As Artemis estreiam-se ao vivo em Portugal numa curta digressão de trêes datas. O super-grupo liderado pela pianista e compositora Renee Rosnes apresenta Arboresque (Blue Note, 2025), sucessor do homónimo de estreia editado em 2020, e reforça a posição de uma formação que se afirmou rapidamente como uma das mais vibrantes e distintas do jazz contemporâneo. A crítica internacional tem sublinhado essa particular condição: na revista DownBeat, as Artemis foram já distinguidas como Melhor Grupo de Jazz por mais do que uma vez, proeza que sublinha a singularidade de um colectivo que alia virtuosismo, originalidade e uma rara coesão criativa.
A estreia em território nacional está marcada para o AngraJazz, no Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo, a 4 de Outubro, seguindo o colectivo depois para o Porto, para a Casa da Música a 6 de Outubro, e culminando a sua breve tour no Seixal International Jazz Festival, no Auditório Municipal do Fórum Cultural do Seixal, no dia 9 de Outubro. Três datas que colocam Portugal na rota de uma digressão internacional de peso, permitindo ao público testemunhar ao vivo a energia que estas cinco artistas projectam em palco.
Ao lado de Rosnes, que assina composições e conduz a narrativa ao piano, estarão a trompetista Ingrid Jensen, a saxofonista tenor Nicole Glover, a contrabaixista Noriko Ueda e a baterista Allison Miller. Cada uma com carreira sólida, todas reunidas num colectivo que tem sabido transformar a diversidade individual em voz comum. Em Arboresque, essa voz floresce como uma árvore de múltiplos ramos: raízes no legado do jazz, mas sempre a apontar para novas direções.
Foi nesse espírito — e com a antecipação de uma estreia portuguesa há muito esperada — que conversámos com Renee Rosnes, para falar sobre o processo de criação do novo disco, o diálogo entre estas cinco instrumentistas e o significado de trazer a música de Artemis até cá.
Pode começar por me contar a história deste grupo, Artemis? Se não me engano, você foi desafiada a montar este conjunto no Dia Internacional da Mulher em 2016.
Isso está correcto.
Antes desse desafio, vocês nunca tinha equacionado essa possibilidade de criar uma banda totalmente formada por mulheres?
Nem por isso. Eu toquei com muitas mulheres ao longo da minha carreira, mas eu não tinha necessariamente essa ambição de formar um grupo só de mulheres só porque sim. A minha principal preocupação é a música. Quando me convidaram a criar este projecto, eu pensei em reunir as mulheres com as quais eu mais tinha gostado de tocar apenas para nos divertirmos e tocar ao vivo por um par de datas. Mas acabámos por nos divertir tanto a tocar juntas que decidimos dar continuidade ao grupo. É por isso que Artemis ainda existe hoje. Não tem que ver com essa questão dos géneros, pelo menos para nós, embora eu entenda que as pessoas nos possam olhar dessa forma por sermos todas mulheres. Acima de tudo, isto tem que ver com a música e a química de todas as instrumentistas envolvidas.
Uma banda composta exclusivamente por mulheres tem certamente um peso adicional, já que pode servir para inspirar muitas mulheres jovens que se encontrem hoje a estudar música. Você vê-se como um modelo a seguir? Sente que pode ajudar a inspirar as gerações seguintes ou as mulheres no geral?
Eu diria que sim. Nós notamos o entusiasmo e uma certa vontade das pessoas em conhecer-nos sempre que vamos tocar a algum lado. Especialmente quando vamos às universidades que têm programas educativos de jazz. Nesses sítios encontramos sempre muitas mulheres que nos dizem sentir-se inspiradas pelo que nós fazemos. Mas eu não quero negligenciar o facto de existirem também homens jovens a sentirem-se inspirados pela banda. Daí eu ter dito que isto não é feito a pensar nos géneros, mas sim na música. Nós não estamos apenas a ir ao encontro das mulheres jovens, pois há também muitos estudantes homens a querer escutar-nos e a apoiar-nos.
A formação que vai trazer a Portugal já está fechada?
