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Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 08/03/2022

Ocupação, visuais e instinto.

Rescaldo’22 – Dia 2: para todos os (excêntricos) gostos

Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 08/03/2022

O segundo dia do Festival Rescaldo levou-nos ao Centro Cultural de Belém para nos transportar para o universo de três projectos musicais bastante distintos, mas que se tocam nas entrelinhas. Num espaço de duas horas, vimos um solo, um trio e um octeto abordarem de forma bastante diferente composição musical e o espaço em palco, criando também sempre um lado performativo (uns mais intencionais, outros mais orgânicos) que acompanhava o som.

A inauguração da noite ficou a cabo de Vasco Alves, o mestre da exploração da gaita-de-fole. Com apenas uma luz azul apontada ao centro do palco, o concerto de Vasco foi curto mas bastante incisivo nos variados métodos com que desconstrói o som do seu instrumento de eleição: o resultado de juntar duas notas dissonantes (com a ajuda de um computador a lançar sons com timbres semelhantes ao da gaita), os ligeiros movimentos de dedos que fazem as notas deslizarem entre elas como se de um violino se tratasse, jogos com a proximidade a um microfone ou brincar com o próprio som reverberante da sala. Todos estes esquemas foram explorados na primeira parte do concerto, que depois seguiu um rumo um pouco diferente, mais focado em drones e frequências graves, com uma abordagem mais brutalista ao instrumento. Na verdade, muita pouca gente acreditaria que os sons industriais e mecânicos que estávamos a ouvir vinham somente de uma gaita-de-fole que, tocada de certa maneira, questiona até às fundações a noção dos limites sonoros que um instrumento analógico consegue atingir à primeira vista – recorrendo apenas a um jarro com água, criava efeitos no som que estavam em constante mutação, tornando-o mais grave e cheio. E enquanto existirem músicos como Vasco Alves, que fogem à normatividade e tentam sempre abordagens fora da caixa, só podemos esperar que esta não vá ser a última vez que este fenómeno nos vai surpreender.

Findados os 15 minutos à Belenenses, que nos deixaram com vontade de ouvir mais, foi a vez de Toda Matéria tomar as rédeas. O trio composto por Maria Reis na bateria, Sara Graça na voz e Joana da Conceição nas electrónicas cria a cada concerto um conceito diferente, que começa a explorar sempre de raiz, o que faz com que cada apresentação seja ainda mais especial. Todos os concertos o são, na verdade, mas, quando sabemos que não vai haver forma de reouvir o que nos foi apresentado, a sensação de estarmos a presenciar uma experiência única fica ainda mais apurada. 

O tema deste concerto foi a fenestração, “conceito que na botânica está ligado a uma forma de sobrevivência através da condução e partilha de luz – o corpo da folha que se transforma, abrindo brechas para que outras folhas recebam a luz prosperem –, e que na acústica humana se manifesta em vibrações que conduzem a audição ao maior número possível de células”, o que explicou desde logo as esculturas sobre rodas parecidas com plantas fictícias que as artistas transportaram ao entrar em palco. O espetáculo focou-se primeiro numa espécie de performance entre as três figuras que se moviam entre o palco, brincando com as sombras que se criavam nas intersecções entre elas, até que Joana Conceição inaugurou o lado sonoro com sons tenebrosos vindos do seu sintetizador, que depois foi acompanhado pela voz de Maria Reis e, mais tarde, pela bateria, que inaugurou um momento diferente e intenso, rasgando a sala com ritmos simples e orgânicos que se iam transmutando à medida que acompanhavam o progresso dos sons electrónicos e da voz coberta de efeitos. O resultado foi uma experiência que navegou entre a música exploratória, a performance e uma mistura interessante entre o andamento e energia do krautrock com percussões que nos remetem mais ao jazz e a artificialidade que a voz de Sara Graça ofereceu, trazendo a música para o século XXI. Um happening que nos marcou pela energia solta e gritante resultado de três artistas que trabalham juntas para chegarem através do som ao maior número possível de células.

