propositadamente para os concertos de amanhã e sábado.



Em septeto, Ricardo Toscano, com o seu alto, será secundado por Bernardo Tinoco, também em saxofone, João Almeida no trompete, João Pedro Coelho no piano, Romeu Tristão no contrabaixo e ainda por João Lopes Pereira e Luís Candeias, ambos em bateria. O líder justifica o formato: “Quero força. O pessoal está a precisar de força”.

E que força é essa, como diria Sérgio Godinho? Frank Lowe, ele mesmo saxofonista tenor, músico de Sun Ra e também de Alice Coltrane, explica nas páginas de A Love Supreme – The Story of John Coltrane’s Signature Album, livro ultra-revelador do professor, ensaísta e historiador Ashley Khan, que essa criação surgiu em meados da década de 60 com estrondo, “derrubando portas, como uma revelação”: “Claro que era música negra, mas estava quase para lá disso também. Tomou uma universalidade que poderia abraçar muitas outras coisas e ainda assim reter a sua negritude. Noutras palavras”, explicava Lowe, “não é como se fôssemos nós contra o mundo. É como se todas estas coisas estejam incluídas e todos nós somos o mundo”. É, precisamente, da ligação a essa vibração universal que Ricardo Toscano nos fala, partindo de um ponto de vista individual: “é sobre coragem e auto-conhecimento”, diz-nos, algo de que todos precisamos nesta altura. E Coltrane é, sem dúvida, a figura certa para nos inspirar.

Há até uma igreja com o seu nome – A St. John Coltrane African Orthodox Church em São Francisco –, mas a principal devoção é a que continua a prestar-se à sua extensa obra gravada: mais de meio século após o seu desaparecimento, John Coltrane permanece uma figura inspiradora por ter criado música esteticamente avançada e espiritualmente rica. Bill Cole – músico, professor e autor de livros sobre Miles Davis e Trane escreveu em John Coltrane (publicado originalmente em 1976) que o saxofonista possuía uma personalidade magnética. O seu livro começa com uma frase em que claramente enumera as suas intenções: “Há duas coisas em particular que eu queria abordar neste livro”, declara. “John Coltrane enquanto músico e John Coltrane enquanto pessoa religiosa”. Dois aspectos, garante o autor, “intimamente ligados ao facto de ele ser afro-americano”.

Coltrane faleceu a 17 de Julho de 1967 e a 5 de Agosto o britânico Melody Maker reportava as cerimónias fúnebres que tiveram lugar em Nova Iorque: “A música da cerimónia foi executada por Ornette Coleman e Albert Ayler que compuseram material especialmente para o funeral. Tudo começou com o Quarteto de Ayler a tocar ‘Truth is Marching In’ e em vez de uma elegia o amigo de Coltrane Calvin Massey leu o longo poema religioso A Love Supreme que Coltrane escreveu em 1965. O caixão foi flanqueado por flores enviadas por Duke Ellington, Max Roach, Nina Simone, Stan Getz, pelo Quinteto de Horace Silver e muitos outros músicos”. O respeito que a figura de Trane impunha entre os seus pares era notório.

Em 1961, John S. Wilson, crítico de jazz do New York Times, colocou em perspectiva a evolução de John Coltrane: “Até há cerca de cinco anos, o senhor Coltrane parecia satisfeito em ser um profissional do jazz. Depois, quando era membro do Quinteto de Miles Davis, ele começou a explorar as capacidades do seu saxofone o que o levou para interpretações cheias de frases longas, endurecidas, rápidas, com subidas e descidas súbitas que tinham o efeito de um bate-estacas aural”. Esta luta com as palavras na tentativa de descrever o que era, para todos os efeitos, um som novo, era mais do que natural.

