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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 12/07/2022

O desafio de cruzar universos opostos.

Reinventar o imaginário musical do Algarve com Moda Vestra

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 12/07/2022

Um convite, dois protagonistas e um Algarve reimaginado sonicamente: é esta a premissa para Moda Vestra, um dos projetos musicais mais interessantes do ano a sul do País. Rafael Correia, primeiramente algarvio e só depois Sickonce e Gijoe, produtor/beatmaker/DJ com vasta discografia e créditos firmados na cultura hip hop portuguesa, uniu esforços com João Frade, conhecido acordeonista também algarvio que já trabalhou com inúmeros artistas nacionais e internacionais, como Mariza, Airto Moreira e Flora Purim, para a concepção deste projecto de, principalmente, música experimental.

Perfeitos desconhecidos até ao momento do convite, o processo criativo antevia-se difícil face à distância nas linguagens musicais de ambos, mas, depois de vários meses de experiências e vivências musicais, a tela outrora em branco perfilava-se bem colorida, salpicada por tons mais tradicionais e regionais algarvios do acordeão de João Frade e, por outro lado, o modernismo das batidas sempre inovadoras e disruptivas de Sickonce, numa mescla musical que recria e reinterpreta a musicalidade do Algarve. Aliado ao já desafiante convite, ambos ainda se propuseram a percorrer e a opinar musicalmente sobre as últimas décadas da região, convidando outros instrumentistas e intérpretes, como Napoleão Mira, Edgar Valente – com espaço para o clássico sampling, desta feita a pedaços de voz do icónico José Hermano Saraiva –, para preencher vocalmente um disco que, apesar de instrumental, diz muito sobre o que de melhor se faz na região, abrindo de forma escancarada uma porta para o futuro da sua música.



Falem-me um pouco sobre a génese de todo este conceito Moda Vestra, que acaba por nascer de um convite que vos foi endereçado.

[Sickonce] Na realidade, nós não nos conhecíamos pessoalmente e o convite foi feito através do Gil Silva, do Teatro [das Figuras] de Faro e o Paulo Pires, do Cineteatro Louletano na altura. E o que nos foi apresentado foi a ideia de nós fazermos um projecto colaborativo e candidatar essa ideia ao 365 Algarve. Essa candidatura foi feita através da Câmara Municipal de Loulé pela rede de teatros. Na altura, numa primeira abordagem, falaram comigo e com o Frade em separado e depois tivemos uma reunião conjunta e a ideia era apresentarmos um conceito para a candidatura. O conceito da candidatura era o concerto em si, a questão do álbum foi um extra que colocámos para acontecer depois dos espectáculos ao vivo, não foi aquele formato tradicional de fazer um disco e depois ir tocá-lo ao vivo, porque nós não nos conhecíamos. A própria criação acabou por ser contínua, o processo criativo foi sendo sempre contínuo e ao longo das 11 datas no Algarve fomos trabalhando o que veio a ser o disco. A primeira abordagem que tive com o Frade foi de nos conhecermos melhor e perceber como é que isto podia funcionar com o cruzamento de dois mundos artísticos distintos, porque apesar de sermos ambos algarvios nunca nos tínhamos conhecido.

[João Frade] Foi sempre um work in progress até ao último concerto, fomos sempre experimentando e tirando material e colocando novas coisas na setlist.

[Sickonce] Ya, não sei se há mais do que 1 ou 2 faixas que tenhamos tocado no primeiro concerto que se tenham mantido até ao último, refizemos a setlist quase por inteiro. Ao longo do projecto é que aprendemos a trabalhar um com o outro, não foi até ao primeiro concerto que tivemos esse processo, foi mesmo durante as 11 datas. 

[João Frade] E foi essa parte do processo que acabou por se tornar mais desafiante. Duas pessoas com metodologias diferentes, linguagens diferentes e tivemos que nos encontrar algures. Recordo-me que no início foi super challenging, apesar de conhecer um pouco do trabalho do Rafa nunca tínhamos trabalhado juntos, e depois a comunicação é muito diferente, foi um processo bastante desafiante. Como o Rafa falou, surge o convite através da Rede AZul e depois foram-se juntando mais pessoas, mais entidades, como o projecto TASA.

