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Ilustração: Fedor.Rua
Publicado a: 17/11/2018

Ângela Polícia, L-ALI, Dead End, Tuomas Huotari, DarkSunn, M.A.F., Scúru Fitchádu, DJ 2old4school e Fat Cap deixaram o seu testemunho sobre Baltazar Gallego.

Avé Razat, o rei do Babujal

Ilustração: Fedor.Rua
Publicado a: 17/11/2018

Se quisermos falar de beats em Portugal, a conversa passará obrigatoriamente pelo nome de Baltazar Gallego. A notícia da batalha que o produtor, que assinava faixas como Razat, perdeu no final deste Verão abalou o panorama da música electrónica nacional, deixando o país órfão de um dos mais talentosos e proactivos artesãos dos graves ritmados. No dia em que comemoraria o 32° aniversário, o Rimas e Batidas assinala a data com a partilha de algumas mensagens que recolheu junto de vários artistas, amigos e admiradores do eterno guerreiro das longas dreadlocks.

Como nação maioritariamente importadora de tendências, a cultura beat em Portugal estabeleceu-se apenas no arranque da presente década e teve Razat como um dos seus primeiros militantes. Techno, drum and bass, hip hop, trap: desde que iniciou a carreira, há dez anos, que Baltazar Gallego foi a “todas” e delas bebeu os mais importantes conhecimentos que lhe viriam a servir de ferramentas para criar um cunho só seu. Olhando para a sua obra como um todo, é fácil deduzir um ponto em comum: Razat venerava as frequências mais graves e tinha-as sempre presentes num altar em cada produção que assinava. Doutorado por mérito em Ciência Rítmica Avançada, Baltazar virava um cientista louco quando se trancava em estúdio para estudar as mutações das ondas sonoras, que na prática se traduziam em música filtrada por processos de distorção e saturação, dando origem a jogos de percussão digitais a roçar o glitch, sem nunca perder o rumo do bounce que a música para dançar assim tanto o exige. A série d: serve como principal exemplo dessa fusão de universos experimentais e concretos que, à partida, se julgavam impossíveis de misturar.



A falta de interesse por parte dos media e da “máquina” que faz mexer a indústria musical no nosso país colocaram Razat “a milhas”, e só num passado recente é que nos ocorre uma maior aproximação entre o produtor e a nação que o viu crescer. Maioritariamente através do SoundCloud, assinou dezenas de edições por labels que fazem as delícias dos diggers cibernautas, beat junkies que prezam como ninguém o talento dos renegados que ousam pensar fora da caixa. Saturation foi lançado este ano e simbolizou muito mais do que um EP para o produtor. Os seis temas nele compilados assinalam a obra mais conceptual de sempre assinada por Razat, que riscou dois objectivos da sua lista de afazeres numa só edição: carimbou um projecto com o selo da SATURATE, uma das suas editoras favoritas, e conseguiu colocar a sua música impressa no vinil, o formato predilecto, com a ajuda da comunidade que o segue e apoiou via crowdfunding.

Em 2015, Baltazar Gallego lançou a sua própria plataforma, numa tentativa de preencher essa lacuna no mercado português, que tantas vezes fecha as portas aos artistas que fazem música alternativa num formato 100% independente. A Crate Records responsabilizou-se por álbuns de estreia de L-ALI ou Ângela Polícia, tendo também editado um EP de Thomas B e juntado Scorp a Stereossauro em UMPORUM. Tardigrado, álbum produzido para o veterano Karlon, foi um lançamento conjunto entre a Crate e a Kreduson Produson. DJ Ride e Holly eram também dois nomes frequentes na órbita de Razat, com quem chegou a colaborar em várias faixas. Nos palcos, era o rei do “Babujal” quem ditava a verdadeira lei dos graves nas pistas de dança em Portugal — além de termo popular no vocabulário do produtor, “Babujal” era também o nome aplicado a uma série de curadorias suas, que implicaram montar um sistema de som típico do dub no Titanic Sur Mer e proporcionaram festa rija com o drum and bass como género de eleição.

Apesar de todos os trabalhos editados em conjugação com as apresentações ao vivo — sempre a um ritmo sobre-humano — Baltazar era também uma caixinha de surpresas. Permitam-me recorrer a um episódio pessoal que aconteceu em Março de 2017:

“Curtia de partilhar um segredo contigo”, surgia no rodapé do telemóvel, através de uma notificação do Messenger para uma mensagem assinada por Baltazar Gallego. Depois do aceno virtual, eis que chega à caixa de entrada uma hiperligação para um misterioso perfil no SoundCloud. “Este projecto chama-se THAT ARTIST. É vaporwave feito apenas utilizando samples do The Artist”. Estamos a falar de Razat a tomar de assalto as memórias de Prince, pois claro. Mas, chiu, é segredo — “não quero que se saiba que sou eu.”

