pub

Publicado a: 20/09/2016

Rei Kendrick: a majestade de Compton que ilumina o mundo

Publicado a: 20/09/2016

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Hélder White

 

Uma triunfal passagem pelo Super Bock Super Rock obriga a repensar a dimensão de um artista que não tem singles a bater na rádio e que não tem papas na língua. Uma geração entoou os seus hinos secretos elevando-o ao trono que já é impossível negar-lhe. Rui Miguel Abreu traça aqui o retrato deste soberano do rap contemporâneo num texto originalmente publicado na revista Blitz.


mw-680


A lógica do concerto de massas é clara e reflecte as leis da própria pop: um artista ou uma banda que assina um êxito pop (basta um, mas até podem ser mais); um complexo de media que amplifica esse êxito através de playlists, anúncios de TV; um público ávido de ouvir repetido esse hit a partir de um palco. E voilá: Meo Arena esgotada! O que aconteceu no dia 16 de Julho com Kendrick Lamar no Super Bock Super Rock (SBSR) foi, no entanto, muito diferente: aquele artista não tem êxitos pop no topo das playlists das rádios de maior audiência, não tem uma canção que tenha também servido para vender telemóveis ou um qualquer produto dirigido a um target jovem (bem, na verdade tem um contrato com a Reebok, mas esses anúncios não rodam em Portugal…). E no entanto, como dizia esse grande perito em astros, Galileu Galilei, move-se: move-se o artista e move-se o seu público que se mobilizou ao ponto de esgotar a bilheteira disponível para o último dia do SBSR. Tendo em conta que os outros cabeças de cartaz eram nomes como The National, Iggy Pop e Massive Attack, há algo para descodificar aqui. Comecemos pela figura: quem é, afinal de contas, Kendrick Lamar?

A Billboard, num artigo de capa de Janeiro de 2015, comparava-o a Barack Obama e descrevia-o como “um introvertido com o emprego de um extrovertido”. Parte da honestidade extrema que atravessa as letras de Kendrick passa exactamente por essa dinâmica contraditória: ele luta para exteriorizar cada sentimento, cada pensamento. Não é um processo natural, é antes o resultado de muito trabalho. As raízes desse comportamento estarão certamente na educação que recebeu.

Os pais de Kendrick são naturais de Chicago, mas mudaram-se nos anos 80 para Compton, a mesma cidade vizinha de Los Angeles que viu nascer os N.W.A. de Ice Cube e Dr. Dre. Eddie Kendricks, o líder dos Temptations, inspirou o nome de baptismo de Kendrick Lamar que nasceu em Compton a 17 de Junho de 1987, precisamente no ano em que os N.W.A. se estrearam com “Panic Zone”, tema em que rimavam sobre a dura realidade da sua cidade: “It’s called The Panic Zone / Yeah, that’s right, The Panic Zone / Some people call it torture, but it’s where we call home”. Os pais de Kendrick fugiram, da violenta zona sul de Chicago em busca do paraíso californiano, não percebendo que trocaram um inferno por outro porventura ainda mais extremo. Em entrevistas, Lamar mencionou memórias duras da expulsão de casa, da sobrevivência à custa de senhas de comida dadas pela assistência social, de ter que viver em motéis quando contava apenas 8 anos. “Eu não estou de fora a olhar para dentro, nem estou dentro a olhar para fora. Estou mesmo no centro a olhar à volta”, explica Lamar logo no disco que o colocou no mapa, o álbum Section 80 de 2011.

 



As rimas começaram antes disso porém. Bom aluno na escola, Lamar era ainda assim um produto do seu ambiente: o mundo estendia-se por não mais do que três ou quatro quarteirões no seu bairro e a vida resumia-se a sair da escola e procurar algo para beber ou fumar. “Os adolescentes não percebem”, confessou o rapper em entrevista à Billboard, “somos egoístas. ‘Bora beber, ‘bora fumar, ‘bora ficar todo fodido. Porque é que fazia essas coisas? Porque fui educado assim? Era algo que eu certamente via lá em casa, mas eu disse: ‘Já sei o que acontece a alguns membros da família e alguns amigos quando bebem e fumam. Passam-se da cabeça, ficam violentos. E eu tenho isso no sangue’. Agora, de vez em quando até posso beber um golinho, mas abusar e passar-me da cabeça pode não ser uma boa ideia”. Quando decidiu parar de beber e fumar, Kendrick Lamar começou a rimar e não demorou muito até Anthony Tiffith, o patrão da Top Dawg Entertainment (TDE), ter reparado num miúdo que muito naturalmente se destacava nas mixtapes em que participava. Overly Dedicated, projecto de estreia na TDE, saiu em 2010 e incluía temas como “Night of The Living Junkies”, “Michael Jordan” ou “Ignorance is Bliss”.