[Sickonce] Eles têm espaço em Loulé e trabalham artesenato mas de uma forma mais sustentável e cruzando-se com o design. Isto basicamente foi um cruzamento no projeto, nós temos um vinil à venda do projecto e eles propuseram criar um objecto para colocar o vinil em exposição, feito de uma forma completamente artesanal e à unidade, ou seja, este é um projecto que não é só música — acaba por seguir uma metodologia não tão tradicional mas, sim, uma linguagem mais contemporânea. Outra coisa na parte do ao vivo que aconteceu foi convidarmos a Ana Perfeito para a parte do vídeo, ao longo dos 11 concertos ela trabalhou os visuais do concerto. Para além dela formámos também equipa de palco em que convidámos o Emanuel Marçal e o Paulo Machado, e depois na parte do som o André e nas luzes o Jorge. Até ao fechar das 11 datas foi esta a equipa de Moda Vestra.

[João Frade] E ainda tivemos o Napoleão Mira e o Edgar Valente.

[Sickonce] Na última data, em Faro, foram convidados do concerto. Até aí, entravam como sample, mas não estavam presentes por lá.

Vocês tocaram o disco até Março de 2019, e previam lançar o álbum até ao fim desse ano, início de 2020, mas suponho que a pandemia de COVID-19 tenha retardado o processo.

[Sickonce] Sim, tivemos 11 datas até Março de 2019 e depois íamos logo entrar em estúdio, mas a data prevista era quase impossível porque a data foi pensada para o material referente ao primeiro concerto, mas até 2 dias antes do último concerto em Faro estávamos a fazer música nova, ou seja, o material só ficou criativamente pronto no último concerto, só podíamos pensar no disco depois disso. Começámos a fazer o processo de gravação e também fechar a própria criação, e depois outros projectos pessoais de ambos cruzaram-se, como o Porcelana [com Perigo Público] e o Frade também com as suas dicas, e isso também acabou por atrasar a criação deste disco. Aliado a isso, as fábricas em vez de demorarem 1 mês, demoravam 6 para fabricar os CDs. Sinceramente, acho que é um disco, ao contrário dos discos mais de rap que faço, que não é temporal, não sinto que esteja desatualizado, é algo que me continua a fazer sentido, mesmo tendo outros projectos a acontecer simultaneamente. Estou mesmo satisfeito.

[João Frade] Durante este processo, a meio das 11 datas que fizemos, fomos os dois às #KimaheraSections tocar apenas um tema, e acho que isso também ajudou, sentimos que havia ali uma parceria para durar.

[Sickonce] Não estávamos dependentes de quaisquer formatos, conseguimo-nos adaptar, algo que achávamos impossível no início pelas camadas de layers que fazíamos e etc., e esse momento acaba por ser o único sítio fixo na nossa existência até ao lançamento do disco em que quem quisesse ouvir Moda Vestra, podia ouvir, mas só ali naquele vídeo de YouTube.

Este projecto vai contra o processo tradicional de criar música, passa do palco para o disco.

[Sickonce] Aquilo que ouves no disco acaba por ser o fixar do que foi o último dos 11 concertos. Tivemos a sorte de tocar 8 meses, andar a experimentar e a desenvolver música e no último concluímos que era mesmo aquilo. Foi aí que quisemos colocar aquilo em disco, e claro que há certas coisas diferentes, mas a fotografia do último concerto foi aquilo em que se tornou o disco.

Achei interessante o número de participações: em 15 faixas, 9 contam com features.

[Sickonce] Enquanto fazíamos o disco, as músicas já existiam. O Emanuel e o Paulo acabaram por ajudar a preencher ao vivo as camadas de acordeão, e quando passámos isso para o disco percebemos que existia a oportunidade de dar ali outras cores, algo que não conseguíamos fazer ao vivo, e concretizámos isso adicionando outros instrumentos: guitarra portuguesa de Ricardo Martins, guitarra eléctrica do Tiago Oliveira, saxofone do Filipe Valentim, trompete do Diogo Duque, ou seja, variámos a paleta de instrumentos e de cores que ao vivo estavam a ser preenchidas por camadas de acordeão. Quase todas as linhas melódicas a serem tocadas já existiam e acabaram por ser transportadas para outra cor porque surgiu esta oportunidade de enriquecer musicalmente o trabalho.