Já, sim. Vamos ter a Ingrid Jensen na trompete, a Nicole Glover no saxofone tenor, a Noriko Ueda no baixo e a Allison Miller na bateria. Tem sido esta a formação que temos utilizado na maior parte das vezes, que é também a mesma que gravou o mais recente disco de Artemis para a Blue Note, Arboresque.
Esta será a primeira vez de Artemis ao vivo em Portugal, certo?
É, sim.
Mas você já cá esteve anteriormente e já cá tocou. Tem alguma relação especial com o país?
Bem, eu adoro Portugal [risos]. Adoro a comida, adoro as pessoas, a geografia do país… Da última vez que visitei Portugal, fiquei nos Açores e tive a oportunidade de passear um bocado por todas aquelas paisagens lindíssimas. A natureza de lá é uma coisa linda. Estar ali no meio do oceano é realmente algo inspirador. Depois tem as pessoas, que adoram música e são excelentes anfitriões.
É precisamente nos Açores que vos vou ver a tocar.
Maravilhoso!
Voltando à banda, ela foi sofrendo algumas mutações nos diferentes discos que lançaram pela Blue Note. Isso faz parte da personalidade do grupo? Essa ideia de mudar alguns elementos de um disco para o outro é algo pensado previamente?
Não necessariamente. São as pessoas que vão rodando pelo grupo. A Cécile McLorin Salvant, por exemplo, já tinha uma carreira notável antes de se ter juntado a nós, portanto já partíamos do princípio de que ela não iria ser um elemento fixo da banda. Foi muito bom poder ter contado com ela no início do projecto. A Melissa Aldana, ela acabou por conquistar o seu próprio contrato com a Blue Note e achou que estava a ficar demasiado ocupada para continuar a viagem connosco. Com a Anat Cohen foi a mesma coisa. Começam a surgir estes conflitos de agenda e torna-se impossível que algumas pessoas estejam constantemente a viajar connosco. A Alexa Tarantino tinha acabado de se juntar à banda, mas o Wynton Marsalis recrutou-a e ela começou a ficar sem tempo disponível. Mas eu acho que isso é bom, pois mostra o quão bem-sucedidas as mulheres são no jazz, capazes de construir carreiras bonitas.
Diria que há algum tipo de característica comum a todas as artistas que já passaram por Artemis? Há alguma qualidade específica que procura nas outras instrumentistas antes de as convidar a ingressar no projecto?
Bem, ter técnica é obrigatório [risos].
Óbvio [risos].
Mas nós procuramos gente com um som original e, de preferência, que sejam compositores. Isso é importante e é algo que todas nós, actualmente, temos. Todas nós escrevemos quer para Artemis, quer para outros projectos nossos. Eu diria que a nossa banda tem um som muito único, porque nós funcionamos as cinco como se fôssemos um cérebro apenas. Todas nós trazemos ideias para tocar e aquilo que acaba por ficar no nosso repertório é o que a banda finaliza em conjunto. Portanto sente-se essa unidade ao longo dos nossos discos.
Eu achei o Arboresque uma inscrição triunfal na vossa discografia. A música flui com muita naturalidade, a banda soa a um grupo que toca junto desde sempre. Essa naturalidade vem do facto de os arranjos serem todos eles muito pensados ou tem mais a ver com o momento que se criou durante as gravações?
Sempre que tocamos juntas, as coisas soam diferentes. Nós não vamos tocar igual à vez anterior. Eu acho que o disco documenta aquele momento particular, aquela tarde em que nos reunimos para gravar. Até porque todas as músicas que tocámos são as mesmas que levamos connosco na estrada, e de todas as vezes que nós as tocamos, elas soam diferentes, pois a música jazz tem esta coisa da espontaneidade — é sempre o momento que dita como vai soar a música, pois todos os nossos sentimentos entram em jogo na hora de tocar. Nós já tocamos juntas há muito tempo e, como você disse, nós já temos aquele som coeso do grupo, então o que queremos é incorporar uma certa liberdade dentro disso. Nós somos muito fãs umas das outras, portanto qualquer nota que uma de nós escolhe tocar, ela vai acabar por influenciar as outras todas. Quando tocamos ao vivo, gostamos que seja espontâneo e livre, mas que também seja alegre. Eu acho que isso é visível. Você vai ver-nos em palco a sorris umas para as outras [risos].
