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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 28/02/2022

Está de volta e ainda bem: podemos outra vez perceber para onde estão a ir as músicas que têm a aventura como motivação.

Rescaldo: vem aí nova edição do festival que recapitula e antecipa

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 28/02/2022

Porque o Rescaldo não se realizou nos dois últimos anos, pelos motivos de que todos temos conhecimento, o programa da sua edição, a 12ª, que irá cumprir-se de 2 a 6 de Março em quatro espaços de Lisboa – DAMAS, Centro Cultural de Belém, Galeria Zé dos Bois e St. George Church – recapitula o que musicalmente de mais significativo aconteceu durante esse tempo no âmbito das “músicas aventureiras”. E tal acontecerá de novo como sempre: enquanto barómetro das tendências que se foram desenhando, dos valores que entretanto emergiram e da continuação dos desbravares de estradas empreendidos por veteranos que não cessaram as suas buscas por algo que ainda não fizeram. Eis, pois, um festival que, ouvindo para trás, se põe a ouvir para a frente, reconhecendo, pressentindo e validando o fervilhar criativo do nosso país.



[Carlos “Zíngaro” + Clothilde] (2 de Março, DAMAS)

Não deixa de ser curioso que a primeira sessão do Rescaldo de 2022 associe os solos de Carlos “Zíngaro” e Clothilde. Ainda que o primeiro surja com o seu instrumento primeiro, o violino, trata-se de um dos pioneiros em Portugal na utilização dos sintetizadores e depois do computador nas suas interacções electroacústicas com aquele cordofone secular. Clothilde, aliás Sofia Mestre, tal como “Zíngaro” também artista plástica, leva às Damas os seus sintetizadores modulares, recursos “retro” que a levam a explorar e levar mais longe os legados de Eliane Radigue e Maryanne Amacher. 

O percurso do violinista e electronicista remonta ao final da década de 1960, na seguinte ganhando relevância internacional ao lado de figuras do jazz criativo e da improvisação livre como Kent Carter, Daunik Lazro, Joelle Léandre, Richard Teitelbaum, Steve Lacy e Anthony Braxton, e Clothilde firmou o seu nome em 2018 com o álbum Twitcher, depois de um punhado de concertos que surpreenderam a Lisboa melómana. São duas gerações no mesmo palco, com todo o simbolismo que se solta desta feliz combinação. 

A actuação de “Zíngaro” será acompanhada por imagens de A Escuta, filme sobre o músico que a realizadora Inês Oliveira estreará no final de Abril no Indie Lisboa. Pois nestes últimos anos de recolhimento Clothilde esteve precisamente a compor bandas-sonoras para cinema (e teatro, outra dedicação do co-fundador do colectivo Os Cómicos), outra coincidência que adivinhamos não acidental.



[Vasco Alves + O Carro de Fogo de Sei Miguel + Toda Matéria] (3 de Março, Centro Cultural de Belém)

Na sua missão de destacar dinâmicas que poderiam passar despercebidas, porque ocorrendo nas margens ou nos subterrâneos da cultura dominante, o Rescaldo abre a sua segunda noite deste ano, no CCB, com algo que é tudo menos óbvio: as explorações realizadas por Vasco Alves da integração de uma gaita-de-foles com um computador, que não necessariamente em compromisso sonoro, como ficou patente com o título do álbum Gaita Contra Computador

Segue-se um novo ritual da orquestra (o grupo conta com oito elementos, mas a perspectiva é orquestral) de uma personalidade da música portuguesa que nunca seguiu quaisquer cartilhas, Sei Miguel. O Carro de Fogo de Sei Miguel ganhou destaque em cada ano de apresentações ao público, no seu cometimento de enraizar uma visão muito específica e pessoal do jazz nas raízes dos blues, um arquétipo sempre questionado e recuperado, e no silêncio, designadamente o silêncio de John Cage, que é já por si som. Mais uma vez, irá com certeza fazê-lo. Com o trompetista e compositor-arranjador-encenador estarão, como habitualmente, os sopros de Nuno Torres e Fala Mariam, a guitarra de Bruno Silva, a electrónica de André Gonçalves, o baixo de Pedro Lourenço, a bateria de Luís Desirat e a percussão de Raphael Soares.

A noite fecha com Toda Matéria, trio de mulheres (Joana Conceição, Sara Graça e Maria Reis) que tem a electrónica, a voz e a percussão como ferramentas de uma prática musical que vai buscar as suas referências à botânica, e designadamente à forma como as plantas partilham a luz de modo a prosperarem, ao invés do que acontece com a competição no mundo humano: a ideia é que todas as particularidades sonoras sejam audíveis, sem hierarquizações. Três propostas, portanto, todas a marcarem a sua diferença.



[Má Estrela + Máquina Magnética] (4 de Março, Centro Cultural de Belém)

Coincidindo com o lançamento pela Shhpuma do seu álbum de estreia, o projecto Má Estrela de Pedro Sousa traz-nos, também no CCB, uma aplicação sui generis dos preceitos do dub tanto a nível técnico ou processual, de manipulação do som, como de identidade. Mas tem mais que se lhe diga, vindo de um saxofonista da área do jazz de vanguarda e da improvisação que antes vincou o seu nome na electrónica experimental, com o colectivo OTO. Sousa sobre-amplifica o seu barítono e utiliza uma pedaleira de guitarra para processar o seu instrumento em tempo real e faz-se acompanhar por duas figuras da electrónica exploratória, Bruno Silva (Ondness) e Simão Simões, pelo baixista Rui Dâmaso e pelo baterista João Portalegre (no disco são Miguel Abras – o mesmo da banda Putas Bêbadas – e Gabriel Ferrandini – seu companheiro de muitas lides – que se ocupam destas últimas funções). Este dub-jazz é alimentado por introjecções de footwork, pós-soul e ambientalismo ácido, confluindo em algo que nos tira o tapete de debaixo dos pés: uma música escura e sofrida que, ainda assim, nos transmite esperança.

