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Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 04/03/2022

Um violinista que finalmente atingiu o seu propósito de sempre, fazendo as pazes com todo o seu percurso, e uma escultora de sínteses modulares que sabe urdir uma dramatização musical em que a nuance é tudo.

Rescaldo’22 – Dia 1: depuração e moldagem de sons

Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 04/03/2022

O primeiro dia do Rescaldo, ontem (2 de Março), cumpriu-se como estava planeado. Na tela víamos Carlos “Zíngaro” a pintar no seu estúdio, em sequências filmadas por Inês Oliveira que, no documentário A Escuta (a estrear em Abril próximo no Indie Lisboa), são mais breves e envolvidas pela narrativa. Sentado ou de pé, de lado para o público, olhando-se a si mesmo no fundo do palco, o violinista tocou a solo. As DAMAS não eram o local mais apropriado para um arranque tão intimista, mas se se ouvia na sala a azáfama do restaurante situado ao lado, o silêncio da assistência era por si só um sinal de curiosidade, respeito e admiração pelo pioneiro das músicas criativas e “aventureiras” (assim os responsáveis do festival gostam de lhes chamar) em Portugal. Não era um simples concerto, mas uma homenagem, e todos estavam cientes da situação e com ela comprometidos. 

Aquilo a que assistimos teve, por isso, um sabor especial. Mas também outro facto contribuiu para tal: nunca este ouvidor assistira numa actuação de “Zíngaro” (e foram muitas em décadas) a tamanha depuração. Não havia uma nota a mais nem a menos, e essa foi para o músico a ambição de uma vida. Tocar apenas o que é necessário, sem verborreias nem ornamentações excessivas. No campo da música improvisada há tendência para que tal suceda, tocar demais, mas as pausas entre frases e dentro das frases e a fluidez nunca precipitada destas contrariaram esse dilema. A música que “Zíngaro” nos propôs foi ganhando transparência, englobando o espaço nas suas tramas, confundindo o “dito” com o “não dito”. Era uma música que respirava, que ora se desvelava ora se continha, e ora argumentava ora se remetia para uma meditação ensimesmada. Não era uma música suave, prazenteira, mas de inquietações, de percepções indizíveis, de auto-questionamentos. Carlos “Zíngaro” interpretou-se a si mesmo, como se fosse ele a partitura e como se estivesse a fazer as pazes com todo o seu percurso de insatisfações, buscas e descobertas.

Na sua prestação, um único cometimento esteve em causa: a procura de uma certa ideia de beleza, e não necessariamente a grega antiga que no mundo ocidental tem sido norma até hoje. Neste processo, é de assinalar o melodismo das situações, desviados da formação clássica do artista e provenientes do seu interesse pelas músicas populares mais tradicionais, vulgo folk, que inspiraram alguns compositores do universo conservatorial. O “Zíngaro” de ontem foi de reconciliação com uma das suas referências maiores na juventude, tantas vezes por si contestadas desde a sua ruptura com a cultura musical erudita: Béla Bartók. Poucas vezes antes Carlos “Zíngaro” foi tão bartokiano, e mesmo que contrariasse o demasiado óbvio com bruitages e texturas menos limpas, ficou evidente que, no presente instante da sua carreira, este gigante da música portuguesa decidiu aceitar tudo o que o fez ser quem é, os alicerces que o estruturaram tanto quanto os conflitos e as recusas para com os mesmos, finalmente conseguindo encontrar um equilíbrio. Tratou-se, pois, de um concerto de aceitação, de aceitação das suas contradições e das suas incomodidades, e este nível de vulnerabilidade e de fragilidade foi comovente. Um exemplo maior de grandeza sustentado por uma humildade sem par.

Fosse o que fosse que viesse a seguir arriscava-se a ser menos considerado, mas um intervalo e uma mudança parcial da plateia (com um muito atento Carlos “Zíngaro”, também um dos veteranos da electrónica no nosso país, sentado na primeira fila) permitiram assistir à prestação de Clothilde já sem o peso do que acontecera antes. Com os seus sintetizadores modulares de construção artesanal e luzes a piscar, Sofia Mestre voltou – como é seu hábito – às raízes da electrónica de pesquisa, para a partir daí criar uma sound art que só podia ser de agora. A sua perspectiva é plástica, de moldagem dos sons, em tudo condizente com a sua paralela actividade artística. Ao contrário da primeira parte da noite, que foi muito especificamente musical, Clothilde tratou os seus materiais, igualmente com as metodologias da improvisação (e, por vezes, até aleatórias, implicando uma gestão de laborioso controlo) com uma abordagem que não tinha em conta os preceitos convencionais da “musicalidade”.

Ainda assim, ficou patente o seu cuidado musical, por meio de uma pulsação reintroduzida periodicamente (embora não obedecendo a métricas definidas) que proporcionou não só tensão como dramatizou a intriga que ia sendo urdida. Entre a manipulação de bordões e de loops, com preenchimentos via massas de ruído e erupções agudas ou graves que tornavam o aparentemente acidental como regra, a performance teve um carácter hipnótico que concentrou as atenções nos pequenos detalhes. Cada rodar de botão ou clicar de dedo introduzia uma nuance, por soma, subtracção ou simples ajustamento de nível. Camadas eram adicionadas ou retiradas a camadas e umas circunstâncias conduziam a outras, sempre a seu tempo, sempre lentamente, como o correr da água num riacho que só se alterava consoante os declives e as rochas situadas no caminho. Começou bem o Rescaldo de 2022.

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