pub

Fotografia: João Duarte
Publicado a: 02/10/2024

10 músicos em permutações criativas a dar sentido ao nome dos Encontros Internacionais de Jazz.

Residência Artística do Festival Jazz ao Centro’24: acordar num decateto e partir em mais seis investidas

Fotografia: João Duarte
Publicado a: 02/10/2024

“Acordai / acordai / raios e tufões / que dormis no ar / e nas multidões / vinde incendiar / de astros e canções / as pedras do mar / o mundo e os corações”. Assim se escuta parte da letra de Gomes Ferreira na eterna música “Acordai” de Fernando Lopes Graça, sempre e quando cantada em coros. Foi este mote melódico, o da música do cancioneiro que se tornou de todos nós, que escutámos a certo momento do concerto de Tentet — 10 músicos reunidos em residência artística entre os dias 24—28 de Setembro, na 22ª edição do Festival Jazz ao Centro – Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra. Estão em palco, em casa própria — o Salão Brazil, gerido pelo Jazz ao Centro Clube (JACC) —, nesta noite de 26 de Setembro na casa-abrigo do jazz na baixa da cidade, após as primeiras chuvas que abriram o Outono. Eles e elas são: Karoline Leblanc (piano), Pat Thomas (electrónicas), Ziv Taubenfeld (clarinete baixo), Luís Vicente (trompete), Rachel Musson (saxofone tenor), Gonçalo Almeida e Olie Brice (contrabaixo), Hannah Marshall (violoncelo), Marcelo dos Reis (guitarra eléctrica) e Mark Sanders (bateria). O palco está repleto de vozes, que habitam o panorama jazzístico europeu e que surgem com frequência em palcos por perto. O concerto faz-se de duas partes, com intervalo, cada uma com duas peças, a revelar toda a matéria-prima disponível. Ouve-se como se um disco duplo se tratasse — uma ideia promissora, em que se imagina um lado A, B, C e D, numa capa aberta de par em par. No decurso das 10 vozes e contornos individuais, vão-se formulando diálogos parcelares, como que a prenúncios do que os dias trarão. Ou, noutros momentos, oportunidades de imaginar novas possibilidades de agrupações que não as programadas para os próximos dias de festival com estes músicos. Foi bela a disposição de palco, com o piano à esquerda, os discretos comandos das electrónicas em mesa anichada na concavidade do piano — em estilo mesa de cartomante —, atrás o trio de cordas acústicas — os dois contrabaixos mediados pelo violoncelo —, na frente o trio de vozes sopradas — a trompete no meio das palhetas (clarinete baixo e saxofone tenor) —, no outro topo a bateria, que não mais saiu desse lugar (nos outros 2 concertos deste palco), e no espaço que restava a guitarra eléctrica. Dia 26 de Setembro, o primeiro dos sete concertos destes músicos nesta estadia em Coimbra.     

O plano foi sendo gizado na mente de Luís Vicente e recebeu na estrutura do Jazz ao Centro o pleno enquadramento para ter lugar nos Encontros deste ano. Aliás, a justificar uma vez mais o nome do festival como Encontros Internacionais, como espaço de criação. Outras edições foram marcadas por residências internacionais, como em 2019, com o coletivo DOEK de Amesterdão, em 2020 com o tricollectif de Paris, e em 2021 estiveram All Ears de Oslo. Desta feita, foram os músicos vindos da esfera do clube londrino Vortex Jazz a juntarem-se em Coimbra aos músicos portugueses e outros que escolheram viver por cá. No entanto, e como nos detalhou Vicente em entrevista, ele que esteve envolvido noutras residências: “Isto parte da vontade e necessidade de estreitar laços entre a comunidade e o JACC tem este espaço que permite albergar e gravar”. Vicente que se atirou para este plano pela relação prévia que mantém com a cena inglesa, também partindo de uma residência com o pianista Alexandre Hawkins e o percussionista Roger Turner em 2017, junto ao saxofonista John Dikeman e ao contrabaixista Hugo Antunes, da qual resultou Corda Bamba pela JACC Records. Mas o vínculo aos músicos desta residência começa pela ligação a Brice, que escutou num disco o trompete de Vicente através do baterista Onno Govaert, que entrava também nessa gravação. A permuta e partilha constante de músicos como mote maior no jazz a funcionar. Vicente que recorda como impactante foi ver um concerto em Ljubljana de Steve Beresford (piano), Sarah Gail Brand (trombone), John Edwards (contrabaixo) e Mark Sanders (bateria). “Fiquei impressionado — este baterista é fora de série [Sanders]”, recorda Vicente, que comentou mais tarde a Brice: “Que tal convidarmos o Mark Sanders? ‘Uau! É o meu favorito’, respondeu-me”. Estavam estabelecidos os dois primeiros nomes ingleses. Mas para Vicente congeminar os restantes foi preciso a sua passagem por um par de concertos para esse trio então formado: “Tenho uma collab com eles os dois” — editaram Unnavigable Tributaries em 2020 pela Multikulti Project. 