João, sentes que acabaste por reinterpretar aquilo que o acórdeão simboliza para ti com o teu trabalho neste projecto? Mantendo a essência dele, mas explorando linguagens musicais bastante diferentes daquilo que fizeste na tua carreira.

[João Frade] Esteticamente deixei-me conduzir um pouco. Agora na minha linguagem musical, tenho um pouco as mesmas influências do Rafa, sempre ouvi J Dilla, sou fã de hip hop. Mais recentemente também temos algumas influências em comum, como Hiatus Kaiyote e Robert Glasper. A maior dificuldade foi fazer a ponte para o Paulo e Emanuel que acabam por estar mesmo fora deste universo musical do hip hop – O Emanuel é da música erudita e o Paulo da música folclore, um pouco experimental também. Às vezes soava-lhes estranho, assim meio deslocado e atrasado. Conhecendo essa linguagem – claramente aprofundada com o Rafa por irmos partilhando música – acabei por consegui-los puxar para este universo.

[Sickonce] Acho que essa questão das trocas de música que andamos a ouvir foi na realidade o que desbloqueou este processo, porque até ao primeiro concerto andámos a tentar cruzar métodos de trabalho e não era mega fluído, tivemos que aprender a trabalhar um com o outro. A partir do momento que nos despreocupámos com métodos de trabalhos e passámos a falar de coisas que ouvíamos e gostávamos musicalmente, e se cruzavam entre nós, passou a ser tudo mega fácil. Ele pode-me estar a falar numa linguagem que eu não domine e vice-versa, mas, se eu disser para explorar a sonoridade daquele artista X, já sabemos que caminho havemos de trilhar. Actualmente trabalhamos de forma muito rápida e acho que faríamos um projeto em uma semana, e na verdade até já aconteceu. Chama-se Aenigmaticus Orchestra e foi uma encomenda que fizemos para um concerto – e queremos fazer mais – estivemos juntos com mais músicos, foi uma equipa muito maior, mas a base criativa foi um pouco esta, tínhamos isso bem assente.

[João Frade] O Rafa trabalha com o Ableton Live e loops, e eu acabo por ser mais técnico, e pedia-lhe para começar a tocar do compasso X, e ele ficava, “qual? Compasso X? É a secção rosa, azul?” e eu não sabia, para mim era mesmo o compasso X [risos].

[Sickonce] E eu aprendi muito mesmo a comunicar com instrumentistas, com formação diferente da minha e muito mais avançada, e acredito que o João agora é capaz de falar com produtores de forma muito mais fácil e técnica.

[João Frade] Nós estávamos super interessados e comprometidos em desbloquear esse processo, avançar o mais rápido possível e encontrar soluções. Cedemos muito espaço um ao outro para intervir em cada território, e permitiu-nos ao longo das 11 datas ir sempre incluíndo material novo e reciclando algumas coisas, experimentar basicamente. Durante o processo de gravação recordo-me de gravar bastantes temas na estrada, porque estava em tour com a Mariza, e ia gravando e enviando coisas ao Rafa para experimentarmos, e alguns acabaram por ficar mesmo na versão final. Cheguei a levar o material para o camarim, montava o estaminé e gravava! Hoje em dia trabalhamos bastante à distância mas sempre com confiança, porque conhecemo-nos bem e já nos sabemos ler bem, musicalmente e artisticamente.

Há mais algum episódio durante esse processo que achem interessante salientar?

[Sickonce] O João domina completamente a parte da escrita e da harmonias que trabalha também e eu às vezes dizia, “olha, para conseguir fazer aqui alguma coisinha diz-me só em que escala estás” e ele “epá, não está só numa escala, está em várias, fica difícil dizer só uma” e eu agora consigo falar com ele e outros músicos apesar de não ter o conhecimento, mas conseguimos comunicar musicalmente e dizer o que pretendo fazer, e também já tenho noções do que posso ou não fazer quando estão presentes músicos com esta liberdade comunicativa e musical. A meio disto tudo, o João convidou-me para uma jam e acho que foi a primeira vez que estive num ambiente assim e era o único com máquinas entre músicos com instrumentos… e elas acabam sempre por ter a fama de “prender” por serem electrónicas. Mas foi bué fixe, porque principalmente resultou [risos], e depois eu não conhecia ninguém da banda sem ser o Frade e não houve nunca aquela cena de estar ali meio isolado, fui mais um instrumentista na banda e acaba por ser mais uma coisa que aprendi fruto do projecto, a comunicar com novas linguagens musicais. O Frade nessa jam foi a pessoa que compreendia o que eu conseguia e não conseguia fazer e guiava o resto da banda, ou seja, sabia o meu tipo de linguagem e comandava os outros músicos para aquilo funcionar naquele formato, até porque os outros não estavam habituados a jams com máquinas.