Apesar das boas notas na escola e da intrincada arquitectura da sua escrita, Kendrick já por diversas vezes confessou não ser um grande leitor, preferindo a observação na primeira pessoa – “mesmo no centro a olhar à volta”. Mas uma das leituras obrigatórias na escola, a autobiografia de Malcolm X, acabou por marcar o seu pensamento: “O que é que queremos deixar, como legado? Olhar para trás, para todos os grandes líderes, gosto de pegar nas lições deles e metê-las na minha música, tal como Martin Luther King fez na sua vida e nos seus discursos”.


kendrick_lamar_dr


A carreira de Kendrick Lamar estruturou-se numa época de viragem da indústria, quando novos executivos com os ouvidos mais colados às ruas como Anthony Tiffith perceberam que os paradigmas do negócio estavam a mudar. Entre 2006 e 2010, Kendrick lançou algumas mixtapes, fez concertos com rappers como The Game ou Tech N9ne e construiu a reputação que ainda hoje é o pilar do seu sucesso. Overly Dedicated, o primeiro lançamento com a TDE, foi distribuído pelas plataformas digitais, mas também oferecido para download gratuito. As tabelas da Billboard acusaram nessa altura e pela primeira vez a sua existência. Graças a “Ignorance is Bliss”, uma visão crítica da vida de crime nos bairros mais violentos, Dr. Dre reparou nele, chamando-o logo aí para algumas sessões do que já na altura era o seu muito aguardado e até hoje nunca editado álbum Detox. Em K-Dot, o bom doutor reconheceu a mesma força, sede, fome e criatividade que em tempos tinha impulsionado os seus companheiros Eazy-E e Ice Cube nos divisivos N.W.A.. A aliança de Dre e Lamar haveria de se concretizar formalmente com good kid, m.A.A.d city, de 2012, mas antes o jovem rapper de Compton ainda lançou Section 80, trabalho que é visto como o primeiro a realmente assegurar-lhe um lugar no complexo mapa hip hop do presente graças à força de temas como “Fuck Your Ethnicity” ou “HiiiiPoWeR” (com produção de outro nome-chave do presente, J. Cole). Neste álbum, Kendrick Lamar experimentou pela primeira vez com a ideia de arco narrativo, contando a história de Tammy e Keisha, explicando como é que a geração nascida nos anos 80 (a tal Section 80) foi obrigada a lidar com uma economia adversa e uma realidade feita de gangues, droga e violência. Tal como Overly Dedicated, também Section 80 foi, no essencial, distribuída de forma gratuita.

Pode dizer-se que entre 2006 e 2012 Kendrick afinou a sua arte, com os projectos lançados na TDE a funcionarem como uma antecâmara da sua real e primeira séria mostra de talento, good kid, m.A.A.d city, álbum lançado já com o patrocínio criativo de Dr. Dre e com ligação formal à sua Aftermath e ao gigante Interscope. Com o subtítulo A Short Film by Kendrick Lamar, good kid… apresenta uma vez mais um conceito narrativo claro, desta vez um dia na vida de um jovem K-Dot de 17 anos, ao volante do carro da mãe, observando as ruas de Compton em câmara lenta. “Já conhecem Compton”, disse Kendrick ao Guardian em 2012, “Não se ouvem artistas de Compton a mostrar vulnerabilidade. Ouve-se sempre o lado da pessoa que puxa o gatilho. Nunca se escuta quem está na mira da arma”.

 



O crescimento de Kendrick Lamar foi sempre orgânico, assente numa relação de proximidade com os fãs, mas ainda assim pensado e impulsionado segundo uma estratégia. A TDE tem vindo a gerir com muita inteligência toda a carreira do colectivo Black Hippy que Kendrick Lamar forma com ScHoolboy Q (rapper que acaba de lançar o excelente álbum Blank Face), Ab-Soul e Jay Rock, todos eles com os seus próprios lançamentos, todos eles com algo de distinto que apenas reforça a ideia do colectivo. Kendrick pode ser o ponta de lança, mas é também parte de uma sólida equipa que leva muito a sério a sua presença na indústria. É verdade que a música de Kendrick transpira verdade e força e que é isso que justifica momentos como o que a MEO Arena testemunhou, mas não há nada de acidental na sua ascensão à primeira divisão pop e como Beyoncé ou Taylor Swift, duas artistas pop com que K-Dot já colaborou, o talento só vale se amplificado por ponderada e calculada estratégia. Ajuda e muito, pois claro, quando o produto que tem para se vender é de primeira qualidade, como é o caso.