Este trio, que estava contido nesta residência e que convidando Pat Thomas passou ao quarteto Vicente / Sanders / Brice / Thomas, apresentou-se no palco do Salão Brazil na noite de 27 de Setembro. Foi então o momento de pôr à prova um ir mais além. Thomas agora ao piano, onde mais se tem feito notar no jazz desde 1979. A sua destreza e intensidade ao piano faz das teclas em definitivo um lugar de acção percussiva. “Havia uma vontade do trio tocar com o Pat Thomas”, referiu-nos Vicente, e “o festival permitiu que isso acontecesse”. Aliás foi o concerto que se esperava de maior fulgor, com Vicente a energizar todos os restantes companheiros de palco — acrescentando mais ao que já era tanto. Sanders foi criador imprescindível do ritmo estonteante que Brice serviu em doses guarnecidas à medida. Vicente tem boas razões para recordar este dia em que os rios afluentes do seu trio inglês passaram ao regime de cheias pelo convidado desejado e trazido, em que transbordou pelas teclas do piano a música de palco.   

Mas o primeiro dia de ocupar distintos espaços da cidade pelas novas investidas de jazz começou com um trio num palco inusitado — a cave da Casa das Artes Bissaya Barreto, um espaço anichado e esconso onde pouco restava de altura além do contrabaixo. Um trio formalizado pela primeira vez, com Ziv Taubenfeld em clarinete baixo, shruti-box e gongo de mão, Gonçalo Almeida em contrabaixo e apetrechos, e Rachel Musson em saxofone tenor. Um trio em novidade e em acústico, mais uma rara oportunidade de ouvir o som natural do jazz livre de processamentos. Não contudo que tenha havido com estes três instrumentistas um conjunto de alterações sonoras, foi sobretudo um trio experimental de jazz em que nos instrumentos se aplicaram técnicas extensivas para redimensionar o que se espera de cada um à partida. Almeida serviu-se de um preparado contrabaixo em muitos momentos, Taubenfeld fez do uso simultâneo do clarinete e do fole de harmónios (shruti-box) acionados a pedal um encanto inesperado, em que Musson revelou, ora em timbre limites, ora em pulsantes fraseados, um tenor atrevido e capaz de desferir amplitudes contundentes. Foi um trio a quatro vozes, que tem campo de sobra para caminhar e levar gente atrás de si. Foi uma programação partilhada entre o Jazz ao Centro e o Festival Apura que teve neste espaço da Casa das Artes entre os dias 26 e 28 de Setembro emergentes manifestações de música e outras artes de palco. 

Para o início de noite foi o átrio do Museu Nacional Machado de Castro programado como palco para receber outro trio em estreia — Leblanc / dos Reis / Marshall. O Jazz ao Centro no regresso a este museu que tem sido um dos locais de concertos ao longo da última década e meia de festival. O último a ter lugar foi em 2022, com a flautista de Chicago Nicole Mitchell, a primeira mulher a presidir à lendária Association for the Advancement of Creative Musicians — AACM. Esta noite de 27 de Setembro era o momento de outras duas criadoras de momentos pioneiros se integrarem num ambiente entre a guitarra escultora de sons de Marcelo dos Reis, edificada como fogaréus, que funcionou bem mais como emissor sonoro do que como canal dialogante. Num espaço desenvolvido, sempre que foi possível ser livre das amarras das cordas preparadas, entre Leblanc e Marshall foram teluricamente comunicadas ondas de pensamentos abstractos que desenharam uma música atonal, não idiomática. Num lirismo radical ficaram apontadas ideias que fizeram entender que houve um duo primordial dentro deste programado trio, em que momentos houve de um idioma de rara ocorrência, que se praticado levará a uma linguagem que se quererá aprender para fazer uso dela. O piano de Leblanc tem essa lírica performática, rica e vasta que faz uso simultâneo de uma mão nas cordas e outra fora, nas teclas, e que se liga em pontes impermanentes ao desenho de arcadas, pizzicatos e staccatos dos braços de Marshall e do seu violoncelo. Leblanc e Marshall pode muito bem ser um dos melhores produtos de futuro vindo desta residência se revista como campo de cultivo.