Terminada a primeira hora de concertos, chegou a vez d’O Carro de Fogo de Sei Miguel nos levar numa viagem por elementos, cores, texturas e quadros que o trompetista compõe, sempre com a ajuda da sua fiel banda repleta de elementos de luxo como Fala Mariam no trombone alto, Nuno Torres no saxofone alto, Bruno Silva (Ondness) na guitarra elétrica, Pedro Lourenço no baixo, André Gonçalves nas electrónicas, e Luís Desirat e Raphael Soares nas percussões. Num círculo, os músicos criaram um palco ainda mais central para Sei Miguel, que com a sua simples presença instalou uma aura que definiu o ambiente do concerto, sendo também ele o responsável pelas primeiras notas que ouvimos.

Talvez o maior desafio quando oito músicos tocam em simultâneo seja que a experiência não se torne overhwelming, que tantos sons distintos nos façam perder o foco e o propósito, e que a clareza tímbrica se desvaneça em prole de uma densa parede de som. Neste caso, em nenhuma parte do concerto nos sentimos perto desta sensação: apesar dos músicos apresentarem abordagens que fugiam ao minimalismo, o espaço e o silêncio que cada um tinha “pautado” permitia que os sons estivessem constantemente a aparecer e desaparecer, criando um movimento extremamente orgânico onde se testemunham os oito músicos a comunicarem numa língua já dominada por todos e ensinada pelo seu compositor e guia, que incorporava as emoções que a música lhe trazia de forma bastante expressiva, aproveitando ainda para caminhar no palco por entre os músicos e dar instruções abstractas que lhes permitia libertarem as suas veias criativas.

Os ritmos existiam sem nunca assumirem a liderança do som e serviam para tranquilizar a guitarra boémia e descomprometida e o baixo incisivo mas flutuante, que tentavam acompanhar as texturas ambient de André Gonçalves, que muitas vezes criava o mood principal das músicas com base nas tonalidades que os seus drones escolhiam. Os sopros acrescentavam um movimento e dinamismo livre de esquemas e Sei Miguel tomava as rédeas sempre que entrava, como se de um cantor de tratasse, transmitindo emoções intensas com o seu trompete de bolso, e falando mais directamente para o público que os restantes membros.

Mesmo quando a intensidade da música subia, havia sempre uma tranquilidade absoluta nos músicos, que deram sempre a sensação de um total controlo pormenorizado da energia que transmitiam. As cores de fundo que mudavam ao longo da hora de concerto intensificavam ainda mais os diferentes momentos que nos transmitiam. Sem qualquer necessidade de recorrer a solos, cada um dos músicos acabou por brilhar muito graças aos espaços intermitentes que cada um proporcionava, oferecendo uma verdadeira lição de como se criar um ecossistema equilibrado, que era impossível ser feito sem a liderança de Sei Miguel: o Carro de Fogo arde em criatividade e ideias explosivas, mas o condutor guia-o sempre dentro da estrada, com um pulso bem firme, mas não firme o suficiente para apagar a chama que torna este veículo tão único.

Findadas as duas horas concertos que vimos no CCB, pudemos testemunhar três abordagens completamente distintas ao lado performativo de um concerto, umas mais intencionais que outras: enquanto Vasco Alves nos conquistava pela forma como ocupava o palco, fugindo até da luz, e pela forma como toca o seu instrumento e mexe com os seus artifícios, Toda Matéria criou um lado visual fortemente presente durante todo o concerto, levando adereços poderosos que preenchiam o palco. Já Sei Miguel acabou por trazer com ele uma energia que nos fascinou do o início ao fim, incorporando em si todo o ambiente criado pelo som dos seus músicos. Testemunhámos, portanto, uma performance de um artesão a trabalhar delicadamente com o seu instrumento, uma com um espaço cénico intencional, e, para culminar, uma performance que nos prendeu pelo lado mais espiritual, orgânico e instintivo, quase como se estivéssemos a assistir a um conjunto de animais a viverem a sua melhor vida no seu ecossistema. 

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