A Máquina Magnética que se sucede é muito mais do que uma extensão do duo electrónico @c, formação já com décadas de trabalho realizado constituída por Pedro Tudela e Miguel Carvalhais, e tem outros objectivos que não apenas dar lugar à percussão de Gustavo Costa e ao vídeo de Rodrigo Carvalho. Assiste-lhes o propósito de criar um espaço sonoro que seja igualmente visual, numa perspectiva intermediática, com a própria música a reivindicar uma condição plástica, e mais de sound art, ou de escultura sonora, do que propriamente de “música”, tal como esta ficou convencionalmente definida. Eis, pois, uma double bill com abordagens distintas, mas igualmente questionadoras das noções do possível que possamos ter…



[Onda Xoque + Medusa Unit + Hetta + Rodrigo Amado & Tó Trips DJ Set] (5 de Março, ZDB)

A passagem para a ZDB inicia-se com um colectivo de anónimos e os seus sintetizadores de fabrico artesanal, provocatoriamente apresentado como Onda Xoque – uma diatribe que nos remete para o grupo de música infanto-juvenil fundado nos anos 1980 por Ana Faria e que vendeu cerca de um milhão de discos. Pouco mais, nestas circunstâncias, se poderá acrescentar, se não que a performance musical terá um carácter lúdico, como se os participantes estivessem a jogar damas ou xadrez, sem perspectivas de vitória ou de conquistarem sequer uma diminuta percentagem do sucesso dos seus antecessores pré-adolescentes.

Depois entra a Medusa Unit de Ricardo Jacinto (violoncelo, composição) com João Almeida (trompete), André Hencleeday (piano), Alvaro Rosso (contrabaixo) e Nuno Morão (percussão). Em estreia estará a peça Hino a Carídbis, nova manifestação do continuado interesse de Jacinto em pesquisar as possibilidades híbridas dos instrumentos em causa, tanto a nível da aplicação de técnicas extensivas como de micro-amplificação e tratamento de som em tempo real, num constante jogo (e aqui está novamente aquela que se revela ser a temática da noite) de desvelamento e ocultação de timbres. As premissas estão no minimalismo e no espectralismo, mas a projecção dessas fórmulas tem tudo que ver com a filosofia do momento tal como professada pela improvisação.

A sessão prossegue com o regresso de João Portalegre e Simão Simões (Má Estrela, mas o segundo agora a tocar baixo), desta feita em formato de rock com a banda Hetta, completada pela voz de Alexandre Domingos e a guitarra de João Pires. Este é um rock de descarga, na melhor tradição do género, mas também ele de desalinhamentos, numa configuração posteverything que impede arrumos fáceis dentro de alguma caixa. Será algo entre as damas e o xadrez, sem nome fixo nem intenção de encontrar um.

A série de concertos fecha com o mais improvável dos DJ sets, tendo em conta as figuras convidadas, Rodrigo Amado, o saxofonista free bop, e Tó Trips, o guitarrista de matriz rock. Ou nem tanto assim, dado sabermos que os dois músicos gostam de ocupar os interstícios, a exemplo do que Amado já fez com os Rocky Marsiano de DJ Ride ou Trips com Timespine, a sua parceria com Adriana Sá e John Klima. Que discos irão passar, que encontros e desencontros providenciarão, que cruzamentos serão possíveis? Que jogo se desenrolará? Isso pelo menos é imprevisível. 



[Banha da Cobra + Pedro Carneiro] (6 de Março, St. George Church)

Para o último dia do Rescaldo fica uma combinatória que incide sobre a percussão, beneficiando da reverberação arquitectónica da St. George Church. Primeiro a de Carlos Godinho, em dupla com Mestre André e a electrónica deste, com base no encadeamento de field recordings, e depois com Pedro Carneiro, em solo de marimba baixo. 

O projecto Banha da Cobra é a ironização de um processo investigativo do som que não quer ser mais do que intuitivo, nos antípodas das matemáticas e engenharias de Xenakis. Se em outros casos no programa do festival para este ano há desconstrução, Godinho e André constroem a partir de bases mínimas, não com o propósito de edificarem arranha-céus, mas de verificar que edifícios alternativos esses alicerces permitem, de caso em caso, de desenvolvimento em desenvolvimento e de mudança de direcção em mudança de direcção, só porque sim, porque pode ser mais interessante abrir diversos caminhos do que apenas um.

Já com Pedro Carneiro a opção é outra: se se trata de um compositor e director de orquestra com actividade principal nos âmbitos da música clássica e contemporânea, no seu concerto colocará de lado as bases, as estruturas, as partituras, para improvisar. É ele quem fecha o festival em efeito de pescada-de-rabo-na-boca com a abertura realizada por Carlos “Zíngaro”: um dos álbuns mais relevantes do ano que passou, “Elogio das Sombras”, juntou-os a ambos. Do que acontecer prevê-se desde já a confirmação de que o estatuto do verdadeiro virtuoso não depende de um absoluto controlo das técnicas de execução, mas sim da subordinação desse rigor técnico a uma linguagem que clama por liberdade e à sua mais autêntica expressão, porque a arte importa muito mais do que o método.

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