“O formato de residência tem sido feito deste combinar de diferente permutas entre músicos ingleses e portugueses, assim como tinha sido feito nas residências anteriores do festival”, esclarece Vicente ao Rimas e Batidas, para se entender melhor a reorganização dos trios e quartetos programados dos músicos apresentados em conjunto no decateto. Como detalha na construção do plano Vicente: “Vi e falei, juntamente com o José Miguel [Pereira, do JACC] e com o Tony Dudley-Evans [consultor de jazz, dos programas Jazzlines na Symphony Hall de Birmingham e do Festival de Jazz de Cheltenham], que é um entusiasta que gosta de se envolver com tudo isto”. “Felizmente todos aceitaram vir”, juntando-se aos “cinco músicos que têm desenvolvido um trabalho significativo em Portugal”, complementa Vicente para justificar os restantes nomes. “Conheço a Karoline [Leblanc] há imensos anos, tenho discos gravados com ela, e agora vive em Portugal. Assim como o Ziv [Taubenfeld] que vive por cá. São músicos que têm acrescentado um conteúdo significativo à cena [jazz] nacional”, detalha o trompetista. 

Recordam-se ainda as passagens, em diferentes momentos, de Vicente pelo próprio Vortex Jazz Club, a última no contexto do London Jazz Festival de 2023 para um concerto de improvisação livre com Andrew Lisle (bateria), Rachel Musson (saxofone tenor) e Caius Williams (contrabaixo). “Adorei tocar com ela [Musson] — super fixe! E sobre Hannah Marshall: “Já conhecia o trabalho dela” — foi, por isso, um consequência juntar-se, num convite aceite para estar presente em Coimbra. 

A ligação de Vicente com Marshall, Brice e Musson escutou-se em sintonia telepática no concerto que os trouxe em estreia absoluta no novo espaço Semente Atelier, no Seminário Maior no final de tarde de Sábado dia 28 de Setembro. Recorde-se que a primeira ligação musical de Hannah Marshall a Luís Vicente foi nesta residência, num registo a quatro em acústico. Vicente, que na conversa tida confessava mais tarde que: “Eu, aliás, tenho no formato acústico o que privilegio mais, se puder tocar em acústico… é só acústico. Eu não tenho boa relação com o microfone”. Foram sublimes no acto de tocar, leves nas linguagens praticadas, mas profundos no enraizamento musical. Foi uma imersão feita de um ensemble de jazz na esteira de embalo como se uma camerata fosse. Ouvimos Vicente numa voz lírica menos comum do efervescente sopro a que nos tem habituado. Revelou uma capacidade sedutora junto ao violoncelo de Marshall e ao contrabaixo de Brice, e ombreando a vibrante voz da palheta do tenor de Musson. E boa parte do tempo ouviu-se aquela música de olhos fechados, pela certeza de que estávamos no impulso certeiro para um lugar ainda melhor. Um concerto sublime, e que produziu uma das melhores expressões desta residência. 

A intervenção solitária desde o grupo de criadores em residência coube ao decano músico do colectivo. Pat Thomas tem-se dedicado a múltiplos instrumentos do campo da improvisação eletroacústica, utilizando programações em computadores e gira-discos. No seio do decateto, no concerto de apresentação da residência, abordou dois écrans como comandos de manipulação electrónica de sons — fazendo um uso compenetrante e estimulante sempre que escutado com detalhe. Mas o seu instrumento são as teclas do piano, para o qual as mãos são linhas condutoras e extensão do seu pensamento musical. Contudo, neste dia 28 de Setembro, inscreve uma nova página na sua história de vida. No Seminário Maior, no Salão de São Tomás de Aquino, aborda, destemido, pela primeira vez um órgão de tubos que foi construído pelo organeiro Ludwig Frank em 1980 e remontado por António Simões em 2004. Mas Pat Thomas nunca tinha sido organista, nem dele sabia os preceitos funcionais de base. Esse fio da navalha absoluto revela-se tentador e incontornável. Thomas faz um uso nada canónico, nem das suas mãos hábeis em teclados nem tão pouco do órgão de tubos como instrumento de melodias. O que acontece em seguida é uma improvisação sonora decorrente da manipulação dos manípulos de harmonias e vozes do órgão. O que Thomas constrói é antes uma corrente contínua de sucessões de harmonias fazendo uso dos puxadores, os registos existentes como tirantes na consola anexa ao teclado. É uma peça improvisada e plasmada na ideia da música drone, várias notas pedais a perdurarem no espaço. Ao lado do órgão de tubos residente do Salão estava um piano de cauda, espaço e lugar de peixe na água instrumental de Thomas. Foi então ver e ouvir um piano feito de umas mãos monkianas que desconstruíram o que se pareceu com o tema standard “All the Things You Are” de Jerome Kern, como reportou Nuno Catarino para a jazz.pt. Thomas termina e sai apressado. Não irá esquecer esta passagem pelo Seminário Maior e muitos de nós provavelmente vamos recordá-la em conversas.  