O teu background de hip hop acaba por ser vital para desbloquear alguns aspectos mais distantes musicalmente entre ti e o Rafa?

[João Frade] Totalmente. É um background em electrónica em geral, sempre fui um bocado fã. Desde que conheci o disco In Between dos Jazzanova, fiquei super mega fã na altura. Fui pesquisando mais coisas, como Jazzmatazz também, e etc,, é um universo musical que gosto muito. Ajudou bastante compreender esta estética musical, mas sobretudo o que conseguimos aqui foi criar uma coisa quase única, que não é temporal. 



Abre o horizonte para o futuro da música algarvia?

[João Frade] Sim, acho que abrimos até um precedente. Há um tema do disco, o “Aurora”, que é inspirado no corridinho, só que harmonicamente é um bocado mais complexo/avançado, obedece a estruturas harmónicas diferentes e também houve sampling, foi super giro. Os próprios beats que o Rafa usou nesse tema são mais orgânicos, inevitavelmente um acabou por puxar o outro.

[Sickonce] Isto também é uma coisa engraçada para o projecto, porque haviam certas premissas que tinham ido na candidatura que nós tivemos como base quando criámos o primeiro projeto, e fomos para o primeiro concerto sem saber se estava muito arrojado, pouco tradicional, e o feedback foi, “tudo bem, até podem sair mais da cena tradicional”, e ya, foi isso que fizemos para a frente. Esses cruzamentos estarem entre o que seria o mais previsível quando falamos de música com raiz algarvia e nós afastarmos dessa estética de repente permitiu-nos chegar a sítios que nunca pensámos explorar. Fomos deixando andar ao longo dos vários concertos e de repente, tínhamos um drum’n’bass, foi mesmo deixar fluir. Sinto que é um disco que explorei coisas que normalmente não exploraria – acho que o Frade foi o mesmo – e olho para aquilo e sou eu, nada daquilo me soa estranho. Deixei ir para sítios que quase só ia em guilty pleasure para experimentar alguma sonoridade em casa, e aqui realmente assumimos e pensámos que ia dar um resultado engraçado. E deu. 

Tocaste na questão das pragas de Alvor, é um detalhe incrível e que me fez esboçar um sorriso, especialmente sendo algarvio. É algo mesmo tradicional e regional.

[Sickonce] E ainda tem outra cena engraçada no fim do álbum! A cena que eu colo no fim e vou abrandando é um cântico de trabalho que, por acaso, foi gravado em Portimão – não é exclusivo de lá – que é o “Leva Leva”, cantado pelos pescadores para terem ritmo. O registo que há é do Michel Giacometti, uma das pessoas que mais arquivo e pesquisa fez, andei a pesquisar várias coisas dele e até usei para outras faixas do disco, mas acabaram por não ficar, só essa última que referi. Eu já tinha usado isso numa performance no dia da cidade de Portimão, ou seja, já conhecia bem o “Leva Leva” e a sua história.

[João Frade] O Michel Giacometti é um etnomusicólogo francês que fez recolhas do país inteiro, tendo vivido o fim da sua vida em Albufeira, ali na zona do Pátio, e lá faleceu. Não sei se te lembras, Rafa, mas encontrámos uma recolha dele, que era um senhor a cantar em português com sotaque algarvio, mas com uma forma de cantar totalmente árabe. 

[Sickonce] Sim, sim.

[João Frade] É uma recolha incrível! A cena é que o Giacometti no Algarve não fez um trabalho assim excepcional, não sei se com o desenvolvimento do turismo estas tradições se foram perdendo um pouco — acaba por não ter recolhas muito profundas. Falando ainda do “Leva Leva”, já foi usado inúmeras vezes, é muito conhecido e forte, é muito parecido com um canto de trabalho também utilizado na África do Sul, estive envolvido também num projecto onde encontrei isso. Mas foi isso, acabámos por introduzir elementos assim algo surpreendentes para algumas pessoas em alguns dos temas. 