John Coltrane nasceu a 23 de Setembro de 1926 na Carolina do Norte, perdeu boa parte da família no início da adolescência e mudou-se com a mãe para Filadélfia quando contava 17 anos de idade. Foi aí que começou a sua aprendizagem musical, com o saxofone alto e o clarinete em primeiro lugar. Teve os seus primeiros compromissos profissionais enquanto músico como parte de um trio que tocava em bares, no arranque de 1945, mas pouco tempo depois ingressou na marinha, no mesmo dia em que deflagrou a bomba atómica em Hiroshima, a 6 de Agosto do mesmo ano. A comissão de serviço de John Coltrane durou um ano, período após o qual regressou a Filadélfia onde voltou a encontrar trabalho esporádico como músico. Em 1947, Trane descobriu o saxofone tenor e foi já com esse instrumento que integrou a banda do saxofonista alto e blues shouter Eddie “Cleanhead” Vinson. Este foi um período importante na formação de Trane: aprendeu a ouvir os outros músicos, mesmo no contexto menos “evoluído” do rhythm n’ blues, ouviu Charlie Parker pela primeira vez – “a música dele acertou-me em cheio”, declarou mais tarde à Down Beat – e descobriu músicos como o pianista Hasaan Ibn Ali que lhe abriram novos horizontes melódicos.



No Verão de 1955 um telefonema levou John Coltrane até ao seio do que a história guarda como o primeiro Grande Quinteto de Miles Davis, um colectivo que incluía Red Garland no piano, Paul Chambers no baixo e Philly Joe Jones na bateria. Foi esse o momento, como defendeu John S. Wilson, o já citado crítico do New York Times, em que a música de Trane começou a evoluir de forma mais dramática. Foi nessa altura, no Outono, que o também já citado músico e escritor Bill Cole viu Trane ao vivo pela primeira vez, num concerto do Quinteto de Miles num salão de Pittsburgh. Cole ficou sentado atrás de um pilar, algo que não o incomodava pois, escreve, estava ali para ouvir, muito mais do que para ver o concerto. Mas o som do saxofone obrigou-o a esticar o pescoço: “quem é que soava tão diferente?” Nessa época, argumenta o escritor, os saxofonistas andavam em busca de um som puro, clássico, algo que eliminasse o individuo da equação. “O som de Trane era a antítese disso tudo”, escreve, antes de clarificar: “O seu som era claramente uma extensão da sua própria voz”. E Ricardo Toscano refere-se a isso quando aborda na conversa tida ali pelos lados do Cais do Sodré a ideia da perfeita “imperfeição”.

Em 1958, Trane voltou a tocar com Miles, agora no contexto de um sexteto, e o som que tinha começado a aperfeiçoar no seio do grupo do pianista Thelonious Monk, com quem tocou durante alguns meses, mereceu do famoso crítico de jazz Ira Gitler o descritivo “folhas de som” (“sheets of sound”), mais uma tentativa de colocar em palavras um som compacto que parecia traduzir a velocidade do próprio pensamento, com muitas notas a precipitarem-se umas em cima das outras. John Coltrane andava em busca de algo novo, seguindo em caminho inverso ao da maior parte dos músicos que normalmente descobriam a sua voz muito cedo e depois cristalizavam as suas personas artísticas, “basicamente pondo um ponto final na aventura”, como diria mais tarde John S. Wilson. Seguiu-se um proveitoso período na Atlantic, começando com a edição do maravilhoso Giant Steps em 1960 (gravado apenas duas semanas depois de participar nas sessões de Kind of Blue de Miles Davis), e depois, nos dois anos seguintes, os igualmente clássicos Coltrane Jazz, My Favorite Things e Olé Coltrane.

Esse foi o período em que John Coltrane procurou estabelecer a sua própria voz, longe da sombra vasta de Miles Davis. Quando chegou a Nova Iorque em Abril de 1960, depois de mais um compromisso na estrada com Miles, Trane decidiu seguir o seu próprio caminho. Na sua bagagem, como nota o escritor Ashley Khan, havia um presente especial do trompetista: “Um escritor resumiu muito bem a relação de quatro anos e meio: Davis fez três grandes favores a Coltrane. Contratou-o, despediu-o e deu-lhe o seu primeiro saxofone soprano”.