Numa era em que a América teima em não sair das primeiras páginas, com casos sucessivos de violência dos dois lados da barricada imposta pela lei, com uma corrida presidencial marcada pela polémica, Kendrick tem para oferecer (ou vender, caso queiram adquirir os discos e as t-shirts e os bilhetes de concertos) uma ideia e uma mensagem: “Toda a gente vai respeitar o gajo que dispara”, rappa ele em “Money Trees”, tema de good kid…, “mas a pessoa em frente à arma vai viver para sempre”. Ao Guardian: “A verdadeira história deste álbum”, reclamava Kendrick em 2012, “é mostrar como o mundo olha para os meu amigos como delinquentes quando no fundo eles são bons miúdos”. Bons miúdos numa cidade louca. A estreia em número 2 na tabela de referência da Billboard provou que a estratégia desenhada pela TDE e posta em marcha pela Interscope estava a funcionar.

Sobre música cozinhada por uma série de produtores de primeira linha, incluindo Dr. Dre e Just Blaze, Pharrell Williams, Hit Boy ou Jack Splash, e com participações que ecoam precisamente a estratégia clara da TDE – Jay Rock (a assegurar visibilidade para o colectivo Black Hippy), Drake (a ponte para o universo pop) e MC Eiht (o link à rica tradição rap de Compton) – good kid, m.A.A.d city captou finalmente a atenção do mundo. Na Blitz, escreveu-se: “A estreia a sério de Lamar é muito simplesmente uma obra-prima, um álbum de crónicas de uma vida real (e assim se entendem as polaroides da capa) de um jovem dotado de uma profunda sede e de um igualmente profundo talento: as suas rimas imaginativas, os seus flows acrobáticos, o dramatismo das suas muitas vozes, tudo concorre para a qualidade extrema de good kid… Não há passos em falso por aqui, só pérolas atrás de pérolas”. Muitas delas, como o tema título, cantadas em glorioso coro na celebração do MEO Arena.

Capas de revistas (da Billboard à GQ…), concertos, aparições nos mais badalados talk shows e aplauso generalizado da imprensa valeram a Kendrick Lamar e a good kid… umas impressionantes sete nomeações para os Grammys, mas o rapper não levou nenhuma estatueta para casa após a cerimónia de Janeiro de 2014, com o MC de Seattle Macklemore a conquistar o cobiçado prémio para Melhor Álbum de Rap e a admitir, num notório e polémico tweet, que tinha “roubado” K-Dot: “Foste roubado. Eu queria que tu ganhasses. Devias ter ganho. E é estranho e mau que tenha sido eu a roubar-te”. Na Billboard, que é, afinal de contas, o órgão oficial da indústria discográfica americana, Kendrick acabou por responder a Macklemore: “Aquele texto surpreendeu-me, mas o Macklemore é um tipo genuíno. Seja lá como for que as coisas tenham resultado, desejo-lhe muito sucesso. Ele tocou nas almas das pessoas e ninguém lhe pode negar isso”. Pode ter tocado, mas os relatos da sua passagem pela mesma MEO Arena onde Kendrick se apresentou não dão conta nem de idêntica enchente nem da mesma efusiva reacção. Macklemore, afinal de contas, veio vender o tal êxito pop. Algo de muito diferente do que se passa com Kendrick.

 



Talvez os Grammys tenham percebido a injustiça devotada a Kendrick quando, na cerimónia de Fevereiro de 2015, premiaram aquele que foi o primeiro single a ser avançado de To Pimp a Butterfly, o tema “i”, nas categorias Melhor Performance Rap e Melhor Tema Rap. Lamar já tinha explicado a sua abordagem à escrita nas páginas da Billboard referindo que a sua “paixão” passa por dar vida a histórias, “construir um corpo de trabalho sólido e não apenas um verso de 16 compassos”. Esse esforço tem vindo a ser consistentemente reconhecido pela crítica, mas também pelos seus pares: Taylor Swift ou Dan Reynolds dos Imagine Dragons declararam-se fãs, tal como aquele que é, talvez, um dos mais aclamados ídolos pop do mundo, o Presidente Barack Obama.

À importante revista People, no verão do ano passado, Obama confessou que a sua faixa favorita do ano era “How Much a Dollar Cost” de K-Dot e depois, numa entrevista difundida no YouTube, já em janeiro deste ano, o presidente do mundo livre declarou não ter dúvidas de que Kendrick seria capaz de ganhar a Drake numa batalha de rap. Tamanhos elogios tiveram correspondência directa de Kendrick, que foi convidado a visitar a Casa Branca para ajudar a promover o programa benemérito My Brother’s Keeper: “A forma como as pessoas hoje olham para mim – é a mesma forma com que eu olhava para o Presidente Obama antes de o conhecer. Costumamos esquecer-nos que as pessoas que atingem uma certa posição permanecem humanas. Quando o Presidente me disse na cara qual era o seu disco favorito eu percebi que por mais alto que se suba neste mundo, nunca deixamos de ser humanos”.

Essa humanidade a que Kendrick se refere – e que o separa de algumas figuras pop que podem porventura ser mais feitas de pixéis e luz e de intocável aura cósmica do que de carne e osso – atravessa To Pimp a Butterfly de forma clara. Nas páginas da Blitz não se pouparam, uma vez mais, elogios a um álbum que o futuro consagrará certamente como uma das mais fundas marcas deste tempo: “Recorrendo a uma complexa equipa de produção que no entanto evita os habituais “super producers” que costumam ser responsáveis pela fatia de leão do budget, Kendrick investe na interacção entre manipuladores de máquinas e músicos reais para criar um álbum musicalmente denso e complexo que deve muito a um estudo atento dos agentes de ruptura que foram empurrando a música negra para o futuro – dos Parliament/Funkadelic a Prince ou à escola de Los Angeles aqui representada por Flying Lotus, que assina a introdução do álbum. E depois há todo o conceito poético do álbum, uma intrincada rede de ideias em que Kendrick questiona a sociedade e a realidade que o rodeia (“The Blacker the Berry”) não deixando de se olhar a si mesmo no espelho, como a dupla de temas “i” e “u” tão bem deixa claro. Ter música forte de um lado e ideias sólidas do outro não são, no entanto, garantias por si só de sucesso artístico. O triunfo estético de To Pimp a Butterfly reside na forna como Kendrick submete todas essas forças criativas a uma visão que é artística, política e pessoal, profundamente honesta e capaz de redifinir as regras do jogo”.

A Academia que rege os Grammys não cometeu o mesmo erro pela segunda vez e das 11 nomeações concedidas a Kendrick, cinco renderam prémios. Verdade que esses prémios vieram sobretudo dos terrenos do rap – com K-Dot a ter que superar pesada concorrência de Kanye West, Drake e J Cole – mas a esfera da pop continua, estranhamente, impermeável ao artista que viu “Alright”, um dos temas de ponta de To Pimp a Butterfly, ser reclamado como hino pelo movimento #BlackLivesMatter que transformou as ruas da América num foco de resistência através da cidadania.


kendrick lamar africa


Não deixa de ser sintomático que apesar de ter levado os seus três últimos álbuns ao topo das charts da Billboard – good kid… foi número 2 e …Butterfly número 1 tal como a recente compilação de outtakes untitled unmastered. -, Kendrick nunca tenha logrado idêntico feito com os seus singles (o melhor desempenho foi o de “Swimming Pools” que furou o Top 20, mas a maior parte dos seus singles, como “The Blacker The Berry”, “King Kunta” ou “Alright”, costuma quedar-se pela zona inferior do Top 100), sinal de que as pessoas escutam os seus álbuns, mas as rádios não tocam necessariamente os seus singles. Na verdade, já nem Kendrick pensa necessariamente em singles: untitled unmastered. é uma colecção de temas dispersos, que foram sendo apresentados em aparições públicas de televisão e que permaneciam inéditos. Ou seja, Kendrick aproveitava precioso espaço mediático não para promover o mais recente single, não para forçar vendas do álbum que se encontrava nas lojas, mas para mostrar mais trabalho, muitas vezes temas desafiantes que forçam as margens da própria música em que a ditadura das categorias o vai enfiando. Até ao benigno papel de porta-voz de uma geração equipado com uma aguda consciência política Kendrick Lamar parece resistir: “Eu sei de onde venho e a dor que causei a famílias”, disse o rapper ao New York Times. “Esses são os meus demónios”. A sua música, afirma ainda, centrando-se em To Pimp a Butterfly, está preenchida “de força, de coragem e de honestidade, mas também de crescimento, de reconhecimento e de negação”. Este é o homem que verteu uma lágrima no MEO Arena: Rei Kendrick, humano, como todos nós.

 


//

Texto originalmente publicado na revista Blitz. 

pub

Últimos da categoria: Ensaios

RBTV

Últimos artigos