Lembro-me também de um sample de voz numa das faixas, uma das poucas participações vocais ao longo do álbum para além do Napoleão Mira e do Edgar Valente. 

[Sickonce] É o José Hermano Saraiva, foi escolhido mais pela temática. É um pedaço de voz de uma peça dele sobre o Algarve, porque precisávamos de arranjar um conceito por trás do próprio espectáculo e do álbum. Apesar de ser um álbum instrumental, nós contamos uma história – pelo menos para nós –, não queremos explicar muito o que é a história, porque também queremos que as pessoas tenham uma interpretação livre, mas os skits de voz do Napoleão ajudam a guiar essa história. Ela acaba por não estar muito por ordem, é a ordem que nós imaginámos, ou seja, fizemos um paralelo da música com a evolução do Algarve, a nível do que será a lógica de uma civilização melhor: abraçar o turismo, perceber o que de bem e mal o turismo fez ao Algarve, se estamos num ponto em que temos retorno com algumas temáticas ou não, foi um bocado a nossa análise. É um paralelismo entre a música que estávamos a criar e a evolução do Algarve nos últimos 70/80 anos. Apesar de não o dizermos directamente, deixamos algumas pistas, e algumas delas foram ditas exactamente pelo José Hermano Saraiva nesses samples que fui buscar e acabei por fazer scratch — dos poucos scratches do álbum, na realidade.

Há vários elementos interessantes neste disco a nível de hip hop, há ali elementos a fazerem-me lembrar o próprio J Dilla e o 9th Wonder, mais pelas baterias no segundo caso.

[Sickonce] Essa faixa em específico que falámos, do scratch, ya, é das mais duras a nível de baterias, assim mais 9th Wonder sim, ele é bastante rijo nas tarolas também. Nós não tinhamos bem regras, houve vários mundos a cruzarem-se realmente.

Como referiram, é um álbum intemporal para ambos, é uma forma diferente de interpretar o Algarve, suponho que seja também o carimbo que querem deixar não só sonicamente, mas também a nível opinativo, de crítica, sobre aquilo que pensam e visionam para o Algarve, certo?

[João Frade] Sim, no fundo foi isso, foi com essa intenção. Tentámos resumir, de forma musical e criativa, tudo o que é um certo desvirtuar do Algarve, e também o outro lado — há coisas super construtivas nos últimos anos, é por isso que existem vários momentos alusivos a esses processos, momentos mais tensos, outros mais festivos. Essa faixa “Aurora” também foi criada com o intuito de não perder contacto com as tradições, talvez o Rafa não ia directamente à procura de fazer uma faixa com alusão ao corridinho, talvez não fosse fazer uma faixa com um beat de footwork, e isso acabou por ser super giro. Ambas as faixas traduzem um pouco um Algarve que é real, e durante este processo reconectei-me um pouco mais com a região, e percebi que afinal as tradições não estão assim tão à beira do precipício, existem mais num Algarve de interior e assim. No caso do footwork andava um pouco mais desligado de movimentos mais activos em Quarteira e assim, existem vários produtores e beatmakers, cada um à sua maneira, e na verdade existe bué pessoal a fazer coisas no Algarve, e eu não me apercebia disso. Este projecto ajudou a essa reconexão e olhar um pouco em volta também.

[Sickonce] Acho que esse cruzamento de linguagens serviu para percebermos que há aqui muita coisa em várias direcções. Acho que o disco demonstra que o Algarve, por um lado, tem tradição, mas também regista exactamente o contrário, também tem coisas que estão super actuais, não é uma região que está 10 anos atrás de Lisboa e Porto. Cá também há tradição, apesar das pessoas conhecerem o turismo, aquilo que lhes é mostrado no turismo, também há história e cultura. Acho que quisemos meter isso neste projecto, de ir buscar aos extremos, mesmo que eu no meu dia à dia não explore tanto a electrónica assim como o Frade não explora tanto o tradicional no seu extremo, mas aqui precisávamos de ir lá. Outra coisa, espero e sinto que sim, que este projeto tenha servido para quebrar tabus. Para o meu público entender uma linguagem à volta do que o João faz e se calhar o público do João entender o que um produtor electrónico pode trazer para a mesa, e tenho a certeza que isto funcionou porque eu vejo o ciclo de pessoas à volta do João que me reconhecem neste momento, e até pedem para trabalhar comigo, e até ao início do projeto era provavelmente mais difícil. E isto também aconteceu com o Frade, ele já participou em vários concertos do mundo do hip hop, do Perigo Público, no festival 5L em Lisboa, aquela homenagem que fizemos ao MF DOOM, também há aí esse quebrar de certas barreiras mentais que não fazem sentido existir, é simplesmente música. São linguagens que podem ser simplesmente utilizadas para fazer música melhor.