Em 1961, John Coltrane inaugurou uma frutuosa ligação à Impulse – “a casa que Trane construiu”, como notou Ashley Kahn no título de um dos seus livros – e aí lançou cruciais registos que são verdadeiros pilares do jazz moderno, começando com Africa/Brass em 1961 e prosseguindo com clássicos como Impressions e Ballads (1963), Crescent (1964), A Love Supreme (1965),  Ascension e Meditations (1966) e o derradeiro Expression (1967), o último disco pensado e aprovado por Coltrane antes da sua morte em Julho desse mesmo ano.

Ao lado do pianista McCoy Tyner, do baixista Jimmy Garrison e do baterista Elvin Jones, e equipado com um novo instrumento num gesto invulgar para um músico que já tinha definido uma voz no tenor, Trane forçou avanços na linguagem e aproximou-se de um lado espiritual na sua música que teve o seu pináculo em 1965 com a criação de uma das mais celebradas obras-primas da história do jazz, o incrível A Love Supreme. Alice Coltrane, a harpista que foi companheira e mãe dos filhos de John Coltrane, recordou nas páginas do livro de Khan o momento em que, após vários dias de reclusão, o seu marido desceu as escadas de casa, com um ar sereno: “Foi como ver Moisés a descer da montanha, foi muito bonito. Ele desceu e havia alegria e paz no seu rosto, tranquilidade. E eu disse: ‘diz-me tudo, já não te víamos há quatro ou cinco dias…’ E ele respondeu: ‘Esta foi a primeira vez que eu recebi toda a música que quero gravar numa suite. Esta é a primeira vez que tenho tudo, estou pronto’”. John Coltrane tinha apenas 38 anos quando gravou A Love Supreme e morreu vítima de cancro no fígado antes de completar 41 anos, no ano de todos os prodígios musicais, em 1967.

Mas a música que deixou atravessa o tempo, oceanos, atravessa culturas e gerações e línguas e volta a soar, viva e perene, pela “voz” de um jovem saxofonista português. “Para mim”, explica Ricardo Toscano, “o que me liga a essa obra é mais o pacto espiritual e não o religioso. Eu não tenho essa cultura religiosa, nem a portuguesa e muito menos a americana. A portuguesa toda a gente a tem até começar a pensar [risos]. Começas a pensar e depois tu decides que nomes queres chamar às coisas em que acreditas. Na verdade, isto nem é uma obra de repertório. Eu acho que é tipo uma obra de arte de matéria-prima, em que revisitá-la é celebrá-la e não tentar torná-la tua. É uma coisa que… Sei lá. Eu tenho muito respeito por isso”. Temos todos. E por isso a vamos aplaudir.



Olha, podemos começar por falar da tua abordagem a esta encomenda incrível? O natural seria replicar o formato de quarteto, mas tu preferiste expandir a coisa, não foi?

Mais ou menos. Ou seja, para mim seria mais fácil abordar este trabalho com um quarteto porque, apesar de ser uma coisa muito livre e com uma matéria-prima bastante infinita, o quarteto parece-me sempre a versão mais fácil de abordar até porque já temos essa referência original. E tudo para que se tenha uma referência é mais fácil de abordar, mas neste caso o convite/desafio veio da Culturgest e eles propuseram fazer um ensemble mais alargado. Pensei, “então e agora, o que é que vou fazer?” Depois pensei, “gostava de ter percussões africanas para ser a cena mesmo tribal, celebração, cerimónia e tal”, só que depois não consegui encontrar percussionistas africanos dos países que eu acho que têm a ligação mais directa com o jazz. Pelo menos residentes cá em Portugal. Tipo Gana, Senegal, malta assim desses sítios que tem aquela linguagem que foi mais incorporada na bateria jazz. Então, pensei: “Bem, já que não há percussões, então vamos pôr uma segunda bateria para ter mais massa sonora, mais poder, mais força, mais tudo”.