O derradeiro concerto da residência juntou em estreia o quarteto Leblanc / Taubenfeld / dos Reis / Almeida / Sanders. Antes da investida sonora ser palco no Salão Brazil, no serão deste dia 28, havia coincidências dentro desta residência de sete concertos, que ressaltavam. A bateria de Sanders mantivera-se no placo do Salão desde a chegada do músico a Coimbra — qual peça escultora de ritmos a pedir a chegada do artista. As teclas do piano de Karoline Leblanc tiveram em todas os concertos emparelhadas com as cordas da guitarra de Marcelo dos Reis. O contrabaixo de Gonçalo Almeida também sempre teve por perto a palheta e o corpo ressoante do clarinete baixo de Ziv Taubenfeld. Mas isso não foi lugar à repetição na música. É disso muito feito a contínua busca do ideal da música livremente improvisada. Leblanc desponta em uníssono com os demais um longo tema na vertigem das suas teclas. Fá-lo de modo a libertar centelhas, chispas de sonoridades que convocam ao delírio condutor. Sanders desde uma bateria que em muitos e decisivos momentos foi tocada de pé, numa abordagem dedicada aos tímbalos, foi a sustentação do quarteto, cozeu tudo e todos, foi rede de suporte. Almeida pôde uma vez mais sair dos campos canónicos do tempo do contrabaixo e explorar as margens, os sons através das cordas preparadas por pauzinhos, num tampo e ilhargas que serviam de suporte deslizante de baquetas que se assemelhavam a guloseimas coloridas de levar à boca. A guitarra eléctrica de dos Reis, desta feita sem aparentes objectos intrusos, foi mais atmosfera densa de texturas, e lá se atreveu a fazer investidas escala abaixo. Voltou a intrometer-se em caminhos sem saída e levando os restantes companheiros de viagem a mudar de rumo. Ouvir Taubenfeld foi sentir um clarinete baixo que pôde por momentos soar ao metal de um saxofone. A capacidade de densidade corpórea que este palhetista imprime no seu instrumento, que luzia em velha patine, fá-lo adquirir dotes de transformação da matéria sonora, da madeira ao metal, muitas vezes um corpo único entre músico e instrumento. Foi um final sinérgico entre músicos e entre músicos e plateia que encerrou a passagem fulgurante destes criativos inspirados e inspiradores.         

Tudo havia começado nos dois dias prévios aos concertos, feitos de conversas e ensaios. “Isto não tinha acontecido fisicamente, mas já estava a ser cozinhado na cabeça de cada um”, confessa Vicente sobre o antes da residência. As investidas de trios e quartetos trabalharam em improviso livre em cada um dos palcos dos dias seguintes à junção em concerto do decateto. “Só se ensaiou e trabalhou a música do decateto, tudo o resto foi… ‘ok, vamos!’”. A propósito do ensaio, houve que apresentar o tema do Lopes Graça: “Conhecendo esse tema, senti e vi que ele é festivo e simbólico pelos 50 anos do 25 de Abril, sendo Lopes Graça um libertário e tendo em conta a morfologia da peça e do ensemble que estava em palco. ‘Ok, isto vai funcionar’”, partilha Vicente a ideia que teve e que asseguramos ter que funcionou muito bem. “Quem toca esta música [jazz de improvisação livre], arrisco [dizer] que todos eles são pessoas com valores humanistas que simbolizam todo o partido disto. Eu não vou para palco com uma pessoa que não partilhe esses mesmos ideais”. À parte do trio inglês de Vicente, todas as recombinações foram inéditas: “São todas pessoas com os seus contornos, cada uma é uma personagem. Isto foi um congeminar de algo entre músicos que nunca tinham tocado [juntos] e o confluir todas essas ideias”. Vicente remata a conversa tida com um olhar para o que daqui poderá resultar: “Eu acredito que potenciais discos foram gravados durante estes dias, e um disco é sempre um motivo para algo mais.”


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos