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Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 11/03/2022

A sala enquanto instrumento.

Rescaldo’22 – Dia 5: a fusão do som com a espiritualidade do espaço e as madeiras que cantam

Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 11/03/2022

O Festival Rescaldo demonstra o que de melhor se faz em Portugal ao nível da música de vanguarda. E é uma referência cultural incontornável da cidade de Lisboa. Neste caso, música de vanguarda traduz-se para música electrónica, música de improvisação e os vários espectros da música rock e jazz. É um festival de olhos postos no futuro que não esquece as influências do passado. A sua programação é composta por projectos artísticos que se destacaram no ano anterior e por artistas emergentes que o festival considera relevantes para o enriquecimento da produção musical contemporânea portuguesa. A 12ª edição do Rescaldo terminou na St. George’s Church com as actuações de Banha da Cobra e Pedro Carneiro. Infelizmente não conseguimos marcar presença no quarto dia do festival, que contou com actuações de Onda Xoque, Medusa Unit, Hetta e DJ set de Rodrigo Amado & Tó Trips.

Falemos, então, do encerramento. Banha da Cobra é um projecto de investigação e intervenção sonora formado pelos músicos Mestre André e Carlos Godinho. A sua área de investigação cruza gravações de campo que exploram a electroacústica de lugares específicos nas cidades, mas também fora delas. As gravações de campo do primeiro são os sons inerentes à matéria e aos elementos presentes naqueles lugares e as ressonâncias dos instrumentos de percussão do segundo tocados nos mesmos. O imaginário deste projecto passa pela idealização de paisagens sonoras que tocam as qualidades de ritual, artesanal e tradicional. Estas características estão materializadas nos instrumentos de Carlos Godinho, um conjunto muito diversificado de percussões e sopros que vão desde conchas, chocalhos, chifres, flautas e pequenos bongos.

A ressonância da St George’s Church sublinhou as qualidades anteriormente referidas e a sua reverberação foi de encontro do imaginário ritualístico e etéreo que as paisagens musicais sugerem. À medida que Carlos Godinho tocava os seus instrumentos, Mestre André fazia loops dos sons dos mesmos, manipulando-os e acrescentando efeitos. Simultaneamente, lançava sons e batidas do seu computador que se agregam à paisagem. As suas apresentações são composições em tempo real que partem de pequenas sugestões sonoras e que pouco a pouco se vão entrelaçando em crescendo. Suspensões e sustentações fazem parte das suas composições e são parte fundamental para que o público mergulhe emocionalmente na atmosfera por eles criada. Sendo este espaço uma igreja, é obvio que a aura da religiosidade esteve presente durante este concerto, no entanto, os músicos souberam inverter isso e torná-la em espiritualidade, relembrando-nos que uma não é necessariamente sinónima da outra e que a alquimia dos sentidos é, porventura, o mais importante para nos conectarmos com o mundo não material.

Findada essa apresentação, o espaço manteve-se mas mudou quem ditava o som. Pedro Carneiro, além de percussionista e virtuoso da marimba, é também compositor, instrumentista e chefe das orquestra da Câmara Portuguesa e da Jovem Orquestra Portuguesa. O seu trabalho artístico desenvolve-se na música clássica e contemporânea. Inventou vários maletes e paus de marimba, assim como um pedal amortecedor do mesmo instrumento. As suas invenções são hoje em dia utilizadas por percussionistas de todo o mundo. Nos últimos anos, o seu trabalho de composição musical tem se entrelaçado com outras áreas artísticas como a dança, o teatro e o cinema.

O concerto na St George’s Church foi maravilhoso, a ressonância do espaço enalteceu a qualidade do som da sua marimba, realçando o seu virtuosismo. Os microfones overheads instalados por cima do músico foram fundamentais para a experiência sonora do público porque capturaram não só o som da marimba, como também a ambiência da sala. À semelhança do concerto de Banha da Cobra, a composição deste espectáculo foi feita em tempo real através de improvisação. A marimba de Pedro Carneiro é muito especial. As madeiras que a constituem são provenientes do Belize e são consideradas raras, como explicou o próprio no início da actuação. Nas palavras de Pedro Carneiro, “esta madeira canta”. Ao longo do concerto o músico português vai trocando de maletes, demonstrando as múltiplas qualidades sonoras da marimba. As composições improvisadas deste concerto atingem uma extrema sensibilidade. O ritmo e a melodia das mesmas são ondulantes, atravessam vários estados, por vezes mais acelerados, outras vezes mais lentos. A melodia por vezes é mais brilhante e aflorada, outras vezes mais seca e crua. Os momentos de pausa são essenciais porque se reflectem em respirações necessárias à composição. Pedro Carneiro explora a marimba como um todo tocando em todas as suas partes, partes estas não muito óbvias à primeira vista, como é o caso dos tubos de ressonância do próprio instrumento que utiliza para explorar as suas diferentes tonalidades.

Salientamos ainda a presença da associação sem fins lucrativos Chili Com Carne neste último dia do Festival Rescaldo. O trabalho desta associação materializa-se na organização de exposição e em diversas publicações. A sua prioridade passa por privilegiar a independência do autor, entendida como liberdade e autonomia de critérios do produtor de objectos artísticos, acentuando a diversidade de formas e conteúdos que caracterizam a expressão artística e cultural contemporânea. No conjunto de livros expostos na sua banca, salientamos a publicação Isto Vai Acabar Em Lágrimas que celebra os 30 anos da SPH e os 20 anos da Thisco, duas editoras importantíssimas e um tanto esquecidas do panorama musical português de vanguarda.

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