Portanto elas vão estar em simultâneo em palco?

Sim, vão estar ao lado uma da outra. Vai ser a escola de samba toda ali [risos]. E depois gostava de ter uma harpa. Harpa também não havia dentro do estilo… sei lá, daquele estilo da Alice Coltrane. É um estilo muito específico, há malta a tocar, mas não como eu escutava isto na minha cabeça…

Não deu para ligar à Brandee Younger, por exemplo?

Exactamente, era uma pessoa como ela é que eu queria. Só que, já viste, isto foi pensado originalmente para Maio deste ano e, de repente, foi tudo à vida…

Chegaste a considerá-la?

Não. Sei lá, se não houvesse pandemia… Pá, era incrível, ela seria a pessoa perfeita para fazer uma coisa destas connosco. Então, não havendo harpa, sei que há malta a tocar harpa, mas a ligação com o jazz é diferente, acho eu. Então, pensei: “vamos ter mais sopros”. Lá está, contribui para a massa sonora, contribui para todo aquele momento de “maionese”, se lhe quiseres chamar assim, de tudo o que é groove, transe, sopros, massas sonoras a cruzarem-se, cores, texturas… Então será por aí o caminho.

Fala-me do resto dos companheiros. Tens o Bernardo Tinoco

Sim, um jovem saxofonista, que até já foi meu aluno há uns anos. Ele está a tocar cada vez melhor, nem sei que idade é que ele tem, para aí 22 anos…

Ele vai tocar tenor?

Vai tocar barítono. A proposta é barítono. Eu quero um barítono ali.

Mas esse não é o primeiro instrumento dele, ou é?

Não, ele agora é tenor. Era alto, agora é tenor.

Eu queria um barítono. O tenor já é muito próximo daquilo que eu toco. Ou seja, eu toco alto, mas ao mesmo tempo a minha abordagem ao alto é um bocadinho… sei lá, não é tão alto. Acho que o tenor e o alto, especialmente a tocar este material e este estilo, assemelham-se bastante, vão ali para zonas de registo do instrumento muito parecidas e o barítono vai dar ali um som de oitava mais grave. Principalmente quando temos um trompete também ali a acontecer, do João Almeida, eu acho que o barítono era o equilíbrio certo para ter estes três instrumentos de sopro, e dar aquela onda… Tipo Sun Ra, estás a ver?

Procuraste mesmo uma coisa de peso não é?

Sim. Quero força. O pessoal está a precisar de força. De levar com força.

O Coltrane, depois de largar o Miles, voltou a tocar com algum trompetista alguma vez?

Não. Ah, voltou! Num disco que é o The Avant-Garde, talvez. Que é ele, o Charlie Haden, Don Cherry…

Tens razão…

Mas é logo a seguir ao Miles. Para aí em ’61. Mas por acaso é bem jogado. Eu acho que ele não volta a tocar [com trompete]. Acho que não volta a haver nenhum trompete na vida dele.



Depois há momentos, no Africa Brass ou no Ascension, mas aí os trompetes estão sempre integrados em ensembles dilatados… Bem, mas falando no Miles, há uma espécie de piada, muito curiosa, que diz que o Miles fez dois grandes favores ao Coltrane: despediu-o e ofereceu-lhe um soprano.

Uau. O Miles ofereceu-lhe o soprano? Não sabia.

Queria colocar-te aqui uma pergunta. Estava a ler a introdução do livro A Love Supreme do Ashley Khan e o Elvin Jones fala do que ele considera ser o lado cultural desse disco, no sentido em que, como ele sublinha, o disco seria uma continuação da sua educação e experiências religiosas. Todos os músicos do quarteto tinham originalmente frequentado a igreja e essa experiência estava imbuída neles desde muito cedo. Portanto, ele vê isso como uma manifestação dessa cultura afro-americana. Então como é que se transforma um registo cultural, como o A Love Supreme, numa obra de repertório, que depois pode ser recriada, abordada?