Achei muito bonito ver essa conexão, ver artistas muito fora dos seus universos a trabalharem e colaborarem juntos é um fenómeno invulgar no hip hop português, grande parte das vezes os artistas “isolam-se” no seu universo de rappers, produtores, e não abrem muito as portas a terceiros — não querendo, claro, generalizar. Gostava muito de ver isso a acontecer mais vezes por cá, haver mais espontaneidade e criatividade. 

[Sickonce] Percebo o que estás a dizer, e duvido que de forma natural eu e o João nos cruzássemos para fazer um projecto tão grande como este, mas neste trabalho foi isso que aconteceu, propuseram-nos um desafio e foi aprovado um apoio para que isto existisse. Duvido que com as nossas vidas profissionais e artísticas nós nos pudéssemos dar ao luxo de dar 11 concertos para nos conhecermos e desenvolver um álbum. Na realidade, isto funcionou exatamente para o que foi criado, quem idealizou isto nunca pensou que fôssemos criar o melhor disco do mundo, serviu para que existisse um cruzamento de dois mundos que naturalmente não se cruzariam, e é por isso que é importante existirem estes desafios, uns funcionam e outros não, mas é suposto ser mesmo assim, há coisas que são provocadas e depois não funcionam, não é preciso funcionarem todas. A meu ver, este caso funcionou, especialmente como o abrir de uma porta aqui no Algarve, já vi projectos seguintes que beberam desta porta aberta. Espero que agora o lançamento do disco reforce isso, porque até aqui tínhamos a cena ao vivo e agora fomos convidados para trabalhar com a banda Plasticine, ou seja, isso também foi interessante, convidaram-me a mim e ao Frade, foi ao duo, não convites individuais.

[João Frade] A malta já nos encara como parceiros de produção, e isso não acontecia antes do projecto. E isso não foi só com Plasticine, já tivemos mais convites também. O projecto que o Rafa falou há pouco, o Aenigmaticus Orchestra, recebi um convite mas foi individual, mas procurei-o logo para dar sequência a esta porta aberta também. E, claro, há outras pessoas que têm se apercebido e observam esta porta aberta, e vão tentando aproveitar oportunidades, e isso deixa-nos felizes, esperamos que isso seja artisticamente produtivo para a região.

E estrada: alguma coisa planeada para regressarem com o disco a alguns palcos?

[Sickonce] Não sei se te consigo responder a isso, sei que fazemos fazer concertos juntos, mas não sei se vai ser Moda Vestra, Aenigmaticus Orchestra, ou eu a solo a convidar o Frade, ou vice-versa. Acho que neste momento temos várias portas abertas e temos de  perceber o que faz mais sentido em cada timing e corresponder com isso, porque conseguimos um cruzamento de pessoas que acabam por ser mais abrangentes que Moda Vestra e que juntam vários projetos, e agora temos o mundo do Frade com as suas pessoas e eu no meu mundo com as minhas pessoas, e há pessoas comuns, e de repente temos aqui um grupo de muitas pessoas no Algarve que se cruzam esteticamente e não só e podem responder a vários projectos ao vivo.

A nível de edições físicas: também têm um disco à venda certo?

[Sickonce] Sim, editámos em vinil e CD, foram feitas algumas edições bem limitadas. Foram feitos 100 discos de vinil e temos já menos de 80 [à data da entrevista, em Junho de 2022], e CDs foram feitos 200 e sobram-nos cerca de 100, o que acaba por ser uma edição bem curtinha e não temos intenção de fazer mais edições quando esgotarmos estes lotes. Para encomendar, passem na loja da Kimahera.


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