O presidente da Blue Note, Don Was, já elogiou a vossa música. Como é para vocês trabalhar com uma editora tão grande? Deve ser um sentimento fantástico verem o vosso nome ao lado de tantos outros excelentes artistas.
Absolutamente. É uma honra estarmos a gravar para a Blue Note. Eu tenho uma história muito grande com eles, pois já tinha assinado dez discos enquanto bandleader para eles. É sempre bom regressar ao catálogo deles, particularmente com este projecto, pois eles dão-nos sempre muito apoio. Temos uma relação muito boa com eles.
Disse-me que todas as pessoas contribuem para a escrita destes temas, mas eles soam todos muito coesos, como se tivessem todos saído da cabeça da mesma pessoa. Porque diria que isso acontece? Vocês escrevem já a pensar no papel umas das outras? É mais uma questão estética?
Talvez seja um misto. Todas nós, quando nos sentamos a escrever para a banda, temos os sons umas das outras em mente. Mas eu acho que isso tem mais a ver com o próprio funcionamento do grupo. Nós somos todas muito simpáticas umas com as outras e acho que isso depois se nota quando estamos a tocar.
Além do vosso próprio input, neste mais recente álbum também contam com algumas composições de outros músicos, como Donald Brown, Wayne Shorter ou Burt Bacharach. São todos excelentes nomes.
É verdade [risos]. Eu sou uma grande fã do Donald Brown e já tinha gravado algumas músicas dele.
Já a li a referir-se a ele como um “grande herói não celebrado.”
É verdade! Eu adoro as canções dele. Ele escreveu um disco, Cause and Effect, que é dos meus favoritos de sempre. Tem temas lindíssimos. Portanto, a escolha de uma composição dele fez-me todo o sentido e quando propus o tema ao resto da banda toda a gente ficou muito entusiasmada. Já o Burt Bacharach é um dos maior nomes que alguma vez escreveram para o campo da pop. Ele tinha melodias bem originais. E termos a oportunidade de tocar uma das suas músicas mais conhecidas, que ressoa na cabeça de tantas pessoas à volta do mundo, com um arranjo de jazz que nos permite ir a tantos sítios novos em termos harmónicos… Foi algo do qual gostámos mesmo muito. Nós tocámos esse arranjo no Newport Jazz Festival em 2024 e por acaso a mulher do Burt Bacharach estava na plateia.
Impressionante…!
Ela adorou a nossa versão e eu acho que foi uma das coisas mais bonitas que nos aconteceu. E depois, claro, temos o Wayne Shorter. Quem não gosta do Wayne Shorter? [Risos]
Especialmente a “Footprints”, que é genial.
Verdade! Eu cheguei a tocar a “Footprints” com o Wayne, quando integrava a banda dele. É uma composição de jazz icónica, criada no início da sua carreira. Mas eu acho que nós, nesta versão, vamos a muitos lugares e é das músicas que nos dá maior gozo tocar.
Como funciona a vossa vida na estrada? Vocês não só tocam juntas, como passam também muito tempo na companhia umas das outras — seja num avião, na alfândega ou quando esperam pela hora do espectáculo. O que fazem para manter o foco nesses momentos?
Muito café, earbuds e muita música [risos]. Vamos-nos mantendo sãs através do bom humor. Mas hoje em dia está muito complicado viajar e juntas já contornámos muitos obstáculos. Filas de espera enormes, voos adiados por mau tempo ou problemas mecânicos… Toda a gente que voa sabe dos desafios. Esta acaba por ser a parte mais difícil do nosso trabalho. A parte mais fácil é mesmo estar no palco. Tudo o resto é desafiante, mas vamos conseguindo fazer as coisas, damo-nos muito bem e há realmente um espírito muito alegre sempre que viajamos juntas. Nós divertimo-nos imenso umas com as outras e temos muitas discussões sobre comida [risos].