Isso é uma grande pergunta. Vou tentar responder a isso, mas de uma outra forma. Para mim, o que me liga a essa obra é mais o pacto espiritual e não o religioso. Eu não tenho essa cultura religiosa, nem a portuguesa e muito menos a americana. A portuguesa toda a gente a tem até começar a pensar [risos]. Começas a pensar e depois tu decides que nomes queres chamar às coisas em que acreditas. Na verdade, isto nem é uma obra de repertório. Eu acho que é tipo uma obra de arte de matéria prima, em que revisitá-la é celebrá-la e não tentar torná-la tua. É uma coisa que… Sei lá. Eu tenho muito respeito por isso.

Lembras-te da primeira vez que ouviste o disco?

Já me perguntaram isso. Lembro-me da primeira vez em que teve impacto, o que é um bocadinho diferente. A primeira vez que o ouvi, eu não estava preparado para lidar com esse tipo de sons, tão “primitivos” e tão livres. Eu comecei na música clássica e nós, até certa idade e até nos surpreendermos com certas coisas, procuramos tudo o que é mais ou menos “perfeitinho” ou “limpinho”. Isso é o problema de hoje em dia [risos]. Mas já lá vamos. Eu acho que as pessoas, à medida que vão crescendo e envelhecendo, desbloqueiam certas frequências nos ouvidos. Perdem umas, desbloqueiam outras. Mas eu acho que só quando desbloqueei algumas coisas é que fui capaz de ouvir isto. Por exemplo, eu acho que só comecei a ouvir este disco e a tentar descobrir o que é que se passava ali depois de começar a ouvir o quarteto. O Coltrane dos anos 50, até ’59 era uma coisa e a partir de ’60 é outra. Todos sabemos. Mas, para mim, era mesmo isso. Ao ponto de — não tem nada a ver com o Coltrane — só quando comecei a gostar desta altura é que comecei a gostar do Wayne Shorter. Porque é um gajo que tem um som nada óbvio. É meio cavernoso, meio imperfeito e não sei quê. Hoje em dia é aquilo que eu mais gosto. São esses gajos “imperfeitos”.

Eles contam aqui no livro uma história deliciosa. No primeiro concerto do Coltrane na Europa, em Paris, em ’60, ele é vaiado, exactamente porque as pessoas estavam à espera que ele fosse tocar…

Isso é com o Miles. Isso há em disco.

Exacto. Eles estavam à espera que ele fosse tocar as notas bonitinhas do Kind Of Blue, mas ele já estava noutra.

Esse disco é incrível. Esse disco é um verdadeiro momento de história de arte em cruzamento. Caminhos diferentes a acontecerem ao mesmo tempo. Que é tipo, o Coltrane a começar a explorar todo o seu período modal e o Miles a começar a ir para a zona do segundo quinteto. Esse concerto é incrível.

O verdadeiro “both directions at once”… Olha, e é um disco ao qual tu regresses regularmente, o A Love Supreme?

Sim. Às vezes fico algum tempo sem o ouvir e depois ouço e penso, “fogo, isto é a coisa mais linda do mundo.” Eu acho que o facto de conseguir sentir isso é porque descubro sempre alguma coisa em que não tinha ainda reparado de cada vez que o ouço. Uma coisa que eu acho que é importante ouvir neste disco, para quem quer estudar mais a sério, é ouvir todos os takes. Ouvir o concerto ao vivo, ouvir os alternate takes, ouvir os takes que pararam a meio… Tudo aquilo que existe. Porque às vezes, quando estamos mais afastados das coisas, temos uma visão muito mais angelical, ou divina, num pedestal, das coisas. As coisas são o que são. Se fosse possível pô-los agora aqui, toda a gente que gravou, tanto nos alternate takes como não… Só o Archie Shepp é que está vivo, da malta que gravou. Mas especialmente a malta do quarteto, eles iam dizer-te “esse foi o take que ficou”. Ou seja, não é tipo “a grande cena”. Para eles isto era um disco. É música. E a cena incrível é que eles estão a tocar com esse desapego que hoje em dia não está assim tão presente a identificar a coisa.

