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Publicado a: 26/02/2018

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review dear annie

[TEXTO] Samuel Pinho 

Alexander Anyaegbunam não é só nome de difícil pronunciação: também nos é — a vós e a este humilde servo que aqui escreve – completamente desconhecido. Se, porventura, mencionarmos Rejjie Snow, a conversa já é outra. O porta-estandarte da actual cena hip hop irlandesa deu boas referências logo no arranque de carreira, deixando a crítica rendida a Rejovich, o primeiro EP lançado em 2013.

À data, o tiro de partida do irlandês cruzou o Atlântico e chegou a ombrear (e até ultrapassar) com lançamentos de Kanye ou J. Cole, no iTunes Hip-Hop Chart. Apesar do sucesso de Rejjie nos States, o caso não é único. Há uma irreverência e mentalidade DIY na nova fornada de rappers oriundos daquela ilha, cada vez mais comprometidos em desafiar o monopólio americano. Os Hare Squead provam isso mesmo: convocados por GoldLink, destacaram-se pela singularidade sonora empregue em “Herside Story”, faixa-destaque de um dos melhores álbuns rap do último ano.

Hoje é parte integrante da 300 Entertainment, label onde “moram” artistas tão consagrados como Young Thug, Fetty Wap ou o colectivo coqueluche do ano transacto, Migos. Entre tantos, já fez estragos com Kaytranada ou Rahki, produtor habitual de K. Lamar. Na sua música, é por demais evidente o caldeirão de influências, referências e sonoridades que fervilham juntas. Identificar-se-ão facilmente restos de Tyler, reminiscências de N.E.R.D., tiques de Ocean e até graves de Gambino. Se sintetizarmos tudo, está aí o melhor do hip hop contemporâneo.

 



Voltando a Alexander, sim. A fasquia estava posicionada a elevada altitude. Por isso, a ânsia de quem se fez fã de primeira hora há muito que também estava nos píncaros. A culpa? Do anúncio precoce do tão aguardado primeiro longa-duração do artista, cuja espera durou mais de 5 anos. Tardou mas chegou.

Primeiro, o disclaimer: varram-lhe as rimas, a entoação ou meçam-lhe os versos ao centímetro. De Dublin, bem ou mal, pouco ou nada se lhe nota.

Dear Annie mostra ao que vem logo no naming: mas mesmo com destinatário, esta não é uma carta de amor. É um tratado sobre paixão: tanto é que o rapper seduz o ouvinte com o relato de um amor rejeitado pelo. Há espaço para celebrar os efeitos extasiantes do amor — qual rara energia, nunca alergia, sempre contagia(nte) — como há quarto, sala e arrumos para o lodo problemático que o mesmo sentimento despoleta. É um álbum completo e memorável, pouco dado à aclamação unânime embora dificilmente esquecível.

No arranque, há “Hello”, “Rainbows” ou “23”; tudo num timbre tão doce que até o mais férreo coração se ouvirá obrigado a derreter. Ao cantar romance de forma tão coesa e não-gratuita, Snow encontrou um nicho por explorar numa área musical profundamente saturada entre o inevitável mumble rap e a cansável — e envolta em ira — música de protesto. Porém, não só de encontros se faz esta bela peça. Quem se desencontrou em “Egyptian Luvr” não estará sozinho: o apelo à valorização de quem temos connosco é evidente de tão intransigente, mesmo que seja feito na cama de som mais funky grooved de todo o álbum. Valorizem, pois a possibilidade de perda é real. Ou seja, dancem! Só não o façam sozinhos.

 



É, por outro lado, o piano de “Room 27” que nos abre a porta aos pensamentos suicidas do irlandês. Ao fazer luz sobre um tema tão premente pela sua intemporalidade, os recantos mais escuros acabam forçosamente por surgir: assim se justifica o extenso álbum de 20 faixas.

Menção honrosa para a fórmula vencedora replicada em “Spaceships”: não há quem sobreviva a tanta ginga. No passado, mais concretamente em “Flexin’”, Rejjie já se tinha unido a Ebenezer e o resultado pautou por excepcional. Repetiram-se os ingredientes, obteve-se a mesma excelência do produto final. Num instrumental pensado para o efeito — avé Rahki, que facilmente também aqui caberia K. Dot –, rimas incandescentes sucedem-se em catadupa, a par de um refrão feito para encantar quem desafinou de tanto bailar.

Não há pontos menos bem-conseguidos neste passeio pela mão, no interior do pequeno Rejjie. Há, isso sim, lugares mais e menos iluminados, revelações mais e menos efusivas ou dores mais ou menos saradas. Soa tudo a puro, num genuíno modo de mostrar que o rap verídico e factual ainda nos pode impactar nos momentos de maior solidão, bem como nos intervalos de silêncio auto-infligido.

Dear Annie tem lugar cativo nos fins de tarde mais eclécticos do Verão que se avizinha. É bom que agora também garantam o vosso nesta viagem pelos meandros do hip hop, r&b, pop, trap e de tudo o que nos faz sentir tanto, de tão dançável maneira.

 


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