Hoje, Lisboa recebe uma homenagem a um dos mais ávidos guerreiros da cena bass em Portugal, com actuações de Beatbombers, Scúru Fitchádu, C-Netik, L-ALI, Ângela Polícia, Tom, Pesca ou Cachupa Psicadélica, divididas entre a Crew Hassan — que atribuiu o nome Razat a uma das suas salas — e o Village Underground Lisboa.

Resta-nos agradecer por todo o esforço e dedicação em prol da arte, todos os sorrisos e danças que proporcionou. Até já, Razat.



[Ângela Polícia]

“O Baltazar é um irmão, um amigo, um mentor, um colega e um altruísta. Conheci-o quando fui estudar para a Escola Superior das Caldas da Rainha. Conheci-o através de um amigo em comum e ele rapidamente percebeu que eu tinha queda para a música, e convidou-me prontamente a ser o vocalista da banda que ele tinha formado com amigos. O primeiro ensaio correu lindamente e daí nasceu A Tua Prima Toca Ferrinhos. A partir daí tornámo-nos melhores amigos. Comecei a parar em casa dele com muita frequência e descobri que ele produzia música electrónica. Na altura, ele produzia dark-trance e tinha umas produções de drum and bass, mas reparei que ele tinha facilidade em materializar qualquer ideia que tínhamos na cabeça, fosse em que estilo fosse. Na altura, o trance não me dizia nada mas é um estilo musical que prima pelo ritmo hipnótico e frenético, feito de sintetizadores alucinogénicos que não são nada fáceis de produzir. Isso fascinou-me. Comecei a entender as infinitas potencialidades da produção musical. Passei infinitas noites em claro a produzir com ele e a vê-lo produzir. Era uma delícia. Às vezes fazíamos vários beats numa noite. Eu já nem dormia em casa, estava sempre na casa dele. A certa altura eu e vários amigos (Pesca, King Peanuts, Koa, entre outros) pedimos-lhe que nos instalasse o software que utilizava. A partir daí comecei a produzir e nunca mais parei. Nesta temporada nas Caldas (cinco anos e meio, para mim) tive duas bandas e dois projectos com o Baltazar — A Tua Prima Toca Ferrinhos, Raízes do Espaço, Jupiter Monk in RazatLab e I’n’High SoundSystem. Todos os projectos tocaram ao vivo. Com o Razat tudo se concretizava. Na altura, eu era um teso e ele e a namorada Pamela ajudaram-me imenso com comida, dinheiro e companhia. Eram os meus irmãos mais velhos, cuidavam de mim.

Depois da universidade, voltei para Braga por causa do dinheiro e da minha mãe e ele até me convidou a ficar nas Caldas com ele para nos safarmos na música. Eu disse que não dava e voltei para a minha cidade. Foram tempos de difícil adaptação, porque já estava muito habituado à vida nas Caldas. Foi nesse período que me fechei em casa durante meses e fiz batidas ‘ao pontapé’. Fui mantendo o contacto com o Baltas pelo telemóvel e Internet. Entretanto arranjei uns empregos, juntei dinheiro para comprar o meu estúdio caseiro e o Baltas criou a Crate Records. Passados dois ou três anos acabei o Pruridades, dei alguns concertos e mostrei-lhe os temas. Ficou muito entusiasmado com o trabalho e pediu-me para misturar, masterizar e lançar pela Crate Records. Meti-me num autocarro e passei uma semana na casa dele a acabar o álbum, fazer desenhos para o artwork, etc. Ele foi a pessoa que mais gostou do meu álbum, numa altura em que não tinha ninguém interessado para fazer comigo este tipo de som, apesar de ter banda e estar em constante contacto com músicos. Tudo o que o fosse fora da caixa e estranho ele gostava. Apostou em mim e foi aposta ganha.

Estávamos agora a trabalhar em beats que ele me enviou e fiquei sem chão. Morreu-me um irmão, mas nasceu em mim uma vontade de vingar a sua existência e legado de uma forma positiva e construtiva. O meu coração secou mas irei enchê-lo de música e de todas as coisas boas que aprendi e partilhei com ele. Um abraço a todos os que o conheceram e, em especial, à família. Ele continuará vivo em todos nós! Avé Razat!”



[L-ALI]

“O Razat foi crucial para o meu primeiro álbum, para a minha formação como artista e também como pessoa. Foi o primeiro que bateu o pé para eu estruturar minimamente o meu trabalho e isso fez com que tudo o que lançasse desde aí fizesse mais sentido. Até trabalhar com ele, não tinha feito um único refrão… Não que seja necessário para uma música resultar mas ele mostrou-me a importância desses momentos na música, e provou-me que o balanço é o mais importante em tudo o que envolve arte. Fez com que fosse possível editar o meu primeiro álbum fisicamente, algo que não esperava… Fez-me crescer e estabelecer prioridades, que na altura estavam meio tremidas. Ensinou-me a importância de fazer as coisas bem, planeadas, sem pressas, com amor, e a acreditar que é possível criar aqui em Portugal. Um génio que em 20 minutos criava um banger. Desde jazz a dub até folclore se quisesses muito. Estou eternamente grato pela oportunidade que me deu de poder fazer parte do legado deixou. E grato por poder ter assistido a criações, sets e risadas de tamanha figura na música electrónica portuguesa. Perdemos um dos grandes.”



[Tuomas Huotari, da SATURATE]

“O Baltazar era o verdadeiro. Trabalhar com ele no último lançamento antes da sua morte foi uma honra e um prazer. Ele preocupava-se apenas com a música e não queria saber do dinheiro nem do marketing. Muitas vezes esquecia-se da parte da promoção porque estava tão focado em criar música no computador. A música dele era imaculada e as produções eram perfeitas. É por isso que ele é tão apreciado por tantos produtores, DJs e ouvintes. Era um génio e um grande professor. Além de apaixonado pela música, ele era também um óptimo ser humano. Pudemos partilhar várias risadas. Trabalho com muitas pessoas boas mas ele — mesmo estando a passar pelo mais duro dos tratamentos — era puro e genuíno. Muito humilde, honesto e sempre positivo! Vou sempre lembrá-lo com o rei que ele era.”



[DarkSunn]

“Conheci muito mais o Razat do que o próprio Baltazar. Não tive a oportunidade de privar muito com ele fora do contexto de ir tocar, ou de eu ouvir o trabalho dele. Como produtor, era incrível e inigualável pela criatividade e pela perícia técnica que impunha no seu trabalho. Sempre o vi como activista da cena bass e sempre pronto a esborratar fronteiras e levar a música mais à frente. Em pessoa, sempre foi muito simpático, ‘boa onda’ e de uma humildade contagiante — qualidades que sempre faltaram muito no meio. Perdemos um produtor e DJ de nível mundial.”



[M.A.F.]

“Escrever sobre o Razat é, ao mesmo tempo, um privilégio e uma responsabilidade. Fui influenciado directamente pela obra dele. Ao nível do sound design exímio, pelo qual ele é reverenciado no meio, dou como exemplo todas as d: series, nas quais podemos encontrar o som único do reese bass dele. Super largo e intenso. Qualquer pessoa reconhece essa sonoridade como única do Razat. Esse nível de personalidade e identidade é tudo o que um artista almeja, transversalmente a todas as artes. Mas o Razat não se fica por aí. Ele não conhece géneros, é polivalente e exímio em vários estilos. Perfeccionista a nível técnico e mestre de várias linguagens. Juntando a isso o ritmo de trabalho sobre-humano, temos um dos músicos mais completos que Portugal viu nos últimos anos.

“Pessoalmente nunca tive oportunidade de colaborar com ele a nível musical e isso vai ser uma mágoa que vou carregar. Tive o privilégio de ter uma música ao lado de uma dele, numa compilação de COLÓNIA CALÚNIA, e sinto-me agradecido por isso. Lembro-me do meu pai me contar que o Zeca Afonso tocou sentado num concerto na fase final da vida dele, e que isso o marcou para sempre. Eu vi o Razat tocar pela última vez, doente, debilitado e sentado. O que mostra a força e resiliência daquele ser humano. Percebi porque o Zeca Afonso marcou o meu pai daquela forma. O Razat marcou-me para sempre e o legado dele viverá.”



[Dead End]

“Guardo a memória do Baltazar com muito carinho. Foi a pessoa dentro do panorama musical que mais me motivou e incentivou a fazer mais e melhor sem parar, percorrendo objectivos, passo a passo. Tinha sempre uma palavra de apreço a dar e era, acima de tudo, genuíno e humilde. Era um génio da música electrónica e um autêntico pioneiro da cena bass em Portugal. Sinto uma mágoa enorme pela sua perda e, principalmente, por ver uma vida que foi curta demais para tanto talento e potencial, em que as possibilidades sónicas pareciam infinitas para alguém cuja vontade era fazer sempre mais, melhor e diferente. Fico eternamente agradecido por nos termos cruzado na vida e por ter aprendido com a sua arte, visão e legado. Descansa em paz, irmão.”



[Scúru Fitchádu]

“Em meados de 2005/2006, o dubstep e o drum and bass entraram no meu radar ao ponto de se tomarem grande parte da minha dieta musical nos headphones. Na altura, e na tentativa de desmistificar a forma de produção e composição destas formas musicais, procurei informar-me de produtores nacionais que estavam mais dentro desta ‘cena’. O nome Razat foi-me logo indicado numa primeira instância. ‘Epá, há aí uns quantos que fazem cenas bacanas, mas tens de ouvir um puto de rastas ali das Caldas. O gajo manda umas basslines de outro mundo… Vais curtir de certeza a violência desse puto!’ Descobri ainda que ele estudava na ESAD das Caldas da Rainha, cidade onde eu mesmo andei durante a minha adolescência e juventude. Posso dizer que mantive sempre um olho e ouvido neste produtor. Mais tarde foi-me apresentado pelo Rui Miguel Abreu numa cena da Red Bull, ali no Lux, como Baltazar, vulgo Razat. Trocámos umas palavras e ficámos de nos encontrar para trocar impressões sonoras.

No curso do meu projecto Scúru Fitchádu, várias pessoas do meio indicaram o Razat como um produtor perfeito para trabalhar comigo no próximo LP. Passado um ano contactei-o via Facebook, para ver dessa possibilidade. O Baltazar referiu que conhecia o meu projecto e inclusive gostaria de trabalhar comigo no futuro. Ficámos de nos encontrar, umas semanas depois de limparmos agendas. Recebi a triste notícia de um amigo que lhe era muito próximo e dividiu casa com ele nas Caldas da Rainha. A bass music nacional perde aqui um dos seus expoentes máximos… Um abraço, Razat!”



[DJ 2old4school, da Crew Hassan]

“Conheci o Razat em 2010, num evento organizado por nós em Peniche. Ficámos amigos desde esse dia e tocámos em diversas ocasiões juntos, e ele era o único DJ com o qual eu tomei a decisão de não voltar a tocar depois dele — após duas horas de Razat não havia ninguém vivo no dancefloor, tal a intensidade do seu set. A energia dele sempre me contagiou a mim e a quem o rodeou. Ele foi a única pessoa que me incentivou sempre a produzir música e a lançar. Ajudou-me a gravar e produzir algumas músicas. A sua presença habitual na Crew Hassan era sempre um motivo de alegria. Tive o prazer de lhe apresentar alguns produtores musicais e a assistir a animados debates. Para mim, era o maior talento que havia na produção e uma referência máxima, além de um grande amigo. Quando os pais do Baltazar me pediram para fazer a cerimónia de despedida na Crew Hassan, aliámos à tristeza um orgulho enorme por podermos participar directamente na cerimónia.”



[Fat Cap]

“Ainda há uns dias estive a recordar algumas memórias, entre elas as mensagens que trocámos ao longo dos anos. Lembro-me como se fosse ontem os primeiros beats que me enviou, em que fácil e rapidamente sentes algo de especial. Conheci-o primeiro através da música e chats, e só depois pessoalmente. A música dele já dava dicas do tipo de pessoa que era. Mente aberta e a pensar fora da caixa. Não tive a possibilidade de conviver com ele mais do que encontros em festivais e discotecas espalhadas por Portugal ao longo dos anos — um dia aqui, dois ali, no máximo, onde podíamos trocar impressões pessoalmente. Contudo, foram impressões que deixaram marca, quer fosse a falar de música, DJing ou produção, quer fosse a falar da nossa vida pessoal.”

“A evolução dele como músico era notória e novas fases e patamares estariam por chegar em breve. Sendo tão bom produtor como DJ, e com uma personalidade muito própria, tinha uma receita boa para ir longe. Cada vez mais admirava os beats que ele me enviava, a parte técnica, sound design e composição. A rapidez com que ele fazia um grande beat era incrível, e de maneira nenhuma afectava a qualidade final, o que me impressiona muito num artista. Contudo, já não era novidade para a maior parte de nós que ele estava a travar uma batalha a nível de saúde. Infelizmente, e para surpresa de muitos, o pior aconteceu.”

“Custa muito ver a vida pregar partidas destas a pessoas por quem tens muita consideração e que estavam num excelente caminho, e nunca é fácil aceitar. Ele deixa-nos memórias excelentes e a sua imortalidade em tudo o que criou. Desejo muita força à sua família, amigos e fãs de todo o mundo.”


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