Estás a referir-te àquilo que dizias da nova geração, que tenta sempre tocar tudo “bonitinho” e “perfeitinho”?

Não é só tocar bonitinho. É a relação com as coisas. É fazer muita cerimónia com as coisas. Para estes gajos, a cerimónia está na música, não está em não falhar ou não sei quê. É o momentum. Esta malta vivia muito mais com o momentum presente do que com a expectativa de estar em estúdio e não perdia muito tempo a pensar “agora tenho de fazer um grande take.”

Havia discos que saíam bem e outros que saíam menos bem, mas cada um representava algo, o tal momento.

Ya. E vê-los a falhar, para mim, é a coisa mais linda que existe. Porque é humanizá-los um pouco, não é? Isto tudo para dizer que acho que é importante ouvir todos os takes. E os takes que ficaram no disco, obviamente, dá para ouvir porque é que são esses os takes. Mas os outros não são… Ou seja, são menos brilhantes ou têm menos narrativa, ou o que quisermos, mas também têm aquela cena, aquela energia. Uns vão mais directos ao assunto, menos bonitinhos. Mas eu acho que é muito fixe. Nós, para tocarmos isso, não sei se o resto da malta foi fazê-lo ou não, eu fui ouvir tudo. A versão ao vivo já conhecia. A de Paris, acho eu. Já tinha ouvido há uns anos. É incrível. Não tem nada a ver com o disco. Só por isso já mostra como é que eles tratavam da matéria-prima.

Tu pensaste nalgum ritual para sexta-feira, antes do concerto? Como é que vais abordar a coisa? Em termos humanos, vai haver algum tipo de preparação? Há um jantar especial antes? [risos]

Não sei. Ainda não pensei nada sobre isso. Mas espero que o processo até sexta-feira tenha força suficiente para pôr cada um de nós no seu sítio. O importante não é estarmos todos no mesmo sítio enquanto colectivo. É mais importante cada um estar no seu sítio, no seu zen, se lhe quiseres chamar assim, antes de tocar isto. Se o jantar ajudar, fixe. Sei lá. Por acaso não sei, mas acho que o início do concerto, que eu não posso revelar, acho que vai ajudar a trazer toda a gente para o seu sítio.



O que é que o teu rider de hospitalidade pede para o camarim?

Epá, ainda não tratei disso [risos].

Mas tem de ter lá um whisky, não?

Sim [risos]. Ou um medronho. Vou trazer do Algarve.

Isto vai ser gravado?

Vai ser gravado para a RTP Palco, acho eu. Ou seja, vai ficar disponível.

Em vídeo?

Video/áudio. O segundo dia, que acho que não vai ser gravado, é a sessão extra que começa às 11 horas da manhã! Já viste isto? Como é que se toca jazz às 11 horas da manhã? Como é que se toca A Love Supreme às 11 horas da manhã? Nem às 9 horas da noite, não é? [risos]

É como ir à missa, no fundo…

É como ir à missa. Exactamente.

Essa gravação para a RTP vai ter também uma edição discográfica?

Não sei. Eu gostava que aquilo soasse bem, primeiro.

Então, isto é um espectáculo que tu vais querer voltar a fazer?

Sempre que tiver convites para tocar isto eu estou cá. Tenho mais dois concertos marcados com isto, mas é só com quarteto. Em Braga, dia 30 de Janeiro, e Espinho, dia 29 de Janeiro. Mega Tour Norte [risos]. [Dias] 29 e 30. Mas é isso. Vamos tocar isso mais algumas vezes. Agora com um septeto, hoje em dia, é bastante difícil, logisticamente. Devia acontecer mais, sei lá, em Serralves, por exemplo. Podiam chegar-se à frente. Mas pronto, isso é com eles.

Depois há os duetos. Ainda durante a pandemia, o Pedro Santos desafiou-me a fazer a suite mas em formações mais pequenas. Pensei em fazer duetos. No primeiro andamento não fiz dueto. Fiz um trio com as duas baterias. No segundo andamento estou só com a bateria. Terceiro andamento com contrabaixo e quarto andamento, o “Psalm”, só com o piano. Sobre isto, se me perguntares se vai sair em disco, não sei. Mas sei que a música ficou boa. Foi um dia das 10 horas às 17 horas sempre a bombar.

Gravaram onde?

No palco da Culturgest. Lá não tive noção. Mas quando cheguei a casa, ouvi… Aquilo soa [bem]. Isso é que podia dar um disco. Isso é muito mais inesperado. Não sei se já fizeram isso. Não interessa se já fizeram ou não. Mas sei que é uma maneira de abordar esta música noutras instrumentações. E eu acho que a música soa bem. O áudio, pelo menos. Confesso que me distraí um bocadinho a ver o vídeo. Já pedi aos gajos para fazerem planos com coisas assim mais paradas, mais calmas. Se não, parece um bocado videoclipe, às vezes. São muitas coisas a acontecer. Eu nem me importava que fosse só a música com uma foto nossa [risos].

Um disco destes — e tu ressalvaste o lastro espiritual profundo que este disco tem — ressoou de uma maneira especial num ano como este?

Por consequência, sim. Porque, supostamente, não havia pandemia quando me convidaram. Acho que agora faz mais sentido do que nunca fazer este concerto ao vivo e tentar espalhar essa mensagem. Sendo que essa mensagem — e não quero tirar o lado romântico à coisa — A Love Supreme é, claro, um amor supremo, mas é muito mais individual do que colectivo. Claro que é bom espalhar isso. É bom propagar isso para as pessoas. Só que esse A Love Supreme é muito mais sobre coragem e auto-conhecimento. Auto-dissecação. Se um gajo olhar para os quatro andamentos, aí no livro do Khan deve estar isso que eu vou dizer mas de uma outra forma. É a minha interpretação: o primeiro andamento é o transe, é o tornares-te consciente de ti próprio, é um mantra; o segundo andamento, “Resolution”, é a resolução daquilo que tu queres fazer, aquilo para que queres apontar o dedo, tudo aquilo que o gajo toca, toca a rimar dessa forma; terceiro andamento, perseguição e celebração, mas perseguição, que é mudar a coisa, o cântico feliz; e o quarto andamento é a reflexão, tipo um clímax, em baixo, como se fosse descanso, reflexão, oferta… Tipo “isto foi o que eu alcancei, por isso toma lá.” A primeira vez que eu pensei nisto foi quando me perguntaram o que é que eu achava de cada andamento. [Estala os dedos] num segundo, pensei sobre isto. Porque eu acho que isto é que é o A Love Supreme. É um processo. Daí ser uma coisa à qual podes voltar muitas vezes na vida e, ao longo dos tempos, cada vez que voltas a esse processo… “Agora vou fazer uma retirada. Vou fazer isto”. Para mim próprio. Pode não ser um concerto. Pode nem ser nada. Mas isto é um processo pessoal. Daí achar que é fixe fazer isto para as pessoas. Isto encoraja a vulnerabilidade, a exposição, o dar o corpo à bala sem ter a certeza de qualquer consequência positiva. A piada de tocar jazz e música é exactamente essa.

Próximos passos, para 2021?

Acho que vem aí um disco. E, ainda não está completamente confirmado mas, se calhar, no fim de Maio tenho uma tour com o meu baterista favorito, cá. Depois posso dizer em off, mas não agora porque ainda me falta confirmar um dos concertos, que vai ser crucial. Se isso acontecer, para mim, é história a acontecer. Mas o disco vem no primeiro trimestre, acho eu. Em trio e sairá em vinil, penso que pela Clean